A busca por reflexões sobre a cidade contemporânea invariavelmente esbarra nas limitações colocadas pelos métodos do Movimento Moderno. As ciências clássicas e seus métodos deterministas, que orientaram — e ainda orientam — o urbanismo desse tempo, descrevem os fenômenos do mundo por meio de relações fortes de causalidade e, consequentemente, os define em leis universais redutoras, que excluem contradições e incertezas. O resultado frequente dessas perspectivas é um mundo idealizado e mecanicista, que nega as complexidades da natureza real de fenômenos, como por exemplo, as cidades.
O italiano Bernardo Secchi enfatizava sua preocupação com a simplificação do funcionamento urbano promovida pelo Movimento Moderno, apontando a necessidade de construir um novo olhar sobre a cidade contemporânea [1]. Isso significa superar a imagem da cidade-máquina e do planejamento controlador, que desviaram por muito tempo o debate sobre questões críticas essenciais do urbanismo. A ilusão de um controle completo sobre a morfologia urbana e suas dinâmicas resultou em uma percepção equivocada de estabilidade e funcionalidade promovida por zoneamentos e hipercodificações.
Contra essas limitações, vemos o surgimento de alternativas metodológicas não definidas por modelos simplificadores, mas que reconhecem o caráter evolutivo do mundo, ao invés de idealizar ordem e equilíbrio, e consideram a possibilidade de dinâmicas complexas e não-lineares, imprevisíveis. Aponta-se aqui, particularmente, modelos conceituais construídos a partir de abordagens sistêmicas e do campo conhecido como complexidade.
Se considerarmos as cidades como sistemas, na história do urbanismo, vale citar três exemplos dos mais conhecidos: o biólogo escocês Patrick Geddes, que explora modelos de cidade como um organismo evolutivo, desenvolvendo termos como conurbação; a jornalista estadunidense Jane Jacobs que, observando o trabalho do matemático Warren Weaver, enfatiza a necessidade de entender a cidade a partir da interação de suas partes, como um jogo complexo e diverso de incontáveis decisões individuais; e Christopher Alexander, urbanista e matemático austríaco que questiona o desenho de cidade a partir da metáfora da árvore, rígida e com poucas interações, propondo uma estrutura semirreticulada, organizada a partir de seus múltiplos relacionamentos e conexões. Porém, de forma mais pragmática — talvez até demais —, uma abordagem sistêmica para o urbanismo foi enunciada em 1969 pelo estadunidense J. Brian McLoughlin.
Em Urban and Regional Planning – A System Approach (1969), McLoughlin propõe uma estrutura para relacionar ferramentas de outros campos do conhecimento com os problemas próprios do planejamento urbano. Para que tal abordagem seja possível, é necessário reconhecer que vivemos em um sistema ecológico, composto por incontáveis interações e interdependências entre os elementos das cidades. Mas interessa destacar nesse trabalho a premissa ainda persistente sobre o controle. Nas ciências clássicas, controle é a luta contra a entropia, a força destrutiva, a "tendência da Natureza de degradar o orgânico e destruir o significativo"[2]. McLoughlin afirma que cabe então aos urbanistas garantir que tal degradação não ocorra com as cidades, que os erros sejam analisados e o sistema reorientado, reassumindo sua rota em direção ao equilíbrio. Ou seja, os planos e projetos urbanos devem apontar os passos pelas quais a cidade deve passar, descrevendo minuciosamente como ela deve evoluir.
Tal modelo nega a metáfora da cidade-máquina, aquela da revolução industrial, do sistema exato e preciso, simples e totalmente compreensível pelo ser humano. Contudo, ao interpretar a cidade como um sistema que tende ao equilíbrio, que pode ser controlado e que funciona a partir de sistemas reguladores, que pode ser pilotada, McLoughlin parece não fugir tanto assim da metáfora anterior. Sua proposta aumenta a complexidade ao reconhecer a importância das interações e dinâmicas urbanas no modelo, mas a ânsia por controle e equilíbrio é determinante, como em qualquer outra máquina.
