Multifacetado e cheio de complexidades, o cenário da arquitetura e do urbanismo na América Latina revela nuances e desafios específicos diante das problemáticas enfrentadas pelos diversos países, como a desigualdade social, a violência e o crescimento urbano acelerado. Nesse contexto, a prática arquitetônica assume um papel relevante na construção de soluções possíveis e adequadas a cada realidade, em que ainda se destaca a importância da reafirmação das referências e narrativas locais nessa elaboração.
Perante a hegemonia estabelecida especialmente pela América do Norte e Europa, que muitas vezes marginaliza as realizações arquitetônicas e urbanísticas latino-americanas, sobretudo a produção que sequer é considerada como tal, a valorização dessa diversidade e complexidade torna-se um imperativo para qualquer pensamento e intervenção sobre a região. A seguir, selecionamos seis entrevistas que nos ajudam a entender a arquitetura da América Latina, e que contribuem para uma abordagem mais contextualizada e sensível de suas necessidades, potencialidades e riquezas.
Emílio Lopez: A arquitetura latino-americana está experimentando com a geografia e os recursos
Emilio López é arquiteto pela Pontifícia Universidade Católica do Equador e possui mestrado em História e Teoria da Arquitetura pela Universidade Politécnica da Catalunha. Ele afirma que ainda vive no Equador, um território com uma das maiores biodiversidades do mundo. Ele pontua que a geografia, as plantas, os climas e as culturas do país são grandes estímulos, além de sustentar que, com a arquitetura, surge a possibilidade de imersão e mistura com o meio, permitindo que ele se deixe transformar pelo outro. Ele diz que a força da arquitetura reside em ser produto da afetação imersiva que implica repensar sua relação com os recursos e com o mundo em que vive.
A arquitetura latino-americana é uma arquitetura que está experimentando e explorando a partir de referências próximas, como a geografia, os materiais e os recursos disponíveis. Vejo com otimismo os arquitetos latino-americanos mais jovens, que estão explorando a partir do risco. Isso para mim reside principalmente em tomar certa distância da herança moderna, que continua sendo muito forte em nosso meio, não apenas no profissional, mas também no acadêmico, onde os referenciais estudados são principalmente europeus. São buscas que surgem a partir da proximidade afetiva e de uma permanência prolongada, não imediata.
Gabriela de Matos e Paulo Tavares: Buscamos ampliar a arquitetura a partir de outras histórias e culturas
Questionar a história canônica da arquitetura e lançar luz sobre práticas espaciais por muito tempo invisibilizadas é o que propõem Gabriela de Matos e Paulo Tavares. “É nossa maneira de fazer um sacudimento”, comentam os curadores, que voltam sua atenção para modos ancestrais de lidar com a terra, mirando possibilidades de presente e futuro mais justas e completas. Abordando a terra em todos os significados que a palavra carrega, os curadores sobrepõem questões ligadas ao solo e ao território com problemáticas planetárias, propondo uma aproximação entre os temas da reparação e decolonialidade — emergentes ao contexto brasileiro — com tópicos abrangentes, como descarbonização e meio ambiente, decisivos no debate global contemporâneo.
A história da arquitetura está incompleta porque nosso foco sempre esteve voltado para a produção de arquitetura ao norte: Europa, Estados Unidos etc. Acredito que nossa proposta apresenta uma produção de arquitetura que sequer é reconhecida enquanto produção arquitetônica. Então, além de propor uma outra forma de entender essas experiências, de certa forma também buscamos ampliar a arquitetura a partir de outras histórias e culturas.
Sérgio Ferro: No nosso campo da construção, a única saída seria talvez “escovar a história a contra pelo”
Sérgio Ferro é um arquiteto, artista, historiador e crítico de arquitetura brasileiro que, devido à sua atuação política durante a ditadura militar, foi preso e exilado na França na década de 1970. Ao longo de sua carreira, observou e interviu nos espaços de produção da construção civil, desenvolvendo uma crítica à produção das artes plásticas e da arquitetura baseada no processo de construção e seus agentes: o canteiro de obras, as tecnologias, os materiais e o construtor.
