
"Tem bala de coco e peteca
Deixa a criança brincar
Hoje é dia de festa
A ibejada vem saravar."
— Ponto de erês
As ruas vivem quando são dos erês e morrem quando são dos carros. Sonho com um projeto que pretendo colocar em prática quando o tempo permitir: escrever um manual com as regras fabulares da amarelinha, da carniça, do jogo de botão, do preguinho, do pique-bandeira, das cirandas cirandinhas, do lenço-atrás, do futebol em ladeiras, do queimado e das variantes da bola de gude. O título está pronto: "Ecologia Amorosa das Brincadeiras de Rua".
Alguém há de perguntar se brincadeiras infantis têm lugar em um debate sobre cultura. Eu devolvo de prima: é claro que sim. Cultura não se restringe a evento nem é um terreiro onde só os adultos dançam. Cultura é a maneira como um grupo cria ou reelabora formas de vida e estabelece significados sobre a realidade que o cerca: as maneiras de falar, vestir, comer, rezar, punir, matar, nascer, enterrar os mortos, chorar, festejar, envelhecer, dançar, silenciar, gritar e brincar.
O léxico de diversas brincadeiras e folganças de rua me parece importantíssimo para uma gramática afetiva da cultura brasileira. Exemplifico: no Dicionário mor da língua portuguêsa, de Cândido de Oliveira, a expressão "carniça" tem como uma de suas acepções a de "pessoa que é objeto de motejos". Luiz da Câmara Cascudo afirma a mesma coisa. Certamente vem daí a expressão "pular carniça" para a brincadeira infantil que hoje anda quase desaparecida nas cidades. Na Idade Média britânica registra-se a brincadeira do leapfrog (saltar sobre a rã), cujo verbo guarda o sentido de se dar bem "passando por cima" de outra pessoa, e parece ser o mesmo folguedo que, com os portugueses, chegou ao Brasil.
Outro exemplo é o do jogo do caxangá, o da canção "Escravos de jó". Esse "jó" vem do quimbundo njó, "casa". Escravos de jó são, portanto, os escravos de casa. Caxangá é um jogo de pedrinhas e tabuleiro. Tem gente que acha que o jó é uma pessoa; quem sabe o da Bíblia?, que sofreu feito doido as provações de Jeová.
A educação infantil deve priorizar a criança brincando com espaço e tomando um "não!" pela cara de vez em quando, para saber que não é dona do mundo mas pode se divertir nele sem culpas. Os nossos dias de indelicadezas maltratam a falange de erê. A adultização de meninas e meninos é acompanhada pela infantilização dos adultos, e a agonia da rua como lugar de encontro, derrotada pela rua vista como ponto de passagem e circulação de bens, redefine até os padrões das amizades infantis. Sem a rua para brincar, as crianças — quando não são as vítimas principais do abandono, da desigualdade social, da intolerância e da violência urbana — acabam construindo amizades circunscritas ao ambiente das famílias e escolas.
A limitação das amizades de escola é evidente: os alunos da mesma turma são submetidos ao mesmo padrão de aprendizagem. A escola ocidental, fundamentada no ensino seriado e na fragmentação de conteúdo, é geralmente normativa, padroniza comportamentos e corpos. E a diferença? A rua poderia resolver isso. Se a escola normatiza, a rua deveria ser o lugar capaz de permitir o convívio entre os diferentes. Para brincar, afinal, há que se ter a disponibilidade de tempo e espaço e a experiência da escassez que permite a invenção. As crianças de hoje não têm nada disso, atoladas em múltiplas atividades, reféns do consumo do objeto vendido pronto e confinadas entre muros concretos e imaginários, erguidos com a dureza de cimentos, preconceitos e medos.
A cidade que deveria proporcionar a circulação de saberes é cada vez mais a que proporciona a circulação de mercadorias e monstros sobre rodas. Nela, a rua como espaço de interação social entre crianças está morrendo. Eu fiz nas ruas grandes amigos; meu filho provavelmente não fará.
Em certa ocasião, fui com meu moleque a uma praça reformada — a Xavier de Brito, na Usina — e perguntei para a garotada se eles tinham sido consultados sobre a reforma, para saber se a disposição dos brinquedos estava nos conformes. Nenhum foi ouvido. Os donos do poder desconsideram que a cidade é também um espaço em que as crianças vivem e brincam.
A cidade em que a criança não toca o rebu é o sanatório dos adultos. A cidade em que os adultos só trabalham é um presídio de crianças. Poucos parecem considerar a questão como urgente e necessária; antes que restem aos erês apenas baixar aplicativos para rodar o pião que não tem mais chão, pular amarelinhas virtuais e empinar a pipa que não conhece o céu.
Pedagogia infantil, insisto, é deixar a criança brincar e desenvolver aptidões ludicamente. O resto é formar gente triste para os currais do mercado de trabalho. A criança precisa da arrelia das brincadeiras, e a humanização do mundo passa — como um espaço de folguedo, flozô e furdunço — pelo encantamento radical da rua.
Nota do editor: Este texto faz parte do livro "O corpo encantado das ruas", publicado em 2019 pela editora Civilização Brasileira, e foi cedido pelo autor para esta publicação.