A obra de Affonso Eduardo Reidy condensa boa parte das preocupações contidas na introdução da arquitetura moderna no Brasil. Formado pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1930, foi membro do grupo dirigido por Agache para a remodelação do Rio e do grupo de jovens arquitetos que projetaram o edifício do Ministério da Educação, com a colaboração de Le Corbusier. Em 1932, se integra como arquiteto chefe da Prefeitura do Distrito Federal do Rio de Janeiro, cargo no qual permanece até finais da década de cinquenta.
A partir desta relação estreita com o poder político, Reidy constitui um exemplo de “intelectual orgânico”, participando da construção da engrenagem institucional que fortaleceu o uso do instrumental racionalista —e consequentemente sua linguagem formal— na arquitetura do Estado brasileiro em pleno impulso modernizador. Não corresponde à imagem do artista genial que Lúcio Costa reclamava —como Niemeyer— mas sim à do técnico eficiente, capaz de responder sistematicamente aos preceitos formais, funcionais, construtivos, urbanísticos e sociais da arquitetura como agente transformador da realidade.
Como Le Corbusier, Reidy considera o trabalho preciso, técnico, como condição básica de produção da obra arquitetônica que comove e emociona. Com esta determinação, participa do projeto brasileiro de construção nacional: associando, poeticamente, o desejo pedagógico e modelar de seus edifícios a uma clara atitude construtiva, estabelecendo pautas onde caibam a consciência social, o compromisso arquitetônico com seus ideais e a responsabilidade com a edificação da obra.
A experiência de Reidy com duas importantes e antagônicas correntes do urbanismo dos anos 20/30 —a de Agache e a de Le Corbusier—, não só contribuiu para seu grande interesse e desenvoltura nas questões urbanísticas, como também estabeleceu as bases que fundamentaram sua reflexão sobre a modernidade.
Reidy realizou sua carreira de arquiteto, entre 1925 e 1930, quando o país passava por um contexto geral de renovação. No final da década de vinte, embora a formação acadêmica predominasse na Escola Nacional de Belas Artes, esta instituição já demonstrava uma certa abertura para novas tendências. Entre 1928 e 1929, por exemplo, ocorreram, no ambiente da Escola, duas exposições diferenciadas: uma sobre arte alemã, mostrando as tendências contemporâneas, e outra sobre a arte decorativa alemã, Deutscher Werkbund - Bauhaus.O último avanço da Escola, antes disto, havia sido a aceitação do Neocolonial e sua discussão sobre a realidade brasileira.
Neste contexto de renovação, que incluía o campo das artes e da cultura, também estava presente a questão da renovação urbana do Rio de Janeiro, justificando a vinda do urbanista francês Alfred Agache para realizar o plano de remodelação, embelezamento e extensão da cidade. Com o plano para o Rio, desenvolvido entre 1927 e 1930, Agache introduziu no Brasil três conceitos que foram importantes na formação de Reidy: a ideia de cidade funcional, a valorização do espaço público enquanto espaço educativo das massas e o planejamento em grande escala; apresentando, em seu projeto, por primeira vez, uma imagem cosmopolita para a capital do país . (Fig. 1)
De Agache, Reidy herda uma visão técnica da cidade — baseada na busca de uma metodologia e de “instrumentos” para dominar seus problemas—, de Le Corbusier ele herda uma visão poética, baseada na busca de uma nova concepção, um novo programa, uma nova ideia.
O contato de Reidy com as propostas de Le Corbusier iniciou-se quando ainda aluno, a partir da leitura de suas obras. Quando, em 1929, Le Corbusier fez seus primeiros esboços para o Rio, já buscava traçar um novo conceito que regesse a relação entre a arquitetura e o mundo técnico, diferente de suas primeiras proposições. Nesta época, lança a ideia do “edifício autopista”, uma megaestrutura que se insere na paisagem da cidade ordenando e organizando seus espaços, sem destruir o tecido urbano pré-existente e aproveitando as condições topográficas do lugar. Esta “figura” e este conceito, culminam por reforçar a questão da intervenção em grande escala introduzida por Agache, que permeará toda a obra de Reidy. (Fig. 2)
Transcendência urbanística e intenção pedagógica da obra
Já na ocasião do projeto do Ministério da Educação e Saúde (1935-1936), quando há uma confrontação entre dois modelos urbanísticos — o de Agache e o de Le Corbusier— Reidy critica as premissas do plano de Agache posicionando-se a favor do novo modelo de cidade que sugere Le Corbusier.[1] (Figs. 3 e 4) No projeto que apresenta para o Concurso, realizado em 1935, Reidy propõe um edifício sobre pilotis, com planta em forma de “H” e localizado no centro da quadra, contrariando as determinações do plano de Agache para a zona do Castelo. Com isto recria, em negativo, espaços abertos de caráter urbano, que diluem a dicotomia entre as categorias da quadra e da rua, apontando para uma nova possibilidade de organização urbana. Em seus futuros projetos, Reidy adotará estratégias semelhantes. Ao mesmo tempo que projeta seus edifícios, cria espaços urbanos que constroem partes de uma nova cidade.
Em sua curta carreira (1931-1964), Reidy é importante partícipe no processo de modificação que sofre o Rio de Janeiro a partir da década de quarenta. Sua obra desenvolve-se basicamente no contexto desta cidade, que, no início da década de sessenta, apresentará um dos espaços mais representativos da modernidade urbana: o Parque do Flamengo.[2] Isto significa que Reidy aplica o projeto modernoa uma realidade determinada: a de uma cidade grande e importante no contexto mundial da época; uma metrópole com muitos problemas que, entre seus maiores atributos, possui uma paisagem excepcional.
