"História de uma lobotomia", uma pesquisa sobre a cidade murada de Kowloon

Após uma pesquisa profunda sobre Hong Kong e a hiperdensificada cidade murada de Kowloon, "História de uma lobotomia" coloca em dúvida a história oficial contada sobre o que foi o local mais densificado do planeta (1.900.000 habitantes por km²) até sua demolição total por parte das autoridades de Hong Kong em 1994.

Ao longo de quatro exercícios teóricos e gráficos (Mapeamento de uma disputa, Regime Anarquista, A idéia do que é legal e Lobotomias) os arquitetos espanhóis David Jímenez Iniesta e María Ángeles Peñalver Izaguirre questionan os principais axiomas que dão forma ao mito.

Na continuação, conheça a pesquisa "Hostória de uma Lobotomia", finalista da última edição dos Prêmios IS ARCH.

História de uma lobotomia, uma pesquisa sobre a cidade murada de Kowloon - Mais Imagens+ 13

Segundo os pesquisadores, este projeto começa com a definição de seu título. Entendemos o termo lobotomia, neste caso, como "uma amnésia induzida. A reescrita da história a partir da amputação de um organismo dissidente".

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

Qualquer acontecimento histórico, estudado a partir do presente, implica em admitir como válido um discurso hegemônico que, invariavelmente, é político e esta embasado em alguma forma de exclusão. Sempre existem outras possibilidades que foram reprimidas e que podem ser reativadas. Neste sentido, o estudo da obra de Chris Ware foi convertido em um dos principais pilares deste projeto. "Fabricar Histórias" é um livro que na realidade é uma sucessão de formatos e dimensões diferentes mas cuja principal característica é não ter nem início nem fim, onde o leitor, não fica dentro nem fora, mas no tecido da história.

Com a intenção de ser coerentes com isto, o projeto é conformado por vídeos, desenhos, textos, um livro,...

O QUE É?
O livro História de uma lobotomia coloca em dúvida a história oficial contada sobre a Cidade Murada de Kowloon, com a intenção de desmontar ao longo de quatro exercícios teóricos e gráficos os principais axiomas que dão forma a um mito.

COMO É?
O projeto é constituido de quatro exercícios independentes:

01. MAPEAMENTO DE UMA DISPUTA.

Escolhendo Kowloon como uma região de fronteira por excelência, estabelecemos um discurso para analisar esses lugares em conflito fugindo das posturas simplistas de grupos.

Frente à abordagem do estudo em relação à problemática do enclave como uma árvore de posturas simples em conflito (britânicos contra chineses, colonialistas contra anticolonialistas, a favor e contra a demolição) existe uma polarização moral mais complexa que se complica devido ao grande número de atores que intervém na mesma.

O mapeamento de disputas foi concebido como um kit de ferramentas que permitem analisar situações complexas tratando de se aproximar do conflito da maneira mais objetiva possível. Nós tratamos de transportar estas ferramentas para a linguagem gráfica, colocando toda a informação existente sobre o local em três documentos.

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

Os dois primeiros representam a complexa e interativa relação entre a China e suas colônias e entre Hong King e a Cidade Murada de Kowloon. Uma relação caracterizada pelos esforços da China para deslegitimar o grupo contrário mas utilizando as colônias como porta de entrada de capital estrangeiro.

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver
Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

No entanto, o principal inconveniente era gerar uma abordagem em relação a este conflito de maneira mais objetiva e imparcial possível. Como dissemos antes, dentro desta disputa há uma grande quantidade de atores e nem todos atuam em igualdade de condições. Quanto mais numerosos e parciais são as perspectivas a partir de qual fenômeno é considerado, mais objetiva e imparcial será sua observação.

O terceiro mapeamento recorre, em um mesmo documento, a uma grande parte dos atores participantes na disputa, a evolução da mesma na linha do tempo, e as particularidades do objeto arquitetônico.

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

02. REGIME ANARQUISTA

“A Cidade Murada se converteu na mais rara das coisas, um modelo de trabalho da sociedade anarquista. Inevitavelmente, foi o meio de cultura para todos os vícios que os inimigos do anarquismo denunciam.”

- POPHAM, Peter. Crítico de Arquitetura. Extraído de um capítulo de CITY OF DARKNESS

Em 1999, sete anos após o desalojamento e a demolição da Cidade Murada, foi publicado o livro "City of Darkness" de Ian Lambot e Greg Girard, composto por fotografias e depoimentos escritos que descrevem o "espírito" da extinta Cidade. Em 2013, o South China Morning Post publicou um infográfico do ilustrador espanhol Adolfo Arranz, comemorando o vigésimo aniversário da demolição da Cidade Murada intitulado "City of Anarchy". O termo "anarquia" está sendo bem utilizado neste caso? Era a Cidade Murada um lugar anárquico? O uso deste termo, para se referir à Cidade Murada, não desvaloriza o sentido profundo desta filosofia?

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

Com este documento, pretendemos identificar as instituições e associações políticas criadas pelos vizinhos, mas também os pactos que surgiram pela convivência diária, as normas de construção que não estão escritas, as tecnologias que davam suporte a estes acordos e os negócios vinculados a eles. Definitivamente, uma arquitetura que é o reflexo extremo da participação dos cidadãos em sua construção.

