Rem Koolhaas pergunta: As cidades inteligentes estão condenadas à estupidez?

Originalmente publicado pela Comissão Europeia como parte da série "Digital Minds for a New Europe", esse artigo é uma transcrição editada de uma palestra proferida por Rem Koolhaas no encontro High Level Group sobre cidades inteligentes [Smart Cities] em Bruxelas no dia 24 de setembro de 2014.

Eu tive uma sensação de vazio enquanto ouvia as palestras dessas proeminentes figuras do campo das cidades inteligentes porque a cidade costumava ser o campo do arquiteto, e agora, francamente, eles fizeram dela seu domínio. Essa transferência de autoridade foi alcançada de um modo esperto ao chama-las cidades inteligentes - e ao chama-las de inteligentes, nossas cidades estão condenadas a serem estúpidas. Aqui estão algumas reflexões sobre a cidade inteligente, algumas das quais são críticas; mas ao cabo, está claro que aqueles na esfera digital e os arquitetos terão que trabalhar juntos.

REGIME ¥€$

A arquitetura costumava tratar da criação de comunidades, e fazer o máximo de esforço para simbolizar aquelas comunidades. Desde o triunfo do mercado econômico no final da década de 1970, a arquitetura deixou de expressar os valores públicos e, ao invés disso, passou a expressar os valores do setor privado. Isso é de fato um regime - o regime ¥€$ - e ele invadiu todos os domínios, queiramos ou não. Esse regime teve um grande impacto nas cidades e no modo como compreendemos as cidades. Com segurança e proteção como argumentos de venda, a cidade se tornou muito menos aventureira e mais previsível. Para completar a situação, quando o mercado econômico ganhou força no final dos anos 1970, os arquitetos pararam de escrever manifestos. Paramos de pensar sobre a cidade no mesmo exato momento da explosão da substância urbana do mundo em desenvolvimento. A cidade triunfou no preciso momento que a reflexão sobre a cidade cessou. A cidade "inteligente" aproveitou esse vácuo. Mas sendo corporações comerciais, seu trabalho está mudando as noções da própria cidade. Talvez não seja coincidência que cidades "habitáveis" - planas - como Vancouver, Melbourne e mesmo Perth estejam substituindo as tradicionais metrópoles em nosso imaginário.

No final dos anos 1970, “paramos de pensar sobre a cidade no mesmo exato momento da explosão da substância urbana do mundo em desenvolvimento.” Isso pode ser visto no movimento Novo Urbanismo, que a partir do início dos anos 1980 tentou restituir princípios tradicionais de projeto urbano. Mostrado aqui, Seaside, Florida, no início da construção em 1981. Imagem © Flickr CC user Paigeh

RETÓRICA APOCALÍPTICA

O movimento cidade inteligente é hoje um campo muito cheio, e, portanto, seus protagonistas estão identificando uma diversidade de desastres que podem ser evitados. Os efeitos da mudança climática, o envelhecimento da população e da infraestrutura, as previsões de água e energia são todos apresentados como problemas para os quais as cidades inteligentes têm a solução. Cenários apocalípticos são geridos e mitigados por soluções baseadas em sensores. A retórica das cidades inteligentes se baseia em slogans - "arrume encanamentos com vazamento, salve milhões". Tudo salva milhões, não importa o quão insignificante seja o problema, simplesmente por causa da escala do sistema que será monitorado. A motivação comercial corrompe a própria entidade que ela deveria servir... Para salvar a cidade, talvez tenhamos que destruí-la...

Quando olhamos a linguagem visual através da qual a cidade inteligente é representada, é geralmente através de cantos arredondados infantis e cores vibrantes. Os cidadãos que a cidade inteligente diz servir são tratados como crianças. Somos alimentados com ícones bonitinhos de vida urbana e dispositivos inofensivos, unidos por agradáveis diagramas nos quais cidadãos e negócios são cercados por cada vez mais círculos de serviços que criam bolhas de controle. Por que as cidades inteligentes oferecem apenas aperfeiçoamentos? Cadê a possibilidade de transgressão? E, em vez de descartar a inteligência urbana acumulada ao longo de séculos, devemos explorar aquilo que é hoje considerado "inteligente" com eras precedentes de conhecimento.

SE PREFEITOS GOVERNASSEM O MUNDO

O movimento cidade inteligente está focando no fato recente de que mais de 50% da população mundial vive nas cidades. Portanto, os prefeitos têm sido apontados como os clientes ou iniciadores das cidades inteligentes. Prefeitos são particularmente suscetíveis à retórica da cidade inteligente: é muito atraente ser um prefeito inteligente. O livro "If Mayors Rules the World" propõe um parlamento global de prefeitos.

Essa confluência de retóricas - a "cidade inteligente", a "classe criativa", e "inovação" - está criando um argumento de consolidação cada vez mais forte. Se você ver a sala de controle de uma cidade inteligente, como aquela da IBM no Rio de Janeiro, você começa a se perguntar sobre a extensão do que está realmente sendo controlado.

CONFORTO, SEGURANÇA, SUSTENTABILIDADE

Por ser apolítica em suas declarações, também temos que questionar as políticas por trás das melhorias que a cidade inteligente oferece. Uma nova trindade está em jogo: os tradicionais valores europeus de liberdade, igualdade e fraternidade foram substituídos no século XXI por conforto, segurança e sustentabilidade. Eles são agora os valores dominantes de nossa cultura, uma revolução que mal foi registrada.

SALA DE JULGAMENTO

O carro é um elemento essencial na cidade inteligente. Ele está sendo equipado com complexos dispositivos de monitoramento. Por um lado, os dispositivos melhoram o comportamento dos motoristas, mas por outro, criam um alto grau de vigilância. Não estou convencido de que o público receberá bem esse grau de monitoramento. Prefiro que o carro não seja uma sala de julgamento.

GAIOLA ELÉTRICA

Nos dois últimos anos nós, juntamente com a Harvard Graduate School of Design, buscamos elementos arquitetônicos - como a parede, o piso, a porta, o forro, a escada - e vimos como eles estão evoluindo atualmente. Se a cidade é cada vez mais um sistema de vigilância integrado, a casa está se tornando uma célula automatizada responsiva, repleta de dispositivos como janelas automáticas que você pode abrir apenas em determinadas horas do dia; assoalhos com sensores que registram a mudança de posição das pessoas; espaços que não são aquecidos completamente, mas, em vez disso, rastreiam seus moradores e os envolvem em bolhas de calor. Em breve uma gaiola elétrica será um componente necessário em qualquer casa - um lugar seguro para fugir dos sinais digitais.

Grafite em San Francisco demonstrando as tensões entre os trabalhadores do Vale do Silício e outros habitantes. Imagem via Affordable Housing Institute

POLÍTICAS

A retórica das cidades inteligentes seria mais persuasiva se o ambiente que as companhias de tecnologia criam fosse realmente convincente, oferecendo modelos daquilo que a cidade pode ser. Mas se você olha o Vale do Silício, você vê que as maiores inovações no campo digital criaram ambientes suburbanos sem graça que estão se tornando cada vez mais exclusivos, suas bolhas tecnológicas isoladas da esfera pública. É uma surpresa que o movimento digital esteja encontrando oposição à sua própria porta. Cidades inteligentes e política divergiram e cresceram em mundos separados. É absolutamente crítico que as duas convirjam novamente.

Sobre este autor
Cita: Rem Koolhaas. "Rem Koolhaas pergunta: As cidades inteligentes estão condenadas à estupidez?" [Rem Koolhaas Asks: Are Smart Cities Condemned to Be Stupid?] 30 Dez 2014. ArchDaily Brasil. (Trad. Baratto, Romullo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/759569/rem-koolhaas-pergunta-as-cidades-inteligentes-estao-condenadas-a-estupidez> ISSN 0719-8906

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