Novos modelos conceituais em diversos campos científicos são criados a partir da crítica ao controle, principalmente sobre uma extensa categoria de fenômenos que não tendem ao equilíbrio, no qual um sistema aparentemente simples pode encadear estruturas evolutivas e eventos inesperados. Tais sistemas são classificados como complexos e longe do equilíbrio, como explica o químico Ilya Prigogine, tem entropia sempre crescente, não estabilizam por muito tempo, novos arranjos são elaborados constantemente. Antes força destrutiva, agora a entropia é encarada como potencial de transformação — e, por consequência, esses sistemas apresentam comportamentos auto-organizados e estados variados, de previsibilidade limitada.[3]
As cidades vêm sendo tratadas como sistemas já há algum tempo, mas foram, geralmente, consideradas a partir de tendências ao equilíbrio e controle por meio de planos e projetos. Considerando a importância que as interações têm em um sistema complexo, é possível pressupor que tal equilíbrio e controle almejados para a cidade, pareçam um tanto distante, ou mesmo falsos. Trata-se de uma nova racionalidade, do caos como instância criativa, na qual justamente a vida se desdobra. Uma zona cinzenta entre certeza absoluta e completa ignorância, ordem e desordem ou determinismo e aleatoriedade. A complexidade nos dá ferramentas conceituais para conceber as dinâmicas urbanas em perspectivas mais abrangentes e nos possibilita escapar da sede de controle e perceber que a cidade está em constante e complexa transformação, em que a entropia age, na verdade, como força criativa.
O geógrafo inglês Michael Batty argumenta que as cidades são agregados de eventos espaciais, clusters de atividades urbanas que ocorrem em um período de tempo muito menor do que estamos acostumados a analisar, mas que tem efeitos espaciais muito importantes. Considerando a enorme quantidade de interações presentes na maior parte das dinâmicas urbanas, a premissa da complexidade permite construir modelos conceituais que expressem sua principal característica: a emergência de padrões de comportamentos que surgem de baixo para cima. Esses tipos de interações incentivam as configurações imprevisíveis e impõe reformulações na maneira de propor e agir em ambientes dinâmicos e incertos. Camadas e mais camadas de informações que vão se sobrepondo à medida que a sociedade, potencializada pelos avanços tecnológicos, muda de fluxos de energia para de informações, nos forçando a considerar as cidades como fenômenos temporários. Dessa forma, o território urbano não é simplesmente a localização de determinados usos, mas a síntese das interações em permanentes transformações.
O problema da localização é uma questão central para a mudança do esquema determinista que tem dominado o urbanismo. Tradicionalmente as cidades são analisadas, planejadas e projetadas como lugares físicos, as representações de suas formas e estruturas expressam a compreensão mais imediata e intuitiva, portanto insuficiente, da realidade. Nesse sentido, os urbanistas limitam-se a encontrar formas de manipular física e geograficamente as atividades urbanas sempre em busca do ponto ótimo. Planos e projetos baseados apenas na movimentação das atividades e seus usos do solo, assim como nas imposições e restrições que decidem sobre o que e onde algo pode acontecer, não conseguem expressar a essência do que as cidades são e como evoluem [4].
A urbanista Regina Meyer explica que — considerando os câmbios do modo de produção — a metrópole contemporânea coloca em xeque acepções que modelam como íntima a relação entre localização e dinâmicas sociais. Ressalta ainda que as ideias de dispersão e fragmentação – atribuídas a organização territorial – devem sofrer reavaliações, uma vez que o padrão determinado pelo espaço dos fluxos evidencia "que tanto a contiguidade espacial quanto a continuidade territorial são hoje garantidas por meios que dispensam o suporte material e o territorial convencionais, isto é, o espaço urbano"[5].
