"Criado originalmente para o jornal Homeland - News from Portugal – representação portuguesa na 14ª Exposição Internacional de Arquitectura – La Biennale di Venezia 2014".
Entre o exótico e o periférico, Portugal permanece (até para os portugueses) uma coise indecifrável. O passado mítico e o futuro opaco colidem num presente de crise e banalidades – fados trágicos, agora que a crise veio outra vez cobrar às gentes desta terra condenadas a oscilar entre o fausto e a decadência sem nunca se ter achado a medida justa entre as duas. Já nos aconteceu mais vezes ter perdido o fio da narrativa; começar coisas sem as acabar.
Na introdução da obra de referência de François Lyotard, “La condition postmoderne”, 1979, o autor afirma que a pós-modernidade é sobretudo uma atitude de desconfiança face às grandes narrativasda modernidade. Não se trata, por isso, de instituir o final de uma era e o começo de outra; trata-se antes de uma re-escrita de alguns traços reivindicados pela modernidade. A hipermodernidade(Baudrillard), a sobremodernidade (Marc Augé) ou a modernidade tardia (G.Vattimo), constituem outras tantas designações sobre as ilusões das certezas do conhecimento – conhecer para prever, como defendia Auguste Comte -, da racionalidade, da tecno-ciência, do Estado, da democracia e do capitalismo como garantia de continuidade e eficácia do progresso do progresso.
Afirmar que Portugal é pós-moderno sem ter sido moderno, equivale a três afirmações simultâneas:
- o carácter incipiente, descontínuo e tardio da modernização numa sociedade e num território marcados pelas assimetrias e pela hegemonia de Lisboa;
- a conservação de características pré-modernas;
- a colisão destas duas características num país a braços com a sua inscrição múltipla no quadro da União Europeia e da globalização num cenário de persistência da crise económica e do aprofundamento das desigualdades sociais e territoriais.
É Boaventura Sousa Santos um dos autores que melhor explica esta condição híbrida da portugalidade, o seu profundo exotismo como resultado de um processo de desenvolvimento semi-periférico -“… durante muitos séculos, Portugal foi simultaneamente o centro de um grande império colonial e a periferia da Europa (…) foi o único país colonizador a ser considerado por outros países colonizadores como país nativo ou selvagem ”. [1]
É esta a terra incognita que, falhada a modernização – à maneira iluminista do séc. XVIII; em forma de industrialismo no séc XIX; nos anos cinzentos da ditadura do Estado Novo, 1933-74; e durante a intensidade modernizadora do período pós adesão à União Europeia, sobretudo durante a década de 90 -, nos aparece agora com todos os seus mistérios, incompreensões e seduções. Entretanto, os portugueses emigram (as usual).
Antes, eram os tipicismos regionais longamente romanceados e ilustrados pelas suas paisagens, que forneciam um doce e tóxico veneno para ilustrar a invencível alma lusitana e os seus heróis. Invariavelmente posicionado num passado mitificado, Portugal vivia a sua fantasia nostálgica como fuga à realidade.
Agora, sem o xarope se ter esgotado, as paisagens desconstroem-se e atropelam-se nas suas próprias mitologias. Um desassossego. Se a paisagem e as suas narrativas e representações são constitutivos poderosos da identidade, que identidade se construirá então que não seja a própria sensação de estilhaçamento e de perda de identidade?
Ao cosmopolitismo moderno que tudo nivelava pela razão universal, contrapõem-se agora a modernidade radical, sem os travões que ainda há pouco tinha: o Estado cede perante “os mercados”, instância de regulação social de tudo; a ciência, cada vez mais universal, navega ao sabor dos seus sucessos tecnológicos conseguidos com dinheiro das macro-empresas globais; o indivíduo dispersa-se nas suas múltiplas referenciações e pertenças quase tribais; a democracia desfeita em éter irá para a internet… . Vivemos num presente permanente, numa cultura-mundo[2] que tudo processa entre massificações globais e localismos neo-tradicionais.
A geografia deste ataque de nervos desenrola-se entre formas espontâneas de urbanização como a Rua da Estrada, e o total abandono dos territórios deixados por processos recentes e radicais de desruralização. Com a perda do mundo rural tradicional – da agricultura familiar de autosubsistência e seus tradicionalismos -, perderam-se os jardineiros da paisagem e abriu-se uma crise de sentido e de enchimento mitológico dos campos e da vida no campo.[3] Pontualmente, na geografia diversa do país, do Vinho do Porto ao azeite ou ao leite, a nova agricultura hipermoderna e global produz paisagens tecnológicas em tudo distintas da paz que havia nos campos. Pelo meio ficam todas as combinações possíveis que nem cabem na mediatização da cidade e do urbano enquanto centro Histórico, nem no campo enquanto Aldeia Típica.
A urbanização extensiva assume formas e dimensões geográficas extremamente variadas a caminho de uma quase indiferença locativa, tanta quanta a extensão territorial dos sistemas sócio-técnicos que possibilitam a urbanização – as próteses infraestruturais que suportam a mobilidade de pessoas, bens, informação, energia, água, esgoto,… Radicalmente moderno, dir-se-ia, sem as complicações modernistas dos zonamentos e outras ilusões de ordem. As arquitecturas são as mais variadas, de múltiplo feitio e procedência transgénica. O projectista e o bricoleur podem finalmente conviver sem a desconfiança dos selvagens ou dos virtuosos.
Os habitantes deste espaço são os portugueses cada vez mais espalhados pelo mundo e, ocasionalmente, em sua terra de origem. Há 40 anos viviam em ditadura e tinham um império. Em 1974 houve uma revolução, desfez-se o império, instaurou-se a democracia e a modernização veio a galope; em pouco mais de trinta anos o país mudou mais do que em toda a sua história; agora estamos em crise numa Europa esfumaçada – pós-modernos sem ter sido modernos; europeus e periféricos; nómadas na era da globalização.