Por Geraldo Benicio da Fonseca e Henrique Felício Pereira
A região do Médio Rio Doce reflete um longo período de violenta exploração de seus recursos naturais. A ocupação deste território seguiu um processo típico de desmatamento e manejo inadequado, que hoje se reflete em uma paisagem empobrecida e ressequida, cenário de declínio econômico e de recursos hídricos cada vez mais escassos. Mas a pequena cidade de Aimorés é palco de uma iniciativa que espera mudar este quadro: o Instituto Terra. Esta ONG foi fundada em 1998 por Sebastião Salgado e Lélia Wanick Salgado para promover programas e ações de conservação, recuperação, gestão e educação ambiental. Sua meta inicial era criar um modelo de recuperação ambiental associado a atividades educacionais, a ser replicado em propriedades no Vale do Rio Doce e outras regiões da Mata Atlântica.
A principal propriedade administrada pelo Instituto Terra é a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Fazenda Bulcão, localizada no município de Aimorés (MG), em sua divisa com Baixo Guandú (ES). Com 676 hectares, foi a primeira RPPN criada em uma área degradada de Mata Atlântica brasileira, com o compromisso de promover sua recuperação ambiental.
Em 2000, o Instituto Terra propôs uma concorrência aberta para selecionar o melhor projeto arquitetônico, urbanístico e paisagístico para a recuperação da área de cinco hectares que forma a sede centenária da Fazenda Bulcão, e aí instalar seu Centro de Educação e Recuperação Ambiental (C.E.R.A.). Oito equipes de Minas Gerais e Espírito Santo apresentaram suas propostas técnicas, e a LOCI Arquitetos foi declarada vencedora.
O cenário encontrado pela equipe era desafiador: um vale quente, seco e batido pelo sol, com encostas em franca erosão, desnudadas pelo desmatamento e pelo manejo agropecuário inadequado. O Córrego Bulcão, já estival, provocava enxurradas catastróficas que percorriam a área a ser requalificada e assoreavam tanto seu leito como as antigas barragens de controle. E as edificações centenárias, que interessava preservar, traziam as marcas de décadas de descaso e declínio econômico.
Em sua proposta inicial, a LOCI buscou articular referências arquitetônicas e culturais relacionadas ao ser humano do Vale do Rio Doce, sua cultura e suas práticas construtivas. As diretrizes arquitetônicas nasceram alinhadas com a proposta do Instituto Terra: buscar um desenvolvimento humano que respeite o meio ambiente. Outras vertentes conceituais foram a sustentabilidade e a interdisciplinaridade: atitudes que se mostraram estratégicas tanto do ponto de vista técnico como social, ao comprometer os arquitetos e demais técnicos, a equipe do cliente e a comunidade de Aimorés em uma atitude de respeito para com o local e com sua história.
Era necessário integrar novos edifícios e espaços exteriores às construções vernáculas existentes e aos elementos da natureza e do entorno desta parte inicial da Fazenda Bulcão. Para isto foram usados três conceitos formais distintos: a aldeia indígena, o eixo longitudinal e o desenho em espiral. Como resultado da superposição destas três estruturas e de seus significados, esperava-se traduzir conceitos espaciais, arquitetônicos e paisagísticos afins às propostas e ações da instituição que era o cliente.
A organização dos edifícios obedece a uma disposição circular, em referência à aldeia: uma estrutura formal e espacial que traduz relações sociais e culturais dos “Aimures” (um grupo da nação tapuia), principal comunidade que habitou esta parte do Vale do Rio Doce até a chegada dos colonizadores. Buscando neste conceito os valores de convívio e de relação social que o contemporâneo associa às estruturas socioculturais indígenas, o projeto dispôs os edifícios em semicírculo em torno de uma área central aberta e vazia, proposta como lugar de convivência e de integração desta nova comunidade.
O acesso à sede da fazenda percorre uma direção geral Norte-Sul. Isto sugeriu um alinhamento, relacionado ao uso de eixos cartesianos, uma herança cultural do urbanismo português que traz ecos da antiga Roma. Seu cruzamento em ângulo reto no centro do espaço circular proposto busca, ainda, referenciar os elementos geográficos deste entorno: a direção de drenagem do Córrego Bulcão, coincidente tanto com os ventos dominantes no vale da fazenda como com o acesso à fazenda, formando um caminho que busca a abertura do vale, ao mesmo tempo em que aponta em direção à cidade de Aimorés, ao Rio Doce e à Pedra Lorena, marcos relevantes neste território. Este alinhamento resultava ortogonal ao percurso solar do nascente ao poente; assim se evidenciava o abrasador sol da tarde, uma das preocupações mais presentes durante o desenvolvimento dos projetos.