Na relação híbrida entre físico e digital, da troca de fluxos de energia para de informação, os limites tecnológicos são alargados constantemente e as interações — não-lineares, combustível das dinâmicas incertas — são potencializadas. Essa condição indica que a compreensão da forma física das cidades seja drasticamente alterada, de modo que sua função não seja apenas o lugar onde as atividades acontecem, mas a expressão de forças que engendram dinâmicas, fluxos que muitas vezes não são estritamente físicos. Por vezes essa afirmação parece óbvia, mas pode-se facilmente verificar que suas implicações nem sempre são consideradas ao analisarmos, por exemplo, o peso que o zoneamento ainda tem na estruturação das cidades. Mesmo com os indiscutíveis avanços que esse instrumento sofreu nas últimas décadas, verifica-se que na elaboração das leis de uso e ocupação do solo tratam-se essencialmente de temas como densidade, segregação e acessibilidade. Uma codificação cartesiana, que determina atividades urbanas por meio da localização, de parâmetros urbanísticos que regulam volume, área e distância, massa construída e o parcelamento do solo. Batty chama esse processo de fisicalismo, ou seja, a interpretação das dinâmicas urbanas atribuindo exagerada importância à forma física da cidade, e agenciá-la através do que pode ser imediatamente observado, portanto, facilmente manipulável por meio de planos e projetos.
Para evitar tamanho descuido, Batty indica, assim como Prigogine, que as concepções acerca das dinâmicas urbanas tenham como impulso primordial as interações. Tais dinâmicas, como vimos, emprenham o que realmente a localização é — ou vem a ser —, uma espécie de suporte da vida cotidiana, que exerce influências, claro, mas são essencialmente o resultado das incertas relações humanas e não-humanas. Assim, qualquer possibilidade de interpretação das dinâmicas urbanas passa por um indispensável aprofundamento de seus atributos, admitindo que não permitem a representação ou ação sobre o imediatamente observável, a construção de cenários rasos, estáticos, redutores e lineares. Na maioria dos sistemas sociais, as dinâmicas não são o resultado de causas simples e únicas, são múltiplas e engendram-se mutualmente, portando, não acontecem de forma aditiva, uma depois da outra, já que essa é uma qualidade da linearidade, da previsibilidade. Ao contrário, em dinâmicas complexas, a causalidade tem fator exponencial, são consequência de combinações e agenciamentos pouco previsíveis. A adoção da complexidade permite então compreender as tendências da evolução do sistema em um campo probabilístico, que conceitualmente expõe nossa ignorância sobre a totalidade urbana, mas que nos faz aceitar as indeterminações como ferramentas de formulação do conhecimento, que é irremediavelmente incompleto.
Ao explicar sobre as indeterminações da metrópole contemporânea [6], Regina Meyer identifica o "mal-estar diante da ausência de uma forma urbana racional", que frustra as expectativas controladoras e a ânsia por equilíbrio próprias do urbanismo praticado no Movimento Moderno. Meyer refere-se à condição territorial dos grandes aglomerados urbanos, que dilui a forma organizada, substituída por "por um imenso conjunto de espaços e objetos construídos que não revelam as conexões espaciais e funcionais a que estão subordinados". Esse caráter provisório, juntamente com a complexa dinâmica de interações, criam um ambiente altamente instável, se transformam, se reorganizam por qualquer interferência.
Parece então incontornável a reorganização de estratégias projetuais ao lidar com as cidades, considerando agora fatores fluidos, voláteis, indeterminados, diferente do que estamos acostumados. Imaginar as cidades como clusters de eventos espaciais, significa ter em mente que evento, nesse caso, é invenção, devir e indeterminação. O evento é engendrado — e engendra — por condições relacionais, escapando do planejamento e do controle. Eventos são singularidades, e, a partir deles, são criadas novas possibilidades de realidade, são ramificações de trajetórias, os momentos em que o sistema "decide" qual caminho seguir.
O território contemporâneo tem uma grande e inerente capacidade de interações, potencializada pelos avanços das tecnologias da informação e comunicação, e novas estratégias só podem ser elaboradas a partir de incertezas e instabilidades, das dinâmicas não-lineares. Parece óbvio e fundamental articulações que fogem do binômio forma e função como delimitador do espaço e, mais ainda, novos dispositivos conceituais que contrariam o exagerado discurso da autonomia da arquitetura ou do planejamento urbano controlador, tão descolado da realidade.
Notas de fim
[1] SECCHI, B. Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.
[2] WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. [S.l.]: Cultrix, 1954.
[3] PRIGOGINE, I.; STENGERS, I. O fim das certezas - Tempo Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Unesp, 1996.
[4] BATTY, M. The New Science of Cities. Londres: The MIT Press, 2013.
[5] MEYER, R. M. P. Atributos da Metrópole Moderna. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, 2000.
[6] Ibidem.