Por Rui Pereira, Rute Silva e Nuno Fonseca
A calçada portuguesa é um pavimento de grande herança histórica, grande parte das ruas e praças de Portugal encontra-se revestida com este material. No entanto com a preocupação cada vez maior em relação á mobilidade, a calçada encontra-se atualmente num grande debate sobre a continuação da sua utilização. Para muitos imprescindível pela sua beleza e identidade, para outros um obstáculo à circulação do peão.
Pretende-se assim perceber se a calçada continua a ser o pavimento de eleição ou se começa, gradualmente, a ser substituída por outros tipos de materiais, tendo em conta os aspetos estéticos, os custos e sem descurando uma mobilidade segura para o peão.
A História da Calçada Portuguesa
A calçada Portuguesa teve o seu início em meados do século XIX. Com uma tecnologia de construção e uma herança histórica semelhante aos mosaicos Romanos, a calçada é o tipo de pavimento mais usado em espaços públicos e principalmente em passeios, não só em Portugal mas também em países lusófonos (ex-colónias portuguesas).
A primeira vez que se tem conhecimento da sua aplicação foi em 1842, na cidade de Lisboa. O primeiro desenho a ser reproduzido foi um “zig zag”, obra mandada executar pelo Governador de armas do Castelo de São Jorge, o Tenente-general Eusébio Pinheiro Furtado e executado por presidiários. Após esta primeira experiência foram disponibilizadas verbas para a aplicação de calçada na praça do Rossio, uma das praças mais conhecidas da capital Portuguesa, este trabalho demorou 323 dias onde se cobriu uma extensão de 8712 m². Rapidamente os passeios de Lisboa começam a ser calcetados, bem como algumas avenidas, largos, praças e a baixa da cidade. Lisboa começa assim a ser conhecida também pelo seu pavimento que começa também a formar desenhos mais elaborados. Ao longo dos tempos esta arte foi-se espalhando pelo país e pelas colónias, sempre ligada à sofisticação e bom gosto. Visto ser este um produto de grande prestígio, a calçada portuguesa deixou de ter um uso exclusivo do exterior, passando também a ser aplicada em espaços interiores, tanto privados como públicos, como zonas comerciais e escritórios[1].
Em 1989 foi criada uma escola de calceteiros em Lisboa, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e em 2006 foi criada uma estátua de homenagem aos calceteiros, na Rua da Vitória, em plena baixa pombalina, esta peça foi da autoria de Sérgio Stichini, como louvor ao trabalho dos calceteiros.
A pedra da Calçada Portuguesa
A Calçada Portuguesa resulta do acumular e conjugar de pedras de pequenas dimensões e formas irregulares, que são calcetadas de forma a constituírem padrões decorativos. Geralmente os tipos de pedra mais utilizados são o calcário e o basalto, sendo as cores mais vistas o branco e o preto, por vezes também conseguimos encontrar o tom castanho e o vermelho.
A pedra utilizada na aplicação na calçada portuguesa, obedece a algumas características específicas, dai nem todas as pedreiras extraem este tipo de pedra. Atualmente em Portugal os principais produtores de calçada, encontram-se na área de Leiria e Santarém, ao contrário do que se passava á décadas atrás onde só na região de Lisboa existiam mais de 80 pedreiras. A exploração de calcário branco é das menos interventivas, conseguindo obter a matéria-prima entre os 3 a 5 metros de profundidade, faz com que a restruturação ambiental seja feita também num período de tempo mais curto[2].
A extração da pedra é feita com uma giratória ou com explosivos, sendo a etapa seguinte a subdivisão da rocha acompanhando várias etapas de corte até chegar ás dimensões que conhecemos de pedras da calçada. Estas pequenas pedras são depois colocadas em enormes sacos, os chamados big bag, utilizados para o transporte da calçada.
Em Portugal temos 5 cores de calçada, a pedra branca, a pedra preta, a pedra cinzenta escura, a pedra cinzenta clara e a pedra rosa. Estas tonalidades de pedra podem ser encontradas de 4 tamanhos diferentes, designados por grossa, com 12 a 13 cm, a meia pedra, de 9 a 11 cm, a miúda, com 5 a 7 cm e a miudinha com 4 a 5 cm. Esta diferença de dimensões e cores é aproveitada para se conseguir um maior número de conjugações criando assim desenhos diferençados e elaborados. Um metro cubico de caçada branca pesa em média cerca de 1300 kg, as restantes cores atingem os 1350 kg, variando este peso, consoante o calibre da pedra. Os diferentes tamanhos das pedras são aplicados segundo o tipo de espaço[3].
