Nos últimos anos, o tema de descarbonização de edificações e cidades tem ganhado cada vez mais destaque no âmbito internacional e nacional. Entre os diferentes atores impulsionadores, destaca-se poder público, através de seus ministérios, como o Ministério de Minas e Energia (MME), o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Ministério das Cidades (MCID) e Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) que possuem diferentes políticas, programas e legislações. Instituições financeiras como bancos de desenvolvimento, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e organismos internacionais, como as Nações Unidas (ONU) também têm sido atores-chave para alavancar parte dos recursos necessários para possibilitar a redução das emissões de carbono, que precisa ser cada vez mais urgente.
No coração desse processo existe toda a cadeia produtiva da indústria construção, formada principalmente por fabricantes de materiais, projetistas, construtores, incorporadores, universidades/centros de pesquisa, centros de inovação, entre outros.
Para conseguirmos reduzir a pegada de carbono dos edifícios, o primeiro passo é medir, e é imprescindível que essa medição seja feita de forma adequada e confiável. Em alguns países e cidades já se fala em regulamentações de carbono para projetos de edificações, ou em outras palavras, um valor limite, normalmente em “kgCO2-e/m²” ou “kgCO2-e/m².ano” de um dado projeto.
Recentemente, tem aparecido uma série de ferramentas que prometem medir a pegada de carbono dos projetos de edificações, levando os futuros usuários a terem algumas dúvidas de qual seria a mais adequada para o seu caso ou projeto.
O que já sabemos é que ferramentas baseadas em metodologias que abordam o ciclo de vida do edifício, incluindo obrigatoriamente a produção dos materiais de construção e seu transporte, são as mais confiáveis, com base em uma metodologia chamada de “Avaliação do Ciclo de Vida (ACV)”.
A partir do contexto aqui exposto, este artigo não tem o objetivo de apontar qual ferramenta é certa ou errada, mas sim, quais os parâmetros e informações que devem ser observadas durante a sua escolha, considerando principalmente o contexto brasileiro de aplicação.
Algumas perguntas gerais que podem mostrar se a ferramenta que você escolheu é confiável:
- É baseada em sistemas normatizados (ex. Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT, ISO, etc.) ou outras instituições acreditadas (ex. GHG Protocol)?
- Utiliza como dados de entrada e fatores de carbono oriundos de bancos de dados nacionais ou adaptados à realidade nacional?
- Apresenta de forma transparente os dados e a metodologia utilizada? Cuidado com as ferramentas do tipo “caixa preta”, em que o usuário não consegue saber muito bem o que está sendo feito no processo. Claro que algumas informações podem ser omitidas, por questões de segurança de dados e para evitar plágio da ferramenta.
- A ferramenta foi especialmente desenvolvida para o setor da construção civil? Ferramentas muito gerais e que prometem milagres... desconfie! Cada setor tem suas especificidades, em termos de materiais, processo de gestão e forma de coleta de dados. O setor da construção civil é ainda mais específico, principalmente devido a enorme quantidade de materiais que compõem um edifício e o caráter dinâmico de uma obra e a grande quantidade de atores envolvidos (projetistas, fabricantes de materiais, etc).
- É atualizada ou revisada de forma frequente, sempre em busca de uma melhoria contínua? Normalmente, ao final de cada revisão ou versão, os usuários recebem alguma mensagem do sistema, evidenciando quais os pontos que foram modificados.
- Tem no seu comitê gestor/executor especialistas da área (com experiência comprovada), principalmente pesquisadores e acadêmicos?
- Os responsáveis destas ferramentas estão abertos para dialogar e ouvir os usuários, incorporando sugestões de melhorias?
- Recebe algum apoio institucional, como por exemplo algum órgão governamental (ex. MME, MCID, MCTI, etc.)?
Agora que você já sabe as principais perguntas, algumas verificações importantes, especialmente considerando a realidade da construção civil brasileira:
- Você sabia que os elementos (estrutura, vedações e revestimentos) que são os mais consumidos em massa de um edifício tendem a ser os mais impactantes? Desta forma, é muito importante que na sua ferramenta tenha disponível diferentes opções dos materiais utilizados nestes elementos, como por exemplo, diferentes opções de tijolos e blocos de vedação, tipos de cimento, concreto, argamassas e revestimentos.
- Por exemplo, qual o tipo de cimento, você vai escolher? O cimento CP V-ARI pode chegar a emitir 0,99kgCO2/kg, enquanto o cimento CPIII a 0,68 kgCO2/kg.
- O concreto tende a ser um dos materiais mais impactantes nas edificações brasileiras, devido a seu elevado consumo. Desta forma, é muito importante por exemplo poder escolher um concreto em termos de seu “fck”. Um concreto dosado em central com fck de 20 MPa pode emitir em torno de 283,5kgCO2/m³, enquanto um concreto com fck de 40 MPa 395,5 kgCO2/m³, uma diferença de quase 40% maior, que no final dos cálculos de um edifício será bastante considerável.
- O aço é outro material muito impactante no ciclo de vida de um edifício, devido ao seu elevado consumo. No entanto, existe uma diferença se for um aço proveniente de uma usina a alto forno ecarvão mineral em relação a usinas de fornos elétricos, que usam sucata de aço como matéria-prima. A primeira rota tecnológica leva a uma emissão de carbono maior, e, portanto deve ser evitada.