A espiral descreve um movimento evolutivo que sempre guarda relação com seu próprio princípio. Esta forma traduz a idéia de crescimento e de harmonia entre a origem e o todo, ou entre o passado, o presente e o futuro. Na proposta paisagística, aparece como um caminho de pedestres que organiza a disposição dos edifícios.
Os antigos currais foram mantidos: memoriais da ocupação como fazenda de gado bovino. O centro geométrico do “curral novo” foi tomado como o cruzamento dos eixos imaginários e origem da espiral que conecta as edificações. Esta nova centralidade foi evidenciada pelo plantio de um jequitibá, a maior árvore nativa do Brasil. A partir daí, a disposição dos novos edifícios teve de atender a uma cuidadosa disposição sobre o terreno, condicionada pela topografia, pela necessidade de preservar as poucas árvores que resistiam, pela presença de uma rede de alta tensão sobre a área, e pela necessidade de prevenir as enxurradas do Córrego Bulcão (e que, graças aos cuidados adotados, até agora não voltaram a ocorrer).
As novas edificações adotaram formas e materiais propositalmente semelhantes às existentes, em busca de um conjunto harmônico. Espaços compactos, acabamentos austeros e coberturas cerâmicas semelhantes ao modo de construir típico da região, respeito ao clima local e ênfase na qualidade construtiva foram a tônica dos edifícios. Esta modéstia necessária permitiu o controle de custos e prazos, essencial em um momento no qual o sonho do Instituto Terra ainda parecia difícil de concretizar.
Estas características, aliadas à preocupação com o clima e com as condições ambientais do local, resultaram na busca pela insolação mais adequada, no uso de avarandados e pérgulas, no aproveitamento dos ventos para a ventilação natural e cruzada dentro dos edifícios, em tetos altos e forros ventilados, e na correta hierarquia dos espaços.
Coberturas cerâmicas com largos beirais e extensas varandas, bases em alvenaria de pedra local e o uso de técnicas vernaculares de construção e de paisagismo foram propositais, traduzindo o respeito pela tradição construtiva e pelos materiais da região. O cliente solicitou expressamente o uso de madeira reflorestada para estruturas, coberturas e esquadrias, para evidenciar sua preocupação com novos paradigmas na relação entre ambiente natural e o construído.
O Instituto Terra foi concebido como um centro de recuperação ambiental, mas com caráter marcado pela educação, divulgação e conscientização social. Isto obrigou a considerar, desde os primeiros esboços, a plena acessibilidade, assim como a integração entre seus diversos edifícios, que hoje recebem constantemente visitantes, pesquisadores, estudantes e trabalhadores da região. Para isto foi necessário desenhar um conjunto de rampas, além de ajustar os platôs de assentamento de cada edificação.
Da Fazenda Bulcão foram preservadas duas residências, além dos antigos currais e galpões. Estes, com suas estruturas mantidas em madeira aparente e seus pátios em pedra, ganharam novos usos como centro de recepção, salão de exposições e refeitório e gazebo. E o “curral velho” é, hoje, um viveiro de samambaias, aproveitado como local de lazer.
A partir da estrada que une Aimorés a Baixo Guandú, o acesso principal ocorre paralelo ao Córrego Bulcão. O antigo pasto de cavalos foi deixado propositadamente desocupado, de modo a permitir a recuperação da várzea do curso d água e a vista das encostas reflorestadas. Este acesso passa pelo museu e conduz ao “curral novo”.
De frente para a via de acesso ao Instituto Terra, o conjunto do "curral novo" teve preservada sua arquitetura construída em madeira de aroeira. E seu espaço foi revitalizado para abrigar funções de recepção. Um dos edifícios foi reaproveitado como centro de recepção de visitantes e salão de exposições, que se abre para um pátio central (o próprio curral), que coincide com o centro da ordenação espacial e paisagística proposta para a revitalização da Fazenda Bulcão.
Totalmente recuperado, outro galpão que protegia a antiga balança de gado se transformou em salão de refeitório, e recebeu um anexo para instalar a cozinha e a lavanderia.
