“Quando não posso construir, desenho; quando não posso desenhar, escrevo; quando não posso escrever, falo.” Com essa máxima, Le Corbusier não deixa dúvidas de que, para ele, a missão maior do arquiteto é a construção. É ela que fundamenta e alimenta o desenvolvimento tecnológico e intelectual em torno da disciplina arquitetura: modos de construir, de criar espaços e habitar. Mas, diz ele, qualquer recurso de linguagem –desenho, escrita ou fala– pode ser veículo da construção.
Com essa pequena introdução quero abordar aqui um aspecto da obra de Lina Bo Bardi (1914-92) que só agora começa a ser mais divulgado e conhecido por acadêmicos e arquitetos: seus escritos.
Prevê-se que essa lacuna diminua, com a promessa de que em pouco tempo os arquivos da arquiteta (cerca de 6.000 itens catalogados pelo Instituto Lina Bo e P.M. Bardi) possam ser acessados pelo público na Casa de Vidro, que ela construiu para si e para Pietro Maria Bardi no Morumbi, em São Paulo. Com isso, deve vir à luz a coerência que uniu sempre seu pensamento e sua obra construída.
A obra arquitetônica de Lina tem sido cada vez mais difundida mundo afora, surpreendendo e ganhando crescente prestígio por sua relevância na atualidade. Em tempos de crise econômica nos países ricos e de falência de certa arquitetura-espetáculo (pautada pela aparência e por malabarismos formais que acabam por roubar-lhe a alma), a obra de Lina Bo Bardi continua a apontar caminhos.
Na sua arquitetura pública e democrática, vale a definição de Alvar Aalto de que “o arquiteto é um servidor da sociedade”. Nela, emoção, surpresa e descoberta, aliados a um extremo rigor, ditam o tom e o ritmo. Cito aqui o Solar do Unhão (1962), na Bahia; o Museu de Arte de São Paulo (1968) e o Sesc Fábrica da Pompeia (1982), ambos em São Paulo.
São três obras exemplares, voltadas à promoção do encontro de pessoas e à convivência humana. Nelas, pode-se ver ao mesmo tempo a evolução do pensamento de Lina ao longo dos anos e também a permanência, ou insistência, de certas proposições em todo o período.
Mas o fato é que Lina Bo Bardi também escrevia –e escrevia bem. Entre tantos textos que comprovam como a linguagem escrita pode, para além do desenho, expressar conceitos de arquitetura, encontra-se, por exemplo, esta menção ao Sesc Pompeia: “Existem sociedades abertas e sociedades fechadas; a América é uma sociedade aberta, com prados floridos e o vento que limpa e ajuda.
Assim, numa cidade entulhada e ofendida pode, de repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento. E aí está hoje a Fábrica da Pompeia, com seus milhares de frequentadores, as filas na choperia, o ‘solarium’ do deck, o bloco esportivo; a alegria da fábrica destelhada que continua: pequena alegria numa triste cidade.”
Ingenuidade
Quando chega ao Brasil vinda da Itália, em 1946, Lina Bo Bardi rapidamente se apaixona pelo novo mundo, pela exuberante natureza tropical e pelo povo brasileiro, com sua descontração e um certo quê de ingenuidade, “ainda não contaminada pela soberba e pelo dinheiro”, como costumava dizer.
E essa paixão e dedicação ao país que escolhe para ser sua nova terra estarão presentes em toda a sua obra arquitetônica e em seus escritos. Mesmo quando não se vinculam a um projeto específico, seus textos clarificam o que sentimos diante de sua obra construída.
“Cada país tem sua maneira própria de encarar não somente a arquitetura, mas também todas as formas da vida humana. Eu acredito numa solidariedade internacional, num concerto de todas as vozes particulares. Agora, é um contrassenso se pensar numa linguagem comum aos povos se cada um não aprofunda suas raízes, que são diferentes.
A realidade à beira do São Francisco não é a mesma que à beira do Tietê… Essa realidade é tão importante como a realidade da qual saiu Alvar Aalto ou as tradições japonesas. Não no sentido folclórico, mas no sentido estrutural”, escreveu.
Lina jamais se deixou levar por modismos ou formalismos, um caminho perigoso pelo qual a arquitetura desandou no chamado estilo internacional, gerando projetos que se assemelham enormemente, a despeito da parte do globo em que se encontrem. São os hotéis, torres corporativas e, mais recentemente, a arquitetura de estrelas como Frank Gehry, Daniel Libeskind ou Santiago Calatrava.