A aplicação da Calçada Portuguesa
A aplicação fica a cargo dos calceteiros que têm como primeira tarefa a compactação do piso, aplicando uma camada de “tout-venant” que será compactado. De seguida é colocada uma camada de pó de pedra ou areia, onde irá ser encaixada a calçada. Depois da aplicação da pedra, esta é coberta com pó de pedra, areia e por vezes também uma percentagem de cimento, sendo esta mistura varrida para que preencha o mais possível as juntas. O processo seguinte é a compactação, que é feita de modo manual com um maço ou de forma mecânica, com uma vibratória. Os desenhos são primeiro criados e transferidos para moldes em ferro ou PVC, onde é preenchido a envolvente e posteriormente o desenho. A calçada pode ainda ter outro tipo de acabamentos, o polimento, mais usado em calçada aplicada no interior de edifícios, este tratamento tem custos elevados. Sem os custos extra do acabamento, este material, pela sua extração, a pedra de cor branca pode ir dos 55 a 150 euros o metro cúbico, consoante o calibre da pedra, e as pedras com cor podem variar entre os 50 a 280 euros o metro cúbico, variando mais uma vez o preço consoante a cor e o tamanho da pedra. Como produto final este tipo de pavimento atinge valores de 15 a 40 euros o metro quadrado, este intervalo de valores varia conforme o tamanho e a cor da pedra.
Em termos de custos totais de aplicação, como é possível verificar nos quadros em anexo, o custo da Calçada Portuguesa apresenta valores médios quando comparado com outros tipos de pavimentos exteriores, ficando pelos 34.24 euros/m2, isto segundo dados extraídos do gerador de preços online[4]. Segundo a mesma fonte o custo dos paralelepípedos pré-fabricados de betão fica em 26.22 euros/m2, solução similar à Calçada Portuguesa, o custo das lajetas de betão fica em 47.28 euros/m2, solução com melhores características técnicas, o custo das lajetas de pedra natural fica em 99.98 euros/m2, material similar à anterior mas de elevado valor estético, o custo do piso contínuo drenante fica em 91.87 euros/m2, piso utilizado essencialmente nas ciclovias mas confortável e comodo para se percorrer a pé.
Acessibilidade da Calçada Portuguesa
Com os diversos Planos de acessibilidade Pedonal que têm sido criados em diversas cidades de Portugal, surgem as diversas questões sobre os tipos de pavimentos aplicados. Lisboa prevê até 2017 implementar soluções que eliminem todas as barreiras arquitetónicas existentes e levantou a questão da permanência ou remoção da calçada. Enquanto para muitos a calçada é vista como património cultural, parte da identidade e história, para outros a calçada é vista como uma barreira à boa mobilidade do peão.
Quando o Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa, foi apresentado, surgiram de imediato vozes contra, mas também a favor das propostas apresentadas. O coordenador da elaboração deste plano justifica a proposta com a frase «a cidade não está preparada para o tsunami demográfico que está a acontecer» – Pedro Homem de Gouveia, o envelhecimento da população[5]. A proposta não passa pela remoção total da calçada, mas por uma conjugação desta com outros tipos de pavimentos que permitam uma maior facilidade e segurança de locomoção dos peões, e Pedro Homem de Gouveia, o coordenador desta proposta, levantou questões como as dimensões de algumas ruas e passeio, o facto de muitas vezes termos os passeios invadidos de carros e a dificuldade que a população que vive a cidade diariamente tem em percorrer determinados espaços, principalmente a população mais idosa que é a que por causas naturais apresenta já mais dificuldades na sua locomoção. Como pontos fracos apresentados surgem o proporcionamento de quedas, a manutenção elevada e a falta de profissionais especializados. Contrapondo estas questões, Luís Marques da Silva, membro do Fórum Cidadania Lisboa, alegou a falta de fiscalização e manutenção nesta área, fazendo com que o trabalho não apresente rigor na sua execução, gerando problemas futuros. Outra questão levantada por Carina Brandão, membro da Lisboa (In)Acessível, é o desconforto por parte das pessoas em cadeira de rodas ao percorrer este tipo de pavimento, levantando esta organização uma questão pertinente, o que seria mais importante defender, se o património ou o cidadão.[6] Aline Hall de Beuvink, diretora da Associação de Defesa do Património de Lisboa, interrogou-se sobre as intenções da câmara, refutando que não acredita na intenção manter a calçada, esta acredita que aos poucos a calçada acabará por desaparecer, relembrando que já foi retirado a calçada do Terreiro do Paço e da Rua da Vitória. Ficou ainda esclarecido neste debate que estão em estudo outras possibilidades de tratamento da calçada, como por exemplo a utilização de produtos antiderrapantes, no entanto todas as opções a serem estudadas estão também condicionadas pelos produtos e materiais existentes no mercado, ficando sem resposta a questão de Pedro Homem Gouveia queremos “Uma cidade para quem?”[7].
Em diversas outras conversas e debates, existem aqueles que defendem a permanência a cem por cento da calçada e os que não se importam da existência de uma restruturação dos pavimentos das nossas cidades. A revista visão também propôs uma conversa entre Viviane Aguiar, autora do blogue A Casinha da Boneca e Paulo Ferrero, fundador do Fórum Cidadania Lx, sobre as vantagens e desvantagens deste tipo de pavimento, bem como as suas opiniões sobre a sua permanência. “Pedrinhas do Demo” foi como Viviane carinhosamente batizou a calçada portuguesa, apontando alguns dos problemas deste tipo de pavimento, a principal é sem dúvida a dificuldade de locomoção de mulheres com saltos altos, ou a passagem carrinhos de bebés, cadeiras de rodas ou pessoas mobilidade reduzida. Questionou ainda até que ponto se beneficia a parte estética em detrimento da função. Por seu lado Paulo Ferrero, defende a continuação deste tipo de pavimento por este ser um símbolo de Portugal, bastante reconhecido pelos turistas que visitam o país, para além disso é um pavimento natural que contribui para a permeabilidade dos solos e responsável pela luminosidade da cidade[8].
A calçada Portuguesa tem como principais pontos fortes o fato de ser um produto natural, permitir que o solo continue permeável, sendo considerados por muitos como património cultural e elemento que dinamiza a imagem de Portugal. No entanto apresenta algumas fraquezas como a elevada manutenção, o fato de não ser o pavimento mais seguro e confortável de percorrer, a falta de técnicos especializados para uma boa execução destes trabalhos e uma maior degradação do ecossistema devido á exploração deste material. Um investimento nesta área poderia dar oportunidade à criação de formações e postos de trabalho onde se especializassem profissionais na área e a possibilidade de explorar novas técnicas e novo produtos de tratamento da pedra. Contudo ainda permanece o medo do desaparecimento da calçada e perca da identidade de Portugal.
A calçada portuguesa tem o seu valor, quer histórico quer estético, quer funcional, no entanto, em Portugal, tem sido mal executada e com um grande défice de manutenção, obrigando muitas vezes as pessoas a andarem na estrada ou nas ciclovias, pavimentos onde as pessoas se deslocam mais confortavelmente. A sua extinção poderia ser negativa para a imagem de Portugal, no entanto a sua continuação requer análise e procura de soluções para os problemas existentes a fim de assegurar sempre ao cidadão uma maior e melhor mobilidade na sua cidade.
Notas
[1] Henriques, António Manuel Esteves, António A. Casal Moura, Francisco Amado Santos, 2009, Manual da Calçada Portuguesa, Direcção Geral de Energia e Geologia, Lisboa, 2009
[2] Arquitecpura. Calçada Portuguesa, disponível online em http://arquitecpura.pt/index.php?oid=877
[3] Henriques, António Manuel Esteves, António A. Casal Moura, Francisco Amado Santos, 2009, Manual da Calçada Portuguesa, Direcção Geral de Energia e Geologia, Lisboa, 2009
[4] Gerador de custos online, disponível online em http://www.geradordeprecos.info/reabilitacao/RSK/RSK030.html
[5] Pedro Homem de Gouveia, artigo de Guerreiro, Alexandra, 2014. Câmara de Lisboa justifica remoção de calçada por causa do “tsunami demográfico que aí vem”, Lisboa
[6] Alexandra Guerreiro, 2014. Câmara de Lisboa justifica remoção de calçada por causa do “tsunami demográfico que aí vem, Lisboa
[7]@publicop3, 2014. Calçada portuguesa em Lisboa, sim ou não?, Lisboa
[8] Ribeiro, Luís, 2014, Calçada portuguesa, essa horrível beldade, publicado em VISÃO 1085, Lisboa
* Escrito em português de Portugal. Alguns termos são incomuns e/ou utilizados de maneira diferente em português do Brasil.
Membros do projeto re URB. Rui Pereira é arquiteto, engenheiro civil e doutorando na Universidade de Lisboa Faculdade de Arquitetura. Rute Silva, arquiteta formada na Universidade de Lisboa Faculdade de Arquitetura. Nuno Fonseca, mestrando na Universidade de Lisboa Faculdade de Arquitetura.
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