- O alumínio é um material que emite muito carbono devido ao elevado consumo de energia na sua produção. Mas este valor pode ser ainda maior se for utilizado um banco de dados internacional. No Brasil, este valor fica em torno de 4 kgCO2-eq/kg de alumínio, enquanto na média mundial esse valor vai para 10 kgCO2-eq/kg, segundo estudo realizado pela Associação Brasileira do Alumínio (ABAL)para a cadeia de valor do alumínio.
- Vai utilizar madeira em seu projeto? Verifique se na ferramenta está sendo diferenciado o tipo de madeira (ex. nativa x plantada), a origem desta madeira, se ela é certificada, pois senão, você pode estar colocando um dado errado e pode levar a resultados bem discrepantes da realidade.
- A eletricidade produzida no Brasil é muito diferente de muitos outros países, devido principalmente à grande participação de fontes renováveis (chegando a mais de 90%) em sua composição. Em 2021, as emissões na produção de energia elétrica do Brasil foi de 81,7 kg CO2-eq/MWh, enquanto a China 691,1 kg CO2-eq/MWh, uma diferença oito vezes maior. Desta forma, é essencial ficar claro na metodologia /ferramenta qual eletricidade que está sendo considerada.
- O transporte no Brasil de materiais de construção é majoritariamente via modal rodoviário e muitas vezes longas distâncias precisam ser percorridas entre o local de fabricação do material e sua aplicação. Em ferramentas internacionais, principalmente europeias, podem estar sendo considerados outros modais, como o ferroviário e hidroviário, bastante diferentes do rodoviário.
- Além da especificidade do material, existe uma variação entre diferentes fabricantes do mesmo material. Pegando novamente o exemplo do concreto, o mesmo concreto de 40 MPa, pode ter uma pegada de carbono maior ou menor dependendo se é de um fabricante A ou B. Desta forma, esta é uma questão importante no momento da escolha de quem será o fornecedor do material. Infelizmente a maioria das ferramentas disponíveis no mercado (principalmente no brasileiro) ainda não possuem a disponibilidade de diferentes fabricantes.
- Edificações com características específicas, como fachadas com pele de vidro e tipologias de escritório e/ou comerciais podem resultar em pontos focais de carbono diferentes do concreto armado, como o próprio vidro, alumínio e algumas vezes instalações técnicas, como dutos para ar-condicionado, fiação e cabeamento. Desta forma, entenda muito bem como é o seu projeto!
As Declarações Ambientais de Produto (DAPs) de materiais e produtos de construção estão se tornando mais comuns no mundo e no Brasil. Elas tendem a ser fontes de dados confiáveis e muito importantes, pois são auditadas por uma terceira parte independente. No entanto, mesmo com elas é importante o usuário avaliar sua aplicabilidade a seu produto e se os números apresentados fazem sentido.
Por isto, dependendo do motivo e objetivo que se quer com um estudo sobre emissões de carbono, é interessante a empresa/instituição desenvolver uma ferramenta própria para sua mensuração, baseada em dados e metodologias já validadas. Pois algumas vezes existem especificidades importantes, como por exemplo, materiais empregados no processo construtivo, etapas diferenciadas, entre outros. Neste caso, é importante procurar profissionais que tenham experiência (comprovada) nesta temática.
O que esperar do futuro (próximo)?
As ferramentas tendem a continuar em franca expansão e crescimento e no futuro vamos poder escolher além da especificidade do material, por exemplo, entre um concreto de 20MPa ou 40 MPa, diferentes fabricantes.
Materiais não convencionais e vernaculares como a terra crua e o bambu também estão despertando maior interesse de arquitetos e projetistas e, portanto, precisam estar incluídos nas bases de dados dessas ferramentas.
O Building Information Modeling (BIM) está cada vez mais ganhando espaço no setor e é de se esperar que as ferramentas de carbono também sejam compatíveis com essa metodologia.
As certificações de sustentabilidade de edifícios, como o LEED, o AQUA e o EDGE, também estão passando a incorporar aspectos ligados ao ciclo de vida de materiais (principalmente em termos do carbono incorporado) em suas avaliações, e, portanto, deve existir um diálogo entre essas metodologias e a ferramenta escolhida.
A inteligência artificial tem se mostrado uma ferramenta bastante facilitadora e deve também se tornar cada vez mais presente nessas ferramentas de carbono. É preciso que entendamos qual seu real papel e benefício nesse processo. Uma ferramenta confiável, sempre precisará ter pessoas reais por trás de seus algoritmos e cálculos matemáticos!
É importante entender bem o que a metodologia/ferramenta escolhida faz, quais suas principais limitações e como elas podem afetar seu processo. Algumas ferramentas são mais apropriadas para projetistas, outras para construtoras, pesquisadores etc., sendo assim, importante entender qual o seu papel nesta cadeia. As emissões calculadas devem servir de base para uma tomada de decisão mais assertiva, visando a sua redução.
Lembre-se que limitações sempre existirão. Questione-se se os resultados finais fazem sentido. Converse com os desenvolvedores das metodologias/ferramentas e veja se eles estão abertos à melhoria contínua, pois só assim conseguiremos evoluir neste tema, que é cada vez mais urgente.