A partir deste centro se distribuem novas instalações do C.E.R.A.: escola, auditório, biblioteca e museu, três alojamentos de estudantes, a residência de professores, os viveiros de mudas e as instalações técnicas (garagens, depósitos e residências dos empregados), configurando um modelo a ser replicado em outras iniciativas de recuperação ambiental.
O auditório foi inicialmente concebido como um pequeno anexo ao Centro Educacional. Mas o êxito da proposta levou à sua transformação, ainda durante as obras, em cine-teatro para 200 espectadores, que hoje atende à comunidade de Aimorés. Do mesmo modo, o espaço destinado à biblioteca foi reaproveitado como laboratório e sala de aulas. A nova biblioteca, à qual se somou um pequeno museu, acabou abrigada em um novo edifício construído junto ao acesso principal.
A proposta paisagística para o entorno imediato aos edifícios e para as encostas que delimitam a área aberta à visitação partiu da idéia de um parque vegetal de objetivo educacional, integrado por espécies arbóreas e arbustivas da Mata Atlântica e nativas da região do Vale do Rio Doce. Na seleção destes espécimes prevaleceu o seu potencial estético (tipos de flores, cores, tempo de floração e porte). O objetivo era alcançar um ambiente com florações em todas as épocas do ano, acessível e atrativo aos visitantes, independente da época da visita.
A partir do centro deste conjunto, foi implantado um caminho pavimentado em tijolos e que se desenrola em espiral, acompanhando o terreno. Este é o principal percurso educativo, usado por escolares e por pessoas com mobilidade reduzida. A partir daí surgem outras calçadas em pedra ou simples trilhas, que sobem as encostas e adentram a mata em crescimento.
Ainda nestes primeiros cinco hectares da área aberta à visitação, as obras de recuperação da micro-bacia do Córrego Bulcão abrangeram o desassoreamento do leito do ribeirão e das barragens, a execução de obras de drenagem, dois pontilhões e novas barragens de laminação no córrego, para controle de vazões e apoio às atividades do viveiro de mudas. A recuperação destas barragens permitiu a criação de jardins e de espaços de lazer.
A partir deste espaço aberto à visitação e à educação ambiental, o acesso aos viveiros e às áreas de manejo e de recuperação ambiental é restrito. Aí a cobertura vegetal segue em recuperação, que começou com a plantação de leguminosas e espécies pioneiras. Quinze anos depois do início dos trabalhos, e com o auxílio da população local, foram plantadas milhões de mudas de espécies arbóreas nativas da Mata Atlântica, que agora cobrem quase todo o território da Fazenda Bulcão.
Hoje já se vêem os frutos desse trabalho: os jardins exuberantes foram adotados pela população local, que fez da fazenda seu principal espaço de lazer. O crescimento das árvores evidencia o surgimento de uma floresta de elevada biomassa e diversidade, em uma área antes completamente degradada. A mata jovem ainda demanda água, mas as nascentes já voltaram a brotar e o riacho, antes sazonal e quase seco, já possui um fluxo pequeno mas regular. E os animais, antes desaparecidos, são reintroduzidos ou retornam naturalmente, pois aí encontram alimento e refúgio.
O desenho arquitetônico e paisagístico do Instituto Terra foi, desde o início, pensado como uma solução simples, conectada ao vernáculo e à atenção ao contexto local e ambiental. Buscando por uma sustentabilidade possível em um momento em que o Brasil apenas começava a estudar este conceito, o projeto do Instituto Terra acabou por ser uma das primeiras arquiteturas sustentáveis a ser concluída em território nacional.
A virtude desta arquitetura marcada pela modéstia e pelo decoro reside na representação permanente das qualidades ambientais imaginadas pelo cliente e que aos poucos se vão tornando visíveis. Nos jardins que florescem, nas nascentes que rebrotam, e na presença dos animais que retornam à sombra fresca da mata que cresce, célere.
O projeto arquitetônico, urbanístico e paisagístico para o Instituto Terra foi realizado pela LOCI Arquitetos.
Autores: Geraldo Benicio (arquiteto coordenador), Henrique F. Pereira e Daniela T. Diniz. Colaboração: Marina S. Dias.
Geraldo Benicio é arquiteto pela UFRGS e mestre em arquitetura pela UFMG. Já lecionou na Universidade FUMEC e UFMG. Atualmente é doutorando pela ETSAB/UPC (Barcelona) e professor na UVV/ES. Henrique Felício Pereira é arquiteto urbanista pela UFMG, e dirige a LOCI Arquitetos, em Belo Horizonte.