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

A partir desta informação propomos a construção de uma arquitetura manifesto, uma Amostra Política. Um protótipo centrado em reconhecer as tecnologias produto ou objeto destes pactos projetados sobre um bloco hipotético de escadarias de 14 andares. Uma arquitetura (como diria Andrés Jaque) que ao invés de eliminar os conflitos ou buscar soluções, construa uma cotidianidade problemática.

Uma construção que pretende dar representatividade a aquilo que não possui prestígio e fomenta os laços e acordos produzidos em torno da cidade, do espaço privado e do público.

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

03. A IDEIA DO QUE É LEGAL

Histórias sensacionalistas da cidade foram contadas durante este período focado em prostitutas que viviam lá ao invés de seus clientes e cafetões que geralmente vinham de fora. Também sobre os viciados que dormiam em becos, enquanto os traficantes que trazíam a droga para a cidade eram mascarados. Ou também, nos funcionários que administravam as operações de jogos na cidade e não nos jogadores que trouxeram o dinheiro para os bairros circundantes ou gangues que dirigiam as operações fora da cidade.

O comportamento imoral foi tomado como emblema dos residentes da Cidade Murada, mas apenas incidental na vida dos intrusos.

HARTER, Seth. Professor de estudos asiáticos. Extraído de Hong Kong’s Dirty Little Secret

A Cidade Murada de Kowloon tem aparecido em inúmeros filmes e mangás durante os últimos 30 anos e, apesar de seguir sendo fonte de inspiração para muitos diretores, a maioria destes filmes são de classe B e carecem de qualidade, mas o que é realmente interessante neles é o cenário e os protagonistas. A cidade aparece sempre como um lugar infestado de ratos, os protagonistas são sempre policiais ou meliantes, e as tramas se desenvolvem em becos escuros, prostíbulos...

Cinema e ficção se tornam ferramentas de construção da subjetividade.

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

Este terceiro exercício investiga a importância dos mecanismos de clandestinidade que são reflexo da instabilidade espacial e funcional da cidade. Estes mecanismos são, por vezes, um espaço ou um objeto físico, mas outras vezes são protocolos, senhas ou até pessoas.

Da mesma forma que no exercício anterior tratamos de imaginar um protótipo. Uma tecnológica instável, uma bugiganga heterogênea que é um ferro velho, uma caminhonete, um restaurante de carne de cachorro, um táxi, a cozinha da senhora Wong...

Uma arquitetura que implica uma lógica difusa em sua construção e em que os espaços são uma coisa e outra ao mesmo tempo. Paralelamente a isto, mostrar o papel que a Cidade Murada desempenhava na sociedade de Hong Kong através de uma arquitetura que se move pela Cidade.

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

04. LOBOTOMIAS

O último exercício investiga o papel que as cópias arquitetônicas desempenham como construções políticas capazes de representar as originais. Estas cópias permitem reescrever a história ou omitir sucessos como se jamais tivessem ocorrido.

Este exercício é composto de 2 documentos.

O primeiro é um arquivo de analógico. Uma recompilação inacabada e expansível das cópias ao longo da história da arquitetura organizadas em torno de 8 mecanismos projetuais e visa estabelecer um debate sobre a cultura da cópia no Ocidente e no Oriente.

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

Mas, o que isto tem a ver com a Cidade Murada?

Com base nisto, o segundo documento representa estas partes omitidas em outra arquitetura. O parque, que pretende ser um memorial do lugar, apresenta-se como um refúgio de paz, onde há apenas um edifício original, alguns canhões antigos e uma maquete do local. O que não é mostrado são as 33.000 pessoas desalojadas, o processo de demolição e as disputas que foram geradas ou os sem-teto que a destruição deste bairro deixou.

Cortesia de David Jiménez e María Ángeles Peñalver

Da mesma forma ocorrem nos recreativos, com foco no período do vício mas ignorando a vida cotidiana de seus residentes.

O documento é visível através de dois estudos de caso. O efeito produzido por dois tipos de copia. Os elementos grafados em rosa, quando iluminados por uma luz vermelha desaparecem, criando o mesmo efeito produzido pelas lobotomias na omissão de partes da história.

CONCLUSÕES

Dissemos no início que o estudo de qualquer acontecimento histórico é político. Este projeto também o é. O estranho, o indigente, o precário, imediato...são qualidades deste espaço urbano que, em grande parte das discussões acadêmicas, pelo menos na arquitectura, são omitidas pela má qualidade das suas propostas. Nós gostaríamos de defender esta arquitetura e seus habitantes como modelos de capacitação, participação e dissidência.

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Sobre este autor
Cita: Valencia, Nicolás. ""História de uma lobotomia", uma pesquisa sobre a cidade murada de Kowloon" ["Historia de una lobotomía", una investigación sobre la ciudad amurallada de Kowloon] 14 Dez 2014. ArchDaily Brasil. (Trad. Stofella, Arthur) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/758742/historia-de-uma-lobotomia-uma-pesquisa-sobre-a-cidade-murada-de-kowloon> ISSN 0719-8906

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