Embora tenha tido seu nome muitas vezes associado ao movimento brutalista, Lina sempre achou essa associação mecânica, quase unicamente devida ao emprego que fazia de materiais nus, como o concreto rústico. Seguramente, porém, sua obra poderia ser associada ao movimento em sua essência e fundamento principal. Com a palavra os Smithsons, Alison e Peter, papas do chamado novo brutalismo inglês: “‘Brutalista’, para nós, significa ‘direto’ [...]. [Algo] necessário para se adequar aos novos tempos”.
Reflexões
Suas anotações em bloquinhos, pedaços de papel ou versos de envelopes continham reflexões sobre os mais variados temas –receitas de comida, lendas sertanejas ou a própria vida–, mas eram, principalmente, lembretes de alguma boa ideia para um projeto que, muitas vezes, ainda não existia em sua agenda.
Em textos de apresentação de trabalhos, artigos e cartas públicas, sua escrita brilha como a ferramenta eficaz de um arquiteto engajado de corpo inteiro, produzindo metáforas, imagens fantásticas e quase físicas, ironia fina, humor, contundência, postura política e rigor.
Assim, os suportes tubulares da estrutura metálica concebida para o projeto (perdedor) para o concurso do vale do Anhangabaú são “como árvores tropicais “”árvores de aço”" lembrando a gameleira brava brasileira”. “Ideia fundamental: dar ao ferro/aço a liberdade natural e não simétrica da natureza, contra o esquematismo abstrato-regular. É preciso um suporte? É um cipó, uma escora? São raízes. É a liberdade rigorosamente controlada e calculada da natureza, obediência absoluta às ‘leis que mandam’, nada de arbitrário, mas, como na natureza, o máximo de fantasia”, segue Lina.
Quando defende sua escolha para o piso do Sesc Pompeia, descreve os paralelepípedos como “um dos calçamentos mais sublimes da história da humanidade, documentos seculares de pedras cortadas e alisadas com as mãos, por homens, mulheres, crianças, documentos de civilização”.
Lina escrevia em forma de manifestos ou plataformas de ação: com objetividade, síntese e economia –aspectos que, curiosamente, são também fundamentos da poesia. Sua obra espelha essa vontade de poesia em cada detalhe; é fiel à sua máxima tantas vezes repetida: “Nunca procurei a beleza, mas sim a poesia”. Lina queria ser poeta com as armas da arquitetura. E foi.
Ao falar da visão que Lina Bo Bardi expressou em seus textos, estamos falando, é claro, de arquitetura como forma de intervir na realidade, na vida das pessoas e comunidades, como forma de mudar o mundo –grande desejo da arquiteta. “No fundo, vejo a arquitetura como serviço coletivo e como poesia. Alguma coisa que nada tem a ver com ‘arte’; uma espécie de aliança entre ‘dovere’ [dever] e ‘prática científica’. É um caminho meio duro, mas é o caminho da arquitetura.”
Combatendo certa hegemonia ou mitificação do desenho arquitetônico como forma final de construir, Lina, provocadora que era, dizia ser capaz de fazer um projeto totalmente escrito. Nós, seus assistentes, pudemos ver isso acontecer em 1991, no concurso de projetos para o pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Sevilha, que ocorreria no ano seguinte. Adoecida, ela ditou todos os nossos passos –desenhos e textos–, sem tocar em um lápis ou folha de papel. Para Lina, era como empreender um passeio literário –ou, quem sabe, reger uma orquestra.
Arquitetura, para Lina Bo Bardi, não era se debater diante do papel em branco, à espera de uma inspiração arbitrária. Para ela, tratava-se de organizar ideias, de ligar polos inusitados; tratava-se, enfim, de criar, a partir de uma visão individual e de um modo de estar e interagir com o mundo em que habitamos –sempre com uma forte carga de sentido humano. Havia, em Lina, a busca da síntese coerente entre pensar e fazer arquitetura. “A emoção da ciência traduzida em técnica pelo homem é a mesma comunicada pela obra de arte. Equilíbrio, estrutura, rigor, aquele mundo outro que o homem não conhece, que a arte sugere, do qual o homem tem nostalgia.”
Temos, na história da arquitetura, muitos arquitetos brilhantes, fundamentais, com uma obra fantástica construída, que não deixaram nem sequer um pequeno texto, um registro escrito sobre seu trabalho –Luis Barragán foi um deles. Outros, muitos, produziram escritos brilhantes aos quais suas obras arquitetônicas não fazem jus; falta-lhes, ao transitar entre uma e outra linguagem, unidade de pensamento–Robert Venturi e Aldo Rossi o exemplificam.
O pensamento, a ação política e, mais do que isso, a arquitetura de Lina Bo Bardi encontram a mais fiel expressão em sua escrita lúcida e seca. Ler seus textos é também revisitar seus espaços construídos, projetados ou sonhados; é passear por sua arquitetura feita como a melhor poesia: livre e exata.