Martin Corullon, fundador do Metro Arquitetos Associados, organizou o livro “Arquitetura em Diálogo” – que reúne dez entrevistas realizadas por Alejandro Zaera-Polo com Rem Koolhaas, Rafael Moneo, Herzog & de Meuron, Jean Nouvel, Álvaro Siza, Enric Miralles, Frank Gehry, Steven Holl, Peter Eisenman, SANAA.
Através das entrevistas presentes no livro é possível se envolver com o discurso dos arquitetos, conhecer mais sobre o que pensam, ler suas reflexões, saber como lidam com as provocações geradas pelo entrevistador e se inspirar.
Nesta entrevista com Martin, não é diferente. Através de sua visão e experiência, o arquiteto compartilha o que pensa sobre a crítica na arquitetura, o Star System, a interdisciplinaridade na disciplina arquitetônica, bienais e outros diversos temas presentes no livro.
Veja a seguir a entrevista completa.
ArchDaily Brasil: Como surgiu a ideia do projeto deste livro? E como foi o processo curatorial?
Martin Corullon: A Cosac Naify tem uma atuação consistente em publicações de arquitetura, a origem da editora é de publicações relacionadas a arte. Criou algumas coleções – como o “Espaços da Arte Brasileira”, por exemplo – que expandiram para alguns arquitetos brasileiros. Depois, fizeram monografias, como o livro sobre a obra do Paulo Mendes da Rocha, que foi importante para o meio da arquitetura.
Mas este importante trabalho estava focado em arquitetos brasileiros e a editora tinha a intenção de trazer outros arquitetos e autores para este debate, a fim de expandir a abrangência da linha editorial da arquitetura. Em reuniões com o editor responsável pela área na editora, Miguel de Castillo, sugeri publicar esse livro, que pode despertar o interesse de um público específico de arquitetura, mas amplo – estudantes, profissionais, críticos – como também outras pessoas interessadas pela disciplina, porém não necessariamente ligadas à arquitetura e não apenas com obras brasileiras.
Como já há ótimos títulos, com conjuntos de ensaios críticos na editora, pensamos em trazer a obra de arquitetos atuantes, mas através de entrevistas. É um modo de trazer visões diferentes, e consistentes, sobre a produção da arquitetura contemporânea de todo o mundo, de uma forma condensada.
Diferente de um artigo acadêmico ou uma memória descritiva, a entrevista traz consigo um tom mais informal dos entrevistados. Neste aspecto, você acredita que a serem instigados por Alejando Zaera-Polo, os arquitetos apresentam uma reflexão mais pessoal sobre suas obras e o que pensam sobre arquitetura?
A entrevista é um formato interessante para o debate sobre a arquitetura, pois nem todos os arquitetos têm uma produção teórica, são poucos os que além de terem uma obra construída, possuem alguma obra crítica ou pesquisa publicadas que sejam interessantes. Muito menos sobre a própria obra.
Um fator importante neste livro é que todas as entrevistas foram feitas pelo mesmo autor, que também é um arquiteto atuante, no campo acadêmico e profissional. Assim, as entrevistas fazem uma ponte entre esses campos e mostram a consistência dos discursos sobre a arquitetura ligados à prática.
O livro em geral apresenta a questão da reflexão dos arquitetos sobre seus próprios projetos. Como você vê esta autocrítica na produção arquitetônica atualmente?
Este livro tem uma reflexão acerca das obras sob a visão dos próprios arquitetos, que junto aos comentários do Alejando Zaera-Polo, demonstra uma maturidade crítica de leitura de arquitetura muito interessante. A ideia do livro é realmente trazer esse tipo de debate, quem sabe contribui para que se torne cada vez mais frequente no nosso meio de arquitetos praticantes.
É importante ressaltar que o livro possui um recorte temporal bem claro: os anos 90. Neste período o debate arquitetônico tinha influência de diversos discursos que a tratavam como uma disciplina do campo da cultura, mas que frequentemente se apropriava de um vocabulário e de conceitos de outras disciplinas. Você pode ver no livro as abordagens psicanalíticas, fenomenológicas, linguísticas, semióticas, que fazem paralelos com outras disciplinas das ciências humanas. Isso ficou um pouco datado. Mas fato de que hoje não seja tão recorrente o uso deste recurso, este empréstimo de outras disciplinas, não quer dizer que não haja um debate consistente. Ele pode se fazer através do uso da própria arquitetura. Você não precisa só descrever para falar de arquitetura, você pode pensar com a materialidade, com o projeto. Há a possibilidade de uma construção conceitual que é feita através de elementos da própria disciplina arquitetônica.
Nota-se no livro que esta questão da interdisciplinaridade na Arquitetura passa a ser muito discutida principalmente na época das entrevistas. Buscam-se inspirações em outros temas como a arte, biologia, geologia, a fim de transformar a disciplina e buscar novas respostas para ela. Atualmente, você enxerga essa interdisciplinaridade como algo já enraizado na Arquitetura?
É datado no sentido de que já foi em certa medida superado. Mas é uma espécie de vício recorrente da disciplina arquitetônica. Há uma dificuldade de falar dentro dos seus próprios termos, sempre tenta fazer uma analogia com algum outro campo de conhecimento. Nessa época as questões da linguística, por exemplo, estavam muito presentes os discursos dos arquitetos.
Hoje há quem faça analogias entre o projeto de arquitetura com processos biológicos, geológicos, sempre tentando se apropriar de um outro conhecimento, de uma outra disciplina, de outras questões. Eu não tenho muito interesse nisso. Eu acho que são mais interessantes os arquitetos que conseguem falar de arquitetura, através de conceitos arquitetônicos, da própria materialidade e recursos da arquitetura.
O próprio Moneo, no livro, diz que “quase todas as explicações dadas por Peter Eisenman sobre seu trabalho alienam a compreensão do mesmo” e recomenda que quem pretende se aprofundar no trabalho do arquiteto, que não siga ao pé da letra as apresentações que ele faz de seus projetos...
Exato, o SANAA faz um esforço enorme para não sair do campo da arquitetura, para falar dos conceitos apenas em seus aspectos arquitetônicos. Assim como Herzog e de Meuron e outros vários arquitetos, que inclusive são os mais jovens do grupo, que possuem uma maior produção hoje. Acho que pode ser uma tendência.
Ainda sobre a questão do livro conter entrevistas da década de 90, percebe-se que termos como a desconstrução, “folding” [dobras], criaram uma dependência da “moda” para os arquitetos. Hoje, com outros termos em destaque, como a sustentabilidade, você enxerga uma linha que seja seguida pela produção arquitetônica ou há mais liberdade? Ou ainda, acredita que estas tendências adquirem um apelo comercial ao contrário do teórico/prático visto naquela época?
O fato das ideias virarem moda não me interessam muito na verdade. A questão é que a arquitetura deve lidar com os problemas da sua época. De fato, a sustentação do planeta e dos ambientes urbanos é uma grande questão, acho natural que isso ganhe relevância. Isto virar um instrumento de marketing é esperado, mas não faz nem mal, nem bem, não tem um rebatimento na qualidade do que possa produzir como arquiteto.
Nesse livro é notável que nos anos 90 a questão urbana aparece pouco. A relação do edifício com o ambiente urbano, ou mesmo a questão da urbanidade como além da arquitetura. Nos últimos anos as grandes bienais têm tematizado a cidade, sem falar de arquitetura no sentido estrito. É curioso que isto também virou uma grande tendência, é inevitável a todos os arquitetos, quando vão projetar um edifício hoje, considerarem a questão urbana como um dado relevante e fundamental. Mas as coisas não viram moda por acaso, mesmo que sejam apropriadas por interesses nefastos. Há quem sempre tenta ver um outro lado.
Apesar de não ter essa preocupação com o urbano, nas entrevistas os arquitetos demonstram certa preocupação com o contexto no qual a obra se insere. Numa perspectiva voltada ao Brasil, e de certa forma generalizada, você percebe este diálogo com o contexto como algo já intrínseco na arquitetura ou ainda há a criação de uma arquitetura individualista?
Todos esses arquitetos de alguma maneira foram muito criticados nos anos 2000, por fazerem parte do Star System da arquitetura que flertava com o status de celebridade e, de fato, muitas obras foram apropriadas nesse sentido, de usar uma obra de arquitetura com a função de rentabilizar processos produtivos e agregar valor através de sua imagem – em que as qualidades de fato da arquitetura ficam em segundo plano.
Isto também aconteceu no Brasil em alguma medida, Niemeyer talvez seja quem possa ser comparado aqui a esse processo global, assim como outros arquitetos, mas isso é uma coisa que corre paralela à produção arquitetônica. Há um risco nessa leitura que é desprezar ou ter uma visão a priori negativa da produção de bons arquitetos por conta de um processo que definitivamente ocorre, mas que está além da arquitetura em muitos sentidos.
É muito fácil criticar o Star System, mas o próprio livro do qual falamos aqui nos mostra que existe uma grande consistência nos projetos destes arquitetos.
Quanto ao valor que a assinatura de um arquiteto do Star System insere em suas obras, nota-se que há um contraponto que Jean Nouvel destaca em seu texto quando afirma que “a obra concebida por arquitetos são tão perfeitas que eles consideram qualquer sinal externo uma poluição de sua essência”. Essa “limpeza” imposta pelos arquitetos ainda perdura?
Efetivamente isto está um pouco ligado a ideia do autor ou alguém que faz um projeto que mais atende a satisfação de uma expressão pessoal. Isso é quase como uma fantasia, de fato, não existe.
O projeto é fruto de uma negociação de muitos atores. Inclusive acho que é cada vez mais frequente que um projeto seja resultado de processos participativos, em que as demandas são cada vez mais negociadas e surgem não necessariamente de um poder, mas de baixo para cima, não de cima para baixo. Só que nenhum desses processos exclui a arquitetura como saber específico.
Qualquer que seja a origem do projeto, como foi gestado e qual for o grau de participação do conjunto de agentes, sempre haverá um lugar muito importante para quem desenha, que tem conhecimento arquitetônico de fato, conhecimento das técnicas materiais, algo fundamental e que necessariamente depende de muitas decisões de quem está fazendo esse desenho. Um desenho forte é um dos componentes para que um projeto participativo seja bem sucedido. Na verdade esta é uma questão que pode ser distorcida ou negligenciada, mas no fundo não há como negar o papel fundamental do desenho.
Por exemplo, já ouvi do Charles Renfro, do escritório Diller Scofidio + Renfro, dizer que o papel do projeto, com intenção e autonomia, contribuiu decisivamente para o sucesso do High Line, em Nova Iorque, com o que concordo. Por mais colaborativo que o processo tenha sido e com a participação efetiva de todos os agentes que estavam envolvidos no processo, da gestação à finalização, o projeto em si foi concebido como uma composição de atores. E a contribuição do arquiteto nesse conjunto de atores, com uma intenção forte de desenho, foi fundamental.
Dentro deste processo projetual, Koolhaas cita a questão da “solidão” do arquiteto enquanto projeta e a importância da colaboração entre os arquitetos. Dentro de sua experiência profissional você já participou de diversas colaborações, inclusive com o Paulo Mendes da Rocha. Como você enxerga essa solidão e as parcerias entre diferentes arquitetos?
É bonita essa passagem do Koolhaas. Ele se refere a que muitas das questões arquitetônicas são próprias do trabalho do arquiteto e dificilmente reverberam e fazem sentido para outros campos. O processo de trabalho do arquiteto, apesar de lidar com muitas pessoas, é muito em-si-mesmado. Ele constrói essa imagem paradoxal da solidão do arquiteto dentro do desenvolvimento do próprio trabalho, sem muitos interlocutores de fato. Essa oscilação entre impotência e potência total, ou seja, tudo é possível e impossível ao mesmo tempo.
Colaborar com outros arquitetos é um modo de conseguir esta interlocução nas questões que surgem durante o projeto, e isso é o mais interessante das parcerias. É perceptível pra nós que nos projetos que fazemos com parceiros fora do escritório, existe um tipo de diálogo que só e possível entre arquitetos, e que é muito rico.
Quando criado em parceria, o projeto sempre será uma terceira alternativa. Esse diálogo é interessante, uma espécie de permanente contraprova, hipóteses que são testadas e um processo que vai se transformando ao decorrer do projeto.
Acho que isso tem acontecido cada vez mais nos projetos que eu fiz com o Paulo Mendes da Rocha. Partimos de uma hipótese e ela vai se desenvolvendo, vira um processo colaborativo, sem um fim determinado. O projeto dita o ritmo.
Herzog & de Meuron afirmam que “Um arquiteto não pode mais fundamentar seu trabalho em informações tradicionais (...) Fazer um projeto hoje é sempre um novo problema. O que é um teatro? Qual a aparência de uma janela?”. Estas falas, de certa forma, já premeditavam, o tema da Bienal de Veneza de 2014, que teve curadoria do Koolhaas. Você chegou a acompanhar esta Bienal?
Eu fui à Bienal, achei uma bienal muito instigante e provocativa, no sentido de fazer pensar sobre Arquitetura. Foi curioso pois é uma bienal sobre Arquitetura de fato, o Koolhaas disse uma frase que foi repetida várias vezes: “uma bienal sobre arquitetura, não sobre arquitetos”, de fato era. De várias maneiras a exposição focava na arquitetura, um pouco neste sentido que o Herzog menciona, nos fundamentos materiais, mesmo em seus aspectos históricos, e não na arquitetura como uma disciplina com uma história acumulada de estilos.
Essa bienal tinha portanto uma componente histórica forte, mas no sentido arquitetônico. Buscar dentro de uma categoria arquitetônica todas as manifestações que algum elemento já teve, como se fosse um repositório de milhares de soluções, quase enciclopédico. E, a partir daí poder afirmar que hoje não usamos a história no sentido de uma narrativa, como se fosse um estilo ou desenvolvimento linear e, portanto, com uma finalidade. O projeto dessa bienal nessa medida é bem pós-moderno, inclusive no sentido de contramão que ela impôs - em não focar a cidade, que tem sido o grande tema das bienais, que se deslocaram da Arquitetura para o campo urbano.
Essa bienal de alguma maneira recolocou a Arquitetura como objeto de debate relevante.
Você participou do processo de curadoria do Pavilhão do Brasil na Bienal de 2006, como foi essa experiência? Como você enxerga esse processo hoje?
Não existe um único modo de produzir uma exposição de arquitetura e um processo ideal. Cada ano deve ter tido seu modo. Em 2006 foi um grupo coordenado por Fernando de Mello Franco e foi muito colaborativo. O tema era sobre a cidade de São Paulo, em redes, era um tema bem definido e tratava sobre a relação entre infraestrutura e ambiente urbano. Acredito que este tipo de abordagem costuma dar mais certo, quando você escolhe uma questão e foca nesta questão ao invés de fazer um grande panorama, afinal, um pavilhão nunca é suficiente para esgotar um assunto amplo, e sempre será passível de crítica fácil. Isso é visível nesta última bienal, pavilhões que escolhiam um ponto específico dentro do tema dado [Absorvendo a Modernidade] eram os mais interessantes, aqueles que buscavam uma visão mais panorâmica, uma leitura mais genérica, se perdiam.
O que poderia ser uma experiência interessante, principalmente por ter notado que os pavilhões mais bem sucedidos tinham adotado esse modelo, seria promover um concurso de curadoria. Abre-se uma chamada de ideias e os grupos se apresentam, acho que seria uma forma interessante de tentar criar um Pavilhão do Brasil mais consistente.
Na entrevista com Herzog & de Meuron, os arquitetos demonstram a influência que a arte exerce em seu processo projetual. Num trecho eles afirmam que “a arte se torna mais importante porque, nas últimas décadas, desenvolveu estratégias mais interessantes, atraiu pessoas mais interessantes e criativas que o campo da arquitetura”. Como você compreende esta afirmação após 20 anos?
Eu diria que este cenário se mantém, pelo menos no Brasil. Muitos artistas de excelente qualidade produzem coisas em altíssimo nível. A produção das artes visuais no Brasil, se pudesse ser comparável, estaria acima da qualidade média da produção da arquitetura. A explicação deve ser bastante complexa, mas alguns dos fatores é que a arquitetura exige um concerto de atores envolvidos e altos investimentos para sua produção, algo muito mais complexo que a arte. E um mercado de arte tão desenvolvido no Brasil, de alguma maneira, impulsiona a produção, criando mais oportunidades para que se produza arte, somando-se a conjunto de instituições atuantes. Nada disso ocorre no campo da arquitetura, infelizmente.
“Ao contrário do que as vanguardas propunham, a globalização será mais um motivo de diversificação do que de homogeneização”, conclui Zaera-Polo na entrevista com Rafael Moneo. Você acha que a globalização trouxe essa diversificação para a Arquitetura?
É difícil generalizar o campo arquitetônico. Existe uma produção que foi muito homogeneizada, principalmente no mundo coorporativo. Mas nunca é uma coisa só, a arquitetura é muito vasta. Por outro lado há uma série de projetos que podem ser mencionados que são muito particulares e frutos de um contexto muito específico. Na verdade, o que poderíamos dizer é que é difícil fazer uma leitura homogeneizante da produção arquitetônica, poies existem veículos e canais de divulgação tão eficientes hoje que tornaram a diversidade intrínseca ao campo arquitetônico mais visível do que nunca. Ao mesmo tempo em que há processos homogeneizadores, há canais no sentido contrário - que revelam obras que talvez sempre tenham sido produzidas, mas que nunca estiveram tão visíveis como hoje.
Ao enfatizar a importância em combater a separação entre o projeto arquitetônico e a construção física em si, Siza aponta este fato como uma tendência na década de 90. Como você enxerga a afinidade entre o projeto e o canteiro de obras atualmente?
A separação é cada vez maior entre o canteiro e o desenho, o processo de produção do edifício em geral está cada vez mais distante do desenho. Por outro lado, é interessante ver uma série de tecnologias que vem a serviço de tentar recuperar uma certa especificidade, uma produção industrial, porém não seriada. Ao mesmo tempo que há um distanciamento entre o fazer projeto e o fazer do canteiro, existe uma aproximação das tecnologias que possibilitam um desenho não necessariamente em série, é um paradoxo da tecnologia industrial que agora começa a permitir a criação de peças únicas, não pela via artesanal, mas pela via da produção industrial. Mas esse é um tema ainda distante da realidade no Brasil.