No nosso campo da construção, a única saída seria talvez “escovar a história a contra pelo” e reinventar alguma coisa semelhante ao encontro perdido entre o ecletismo técnico e o sindicalismo revolucionário. O que pressupõe trabalho autônomo, não assalariado, qualificado, organizado em métiers, e, do outro lado, uma arquitetura que deixa de ser um “outro lado” para se transformar num métier como os outros, o único que falta entre os métiers existentes ou com possibilidade de re-fundação, o que se ocuparia com as interfaces entre os existentes ou restauráveis.
Taller General: Nossa definição de arquitetura é moldada coletivamente
O Taller General é um ponto de encontro no qual Martín Real e Florencia Sobrero, entre outros membros e colaboradores, se reúnem diariamente para fazer aquilo pelo que são apaixonados: canalizar sua criatividade por meio da arquitetura, fundindo todos os aspectos que moldam suas vidas, do ativismo ao ensino. Com sede no Equador, a equipe passa por mudanças de acordo com as necessidades dos projetos e, na maioria das vezes, se expande, com um trabalho colaborativo que permite compartilhar diferentes perspectivas, opiniões e práticas, enriquecendo o ambiente e gerando resultados que seriam inimagináveis individualmente.
Estamos passando por um momento de expansão urbana complexa, em que, por um lado, há o crescimento descontrolado das cidades e, por outro, o esvaziamento de casas e edifícios dentro das mesmas cidades. Assim, a forma de ocupar a infraestrutura existente para novos usos é algo que ocupa muito tempo em nossas reflexões e discussões. Por meio de alguns exercícios dentro do Taller, buscamos mecanismos que nos permitam repensar o trabalho arquitetônico em torno dessas preocupações.
EseColectivo: O mínimo que consideramos em nosso exercício é não desperdiçar
ESEColectivo é um estúdio de arquitetura composto por Belén Argudo, José de la Torre, Santiago Granda e Pablo Silva com sede em Quito, Equador. Seus interesses estão focados na experimentação de materiais alternativos de construção, com ênfase em tecnologias e lógica. Em seu processo de concepção, buscam conciliar estratégias sustentáveis de baixo impacto com as necessidades e limitações específicas de cada projeto, de modo que seus resultados sejam heterogêneos e diferentes no que diz respeito ao tipo de abordagem metodológica e técnica.
Por um lado, o reconhecimento de uma realidade local, que comporta limitações e vantagens específicas e a necessidade urgente de uma arquitetura que lhe corresponda. A busca pela eficiência e a gestão cuidadosa dos recursos é a forma que encontramos para tornar nosso ofício coerente no Equador. Trabalhamos em um país, como a maioria da América Latina, com muita pobreza, informalidade e uma gestão geralmente desordenada da arquitetura e das cidades. Portanto, o mínimo que consideramos em nosso exercício é não desperdiçar.
Coletivo Levante: Experimentamos um convívio que faz aflorar os afetos, diálogos, valores e anseios para uma transformação inclusiva e participativa
Voltada para desenvolvimento de projetos de arquitetura em favelas e periferias, a atuação do Coletivo LEVANTE tem demonstrado grande sensibilidade às características e particularidades desses contextos. Segundo o grupo, "o reconhecimento do que já existe e é atribuído de valores vividos e conquistados pelos moradores das favelas — paisagem, construções, identidades e relações" é o que buscam como matéria-prima dos projetos. A equipe do Coletivo é formada atualmente por Alan Franca, Amanda Castilho, Anna Lobato, Fernando Maculan, Marcos Franchinni, Nattalia Bom Conselho, Giovanna Camisassa, Helder Machado, Kdu dos Anjos, Maria Soalheiro, Marina Vilela, Matheus Angel, Pedro Assis, Rafael Yanni e Ricardo Lobato. No entanto, como os trabalhos do LEVANTE têm demonstrado, a rede de profissionais, fornecedores, parceiros e colaboradores é extensa e se expande para além do coletivo em si, se revelando um valioso fator para a viabilização dos seus projetos.
Reconhecemos a necessidade de resposta aos problemas espaciais e infraestruturais mais básicos e recorrentes nas favelas, mas experimentamos um convívio que faz aflorar os afetos, diálogos, valores e anseios para uma transformação inclusiva e participativa. Atuar na presença e não na ausência; na potência e não na carência – são nossas estratégias para a condução dos projetos e obras, em todos seus estágios.
Conheça a seção de entrevistas do ArchDaily, onde exploramos temas tão variados como tecnologia, materiais construtivos, projeto de arquitetura, cidades, comunidade, sustentabilidade e meio ambiente.