A principal temática de sua obra, sem dúvida nenhuma, é a construção da metrópole moderna. Entre os elementos que comporiam esta cidade estavam o centro cívico, as unidades residenciais, o museu, a escola, o teatro, o parque e a autopista. Situados em lugares estratégicos, os edifícios e conjuntos mais importantes de Reidy mostram uma intenção pedagógica e modelar, não só pelo destino evidentemente social de muitos de seus projetos, mas também pela existência de uma série de constantes: o esforço por produzir protótipos construtivo-funcionais, a cuidadosa definição e manuseio dos elementos que os compõem ou a monumentalização das articulações entre os corpos edificados.
Reidy trata o edifício como organismo integrado ao espaço urbano, atua em todas as escalas da intervenção arquitetônica. O conjunto do Pedregulho, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a Urbanização Glória-Flamengo são exemplos disto. Concebidos como protótipos de partes da nova cidade, eles são a síntese das principais preocupações de sua obra.
Pedregulho: projeto civilizador, a megaestrutura.
Desde seus primeiros projetos, a exemplo do Albergue da Boa Vontade (1931), Reidy aposta em um novo modelo de organização urbana. Como arquiteto-chefe da Prefeitura do Distrito Federal, desenvolve uma série de anteprojetos, que, junto ao Albergue da Boa Vontade constituem-se em seus primeiros ensaios racionalistas. Eles abordam o tema da sede do poder público como edifício representativo de uma nova ordem. Tais projetos[3] —bem como outros realizados posteriormente neste mesmo âmbito— disseminados por todo o Rio de Janeiro, funcionariam, dentro de uma estratégia mais ampla, como focos difusores de uma nova linguagem que, por sua vez, incorporava novos padrões construtivos.
No Departamento de Habitação Popular da Prefeitura do Distrito Federal —criado por Carmen Portinho, em 1946—, pela primeira vez, no Brasil, o tema da habitação coletiva é pensado a partir de um conceito urbano. Influenciados pela ideia de “unidade de vizinhança”, de tradição inglesa e acompanhando as experiências de Le Corbusier na Unité d’Habitatión de Marselha, Carmen Portinho e Reidy propõem um projeto global de cidade baseado na construção de conjuntos residenciais autônomos, inseridos em diferentes pontos. Esta iniciativa envolvia um plano ainda maior, de cunho social — nele a habitação era concebida como serviço público.[4]
O conjunto do Pedregulho (1946-1958), como primeira obra construída pelo Departamento de Habitação, possui um forte caráter prototípico e experimental: assume, concomitantemente, um projeto de arquitetura moderna, um projeto de cidade, um projeto social. (Fig. 5)
O bloco principal de habitações —o Bloco A— grande edifício a partir do qual são organizados os demais elementos funcionais do conjunto, representa este novo ideal urbano e evoca a imagem do “edifício autopista” de Le Corbusier. A escolha do seu partido —tipologia definida por Le Corbusier no projeto para a maison locative, em Argel (1933)—, é justificada pelo autor como a melhor maneira de resolver o problema da construção nas encostas.
O uso de terrenos em pendente para os conjuntos habitacionais de baixa renda concebidos por Reidy, nesta época, não foi acidental. De acordo com os ensinamentos de Le Corbusier, o “início” e o “essencial” de uma obra arquitetônica residiam na sua localização. Segundo Reidy, havia problemas que eram mais fáceis de serem resolvidos em uma encosta, que na superfície plana; o da vista e o da ausência do elevador eram alguns deles.
O sentido experimental do projeto do Pedregulho se reflete nas diferentes tipologias de edificação nele utilizadas. São exemplos disto as experiências na racionalização do projeto: a definição de apartamentos tipo, para abrigar os diferentes grupos de usuários; a modulação e a distribuição de plantas tipo, visando resolver, além dos problemas funcionais, também os problemas técnico-construtivos, e o uso do apartamento duplex como solução máxima de racionalização.
O clima quente, um dos grandes temas da arquitetura moderna no Brasil, foi um dos principais objetos de preocupação deste projeto. Com o conjunto do Pedregulho houve um significativo aprimoramento técnico no sentido de resolver aspectos climáticos e construtivos, em parte decorrentes do novo vocabulário empregado.
Localizado numa das zonas mais quentes do Rio de Janeiro e em terreno cuja topografia dificultava a melhor implantação dos edifícios do ponto de vista da insolação, o conjunto do Pedregulho apresenta várias soluções de fachada e de distribuição de espaços que resolvem de maneira exemplar o problema da proteção solar nas fachadas norte e da ventilação cruzada nos ambientes. Ele experimenta vários tipos e formas de elementos de proteção solar e trabalha com a ideia de permeabilidade das superfícies, associando a elas variadas texturas, que se reproduzem na luz e na sombra e que podem ser visualizadas em diferentes escalas.
A escola primária —edifício símbolo, solução “modelar”— localiza-se no centro de gravidade do conjunto e possui uma implantação ideal. As soluções adotadas nas salas de aula — o fechamento acristalado associado ao terraço individual semicoberto; as aberturas longitudinais próximas à laje, na parte interna das salas, e o corredor aberto, com gelosias cerâmicas— formam um conjunto de elementos que compõem um arquétipo construtivo-formal que pode ser aplicado (e adaptado) a diferentes situações funcionais. Este arquétipo, baseado no princípio da permeabilidade, já mencionado, permite a ventilação cruzada e cria membranas de transição, propiciando uma situação ideal de temperatura e de iluminação. A própria inclinação da cobertura, que aumenta a área de fachada das salas de aula e diminui o sombreamento, já pressupõe um aproveitamento da orientação sul, onde o índice de iluminação pode ser elevado sem prejudicar as condições de temperatura.
A ideia da promenade architecturale é outro conceito explorado na criação destes espaços. Situações que configuram a percepção de dentro e fora, aqui e ