Por Rodrigo Bitencourt e Gláucia Dalmolin
Cidade e civilização são fenômenos concomitantes. A cidade pode ser vista como receptáculo, fomentadora e transmissora de civilização. De fato, como o homem diferencia-se das outras criaturas pela sua capacidade de aprender indefinidamente, i.e., pela sua perfectibilidade (formigas de seis mil anos atrás têm as mesmas características das formigas atuais: estão confinadas na estreita gama de comportamentos ditados pelos seus programas genéticos), adquiriu o poder de extrapolar a natureza e assim construir seu próprio caminho, criando história. E como cada vida humana é única e ninguém tem a capacidade de determinar previamente como ela será, pode-se afirmar que o ser humano é portador de uma duplicidade histórica: a história individual, ou educação, e a história coletiva, ou cultura.
Ambas as dimensões, educação e cultura, constituem as bases conceituais de toda a ação humana e definem quais são os fins mais valorizados e os meios mais adequados para atingi-los. Elas podem ser visualizadas materialmente nas cidades através do aspecto das construções, da ordenação da paisagem urbana, da preservação do patrimônio construído, entre outros. Desse modo, pode-se dizer que a cidade é registro das ações humanas que permanecem no tempo, e a arquitetura é um dos exemplos concretos do conhecimento acumulado por inúmeros indivíduos em sucessivas gerações. Por esse motivo, a arquitetura representa uma ferramenta de compreensão de determinado momento da história de um povo, cultura e até mesmo civilização, uma vez que através dela é possível visualizar a evolução tanto da engenhosidade da humanidade, quanto de seu senso de harmonia e valores.
Tradição e Inovação
Entendida como registro de ações humanas, a cidade encontra-se na categoria dos fenômenos sociais complexos geradores de ordens espontâneas. Elas podem ser definidas como organizações resultantes do conjunto das ações humanas individuais e voluntárias, que ao buscarem a satisfação dos próprios interesses, atendem aos interesses das outras pessoas, e criam formações coletivas que não foram intencionadas ou planejadas por nenhum indivíduo em particular.
De fato, a maior parte das instituições sociais (linguagem, moeda, etc.), são ordens espontâneas que evoluem ao longo do tempo através de um processo de seleção social, o qual permite a continuidade e melhoramento daquelas formações coletivas que se mostram mais propícias em garantir o sucesso das ações individuais. E, conforme tais instituições aumentem as possibilidades dos indivíduos realizarem seus próprios fins, haverá um incentivo para que outras pessoas, de uma maneira geral, obedeçam as normas de funcionamento dessas instituições, reforçando sua efetividade e aumentando ainda mais a potencialidade da ação humana. Portanto, há um forte componente evolutivo nas instituições e ordenamentos sociais, aquele conjunto de tradições e costumes que, apesar de não serem passíveis de entendimento racional, comportam as bases fundamentais para a vida em sociedade.
Porém, como a sociedade modifica-se ao longo do tempo, obedecer cegamente às tradições e costumes pode fazer com que ela torne-se estática, ou até mesmo, morta. Nesse sentido, a inovação constitui fator essencial para o estabelecimento de uma cultura dinâmica e faz parte daquele processo evolutivo descrito acima. Por isso, um caráter importante das normas de conduta é que elas sejam voluntárias e possibilitem que indivíduos de visão e pioneiros as desobedeçam e experimentem novas possibilidades, que sob sua conta e risco, podem se mostrar inadequadas ou podem encerrar descobertas importantes que abrem novas possibilidades de ação.
Dito desse modo, a cidade constitui cenário complexo e por isso mesmo, rico de possibilidades. Por um lado a sociedade modifica-se, novos fins surgem, novas necessidades aparecem, os costumes e hábitos transformam-se. Por outro lado, há todo um conhecimento acumulado e experiências vividas materializadas no conjunto dos edifícios, dos espaços; são memórias da cidade.
A combinação entre tradições herdadas e inovações adaptativas podem ser exemplarmente verificadas nas transformações pelas quais passaram os assentamentos urbanos criados pela expansão do Império Romano. As cidades criadas pelos conquistadores romanos obedeciam geralmente a um padrão de grade ortogonal, com duas vias principais perpendiculares cujo cruzamento indicava o centro cívico e comercial, o Fórum. De maneira geral, tais assentamentos contavam com estruturas públicas a fim de atender as necessidades religiosas, governamentais, culturais, etc. Com a derrocada do Império, as forças, tradições e costumes que mantinham e criavam o meio urbano transformaram-se ou mesmo desapareceram. Desse modo, é instrutivo notar as posteriores modificações da forma urbana conforme o tipo de sociedade que veio substituir a antiga.
A figura acima mostra, ao centro, uma típica cidade Romana da época Imperial e duas subsequentes transformações em épocas posteriores. À esquerda, na parte Oriental do antigo Império, a população Islâmica apropria-se dos espaços públicos e as ruas ortogonais são substituídas por uma rede de vielas e becos que definem aglomerados de residências reunidas em superquadras de acordo com divisões étnicas e tribais. Na figura da direita, a sociedade feudal italiana reúne várias quadras a fim de recriar complexos fortificados típicos da tradição feudal.
A Grécia Antiga também oferece exemplos importantes do desenvolvimento espontâneo da cidade e do conteúdo cultural que a arquitetura encerra. Durante sua história, os gregos passaram por grandes transformações, que exigiram novas soluções espaciais ao mesmo tempo em que a adaptação das estruturas existentes. Em tempos ancestrais, no período da Idade do Bronze, predominava na Grécia o regime monárquico, centrado na figura do rei, que concentrava as funções de guerreiro, sacerdote e administrador. O centro da vida urbana era o palácio-fortaleza, situado na maior parte das vezes em locais estratégicos de fácil defesa, as acrópoles.
Com a dissolução do período monárquico e após um interregno conhecido como Idade das Trevas, a pólis grega emerge e um novo tipo de governo predomina, a República. Nessa nova ordem, o poder torna-se coletivo, público e aberto, cujo exercício ocorria num novo espaço, uma praça denominada Ágora, que refletia de maneira coerente as características do novo regime e o surgimento –inédito na história– de um novo tipo de homem, “o cidadão” (aquele que sabe que é igual a seus semelhantes em relação ao direito, à razão e, pois, à dignidade, e participa ativamente nas decisões expostas na Ágora).
Assim, a morfologia urbana de aspecto orgânico das poleis gregas atesta o crescimento lento e espontâneo da cidade –cada espaço encerrava tradições, mitos e recordações e a esse patrimônio material e imaterial, iam-se acrescentando modificações sucessivas–. Nesse sentido, a acrópole pode ser vista como exemplo das pressões transformadoras sobre as forças conservadoras, bastante fortes e efetivas na sociedade grega. De fato, com a mudança de regime, a acrópole perde suas funções políticas em favor da Ágora, mantendo, porém, suas antigas funções religiosas, servindo de elo entre o presente e períodos ancestrais.
Nota-se, então, que a arquitetura das acrópoles bem como da Ágora explicitam os respectivos momentos da sociedade grega. Nesse sentido pode-se dizer que suas características culturais e históricas estavam incrustadas em suas expressões materiais. Talvez o melhor exemplo disso seja o Partenon.
Concebido para ser a morada dos deuses, o Partenon não representa somente a religiosidade daquela sociedade, mas também seu senso de harmonia construtiva. Os gregos acreditavam que o universo era formado por leis perfeitas que originavam uma ordem –o cosmos–. A tarefa da filosofia e da arte era descobrir e expressar tais leis e desse modo produzir justiça e beleza, que eram, representativamente, consideradas a mesma e uma só coisa. No caso do Partenon, tais aspirações são evidentes. Por ser totalmente fechado em seu interior, os ritos religiosos realizavam-se do lado de fora, ao redor do templo. E desse modo, o tratamento das fachadas recebeu colunas detalhadas, baixo-relevos lineares e figurativos, frontões entre outros elementos que foram posicionados conforme meticulosas noções de proporção e geometria, cujo intuito era manter uma aparência de exato alinhamento. As linhas, aparentemente perpendiculares e horizontais são, na realidade, inscritas em planos curvos e inclinados, de forma a corrigir a ilusão de ótica da distorção da perspectiva.
É representativo, em contraste à coerência dos antigos gregos, observar épocas ecléticas posteriores. Quando falta habilidade para a inovação, muitos arquitetos buscam no passado os temas que servem, funcional ou simbolicamente, para construções contemporâneas. Cópias de templos gregos são facilmente encontrados em diversas regiões do mundo e, em sua grande maioria, não possuem valor arquitetônico como a reflexão sobre o legado da sociedade que pertencem. Assim, essa nova arquitetura, que poderia ser representativa de ideias vigentes, refletir novas soluções, tecnologias, aspirações estéticas etc., é apenas a réplica de uma época passada. Nessas circunstâncias, pode-se dizer que para que a arquitetura ajude a compreender determinado momento da história de um povo e sua cultura, ela precisa ser projetada de acordo com tempo em que se vive.
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A ideia ainda pouco explorada de que as ações individuais podem gerar resultados não intencionais que em seu conjunto são capazes de produzir formações de caráter ordenado tem profundas implicações no estudo das cidades e, portanto, da arquitetura. De partida, ressalta o meio urbano como recipiente de extensa carga de conhecimentos acumulados, que em sua maior parte são apenas parcialmente entendidos e, apesar disso, compõem o conjunto de instituições cuja existência e normas são os pressupostos de todas as ações individuais.
A tradição passa a ser vista como o conjunto de experiências passadas que se mostraram eficientes para as finalidades humanas. Assim, toda a iniciativa de modificação do espaço construído parte já de um estado acumulado de experiências, que devem ser levadas em conta com prudência e mesmo humildade, reconhecendo que a mente humana possui limitações que são incapazes de superar a totalidade das estruturas resultantes das ações de milhares de mentes ao longo do tempo. Não obstante, a atitude profissional exige o comprometimento da mente do indivíduo criador em utilizar suas capacidades racionais, ainda que limitadas, em solucionar os problemas atuais, que sempre exigirão, ainda que em parcelas variáveis, algum nível de inovação.
Portanto, sendo um registro material que fará parte da vida das pessoas ao longo de várias gerações, pode-se dizer que qualquer edifício, mesmo inerte e silencioso, está em constante comunicação, transmitindo seus anseios estéticos, funcionais, tecnológicos, os valores sociais e etc.
Nesse sentido, se há a preocupação com a eficiência do que está sendo comunicado, há chance da edificação firmar-se no espaço e para sociedade local, tornando-se passível de preservação ao longo dos tempos. Como um patrimônio arquitetônico. Nessa condição, ela terá superado a barreira do tempo, o que significa que sua inovação foi tão importante para o período em que foi executada que há um desejo comum de permitir que ela se comunique com as pessoas nos próximos séculos, assim como o Partenon.
Entretanto, projetar um espaço que será intencionadamente mantido por séculos é tarefa para poucos. Desse modo, o que a grande maioria dos arquitetos pode fazer é atuar dentro da contemporaneidade. Assim, suas edificações oferecerão valor arquitetônico às pessoas que a usufruem, no que concerne a beleza, habitabilidade, tecnologia etc., sendo, portanto, bela enquanto existir.
Entender e respeitar o patrimônio arquitetônico de nossas cidades, bem como projetar de acordo com o tempo em que vivemos é, também, uma forma sensível de pensar nas futuras gerações e auxiliá-las na compreensão de suas origens.
Referência:
Spiro Kostof, The City Shaped, Bulfinch Press, New York, 1993.
Rodrigo Bitencourt é arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Paraná (2007), especializado em artes gráficas e visualizações digitais de arquitetura. Gláucia Dalmolin é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal do Paraná (2007) e especialista em Projeto e Paisagem Urbana pela mesma universidade (2012).
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