Do alto do miradouro do morro do convento se vê a praça histórica, implantada aos seus pés, local de fundação da cidade por Martim Afonso há quase cinco séculos. Dessa época colonial são testemunhos os edifícios da Igreja Matriz e da Casa de Câmara e Cadeia –brancos, caiados–, colocados em posição de destaque na ágora. Encostada ao morro, a ferrovia passa entre os elegantes arcos que estruturam a rampa de subida ao convento, dividindo a cidade em duas e marcando o fim do centro histórico.
Nesse local de densidade histórica o arquiteto Vilanova Artigas projetou, em 1959, uma das grandes referências da arquitetura paulista, a Escola de Itanhaém, construída do outro lado da linha férrea, de frente para a antiga estação. A essa época de urbanização ainda incipiente a escola aparecia branca e soberana ao pé do morro do convento, o que tornava intensa sua relação com a parte antiga da cidade.
A escola de Itanhaém inicia uma série de projetos das décadas de 60 e 70 nos quais Artigas e outros grandes nomes da arquitetura paulista como Paulo Mendes da Rocha e Flávio Motta traçaram caminhos de grande especulação estrutural e espacial, dispostos a vincular de maneira visceral o projeto de arquitetura ao pedagógico. A escola, pensada como edifício exemplar, de vanguarda, servia ao propósito de mostrar o esforço público na educação de cidadãos pensantes, evidenciando a ideia de que o espaço educacional deve proporcionar algo além do previsto na grade horária ou no livro didático.
“Alfabetizar não basta, nem é essa a finalidade da escola no mundo moderno”; “Nessa procura de rumos, (...) constroem-se escolas cuja arquitetura reflete talvez melhor do que qualquer outra categoria de edifícios, as passagens mais empolgantes de nossa cultura artística; os recursos técnicos que tivemos à disposição; as ideias culturais e estéticas dominantes”.[1]
Artigas experimentou pela primeira vez em Itanhaém estratégias de projeto que foram aprimoradas posteriormente em projetos consagrados como o Ginásio de Guarulhos e a Faculdade de Arquitetura da USP, sua obra prima. Na escola de Itanhaém surge a cobertura única como superação da fragmentação espacial que caracterizava os edifícios educacionais das décadas anteriores, assim como a solução estrutural em sequência de pórticos que se tornam mais esbeltos à medida que se aproximam do solo, em demonstração das potencialidades plásticas e estruturais do concreto armado.
Horizontalmente alongada e com pequena altura a escola insere-se de maneira discreta na paisagem da baixada, reafirmando a geografia local e preservando o histórico morro do Itaguaçu como único acidente geográfico do lugar. O protagonismo do relevo é ainda ressaltado pela orientação do acesso da escola para a frente do convento, revelando-lhe o painel do pernambucano Francisco Brennand que retrata o padre Anchieta em seus passos evangelizadores pela região e nos lembra do confronto cultural que nos gerou. O modo como Artigas se apropria da memória de maneira não literal nos mostra que a história herdada não é somente coisa de museu, mas é matéria-prima fundamental para a produção humana que se pretenda capaz de injetar novos significados na realidade existente. Preservar a memória não significa um sentimento saudosista em relação ao passado, mas um entendimento da história como processo, relação dinâmica entre passado e presente.
A escola surge desta atitude em relação aos séculos que a antecederam. Livre das simplistas mimetizações da arquitetura histórica, tem importância na construção do pensamento moderno na arquitetura brasileira, para o qual a obra deve ser reflexo da mentalidade e das potencialidades da sociedade contemporânea. Densamente povoada de história, inovadora dos pontos de vista estrutural, espacial e plástico e amplamente reconhecida pela crítica arquitetônica, o ginásio de Itanhaém tem importância além do âmbito local e ocupa posição fundamental na obra de Artigas sendo, portanto, digno de tombamento pelo órgão estadual de patrimônio, o CONDEPHAAT.
No entanto, além da relevância de um título de proteção como o tombamento, é certo que o patrimônio só está seguro quando atua a consciência coletiva do que nos representa, ou seja, do que confere sentido ao espaço que habitamos. A partir do olhar atento sobre as nossas cidades revelam-se as riquezas esquecidas, as vocações latentes e os espaços que estão esperando reconhecimento e apropriação física. Porque é só quando a sociedade se apropria do que é seu que se garante que o vão do MASP não será fechado e que não serão construídas as doze torres de luxo em área pública no cais Estelita, no Recife.
O entorno da escola de Artigas é um destes espaços que merecem ser ocupados. O leito ferroviário transformado em parque, a antiga estação reativada como ponto de parada do trem que percorrerá toda a baixada. E o ginásio utilizado no seu potencial de suporte da memória, âncora de um projeto urbano para os arredores do centro histórico que conecte os percursos desatados e faça ressoar as vozes da arquitetura colonial, da cultura caiçara, da pesca, do surf e da navegação, enfim, de tudo que já está ali, carente de incentivo e reinvenção.
Em Itanhaém como em outras cidades o (re)conhecimento da história e dos patrimônios locais é que vai balizar a escolha de intervenções urbanas ajustadas às potencialidades e identidades do lugar. Intervenções pensadas a partir dos aspectos representativos da nossa cultura, daquilo que temos de singular, não tomando estes elementos como um conjunto de valores estáticos, definidos no passado, mas como matéria a ser trabalhada.
Notas
[1] João Batista Vilanova Artigas, "Sobre escolas", em Caminhos da Arquitetura, Cosac & Naify, São Paulo, 2004, p.122.
Diogo Cavallari é arquiteto e urbanista graduado pela FAUUSP em 2012 e pela Universidade Técnica de Lisboa (UTL) em 2011. É sócio do escritório AUÁ arquitetos, fundado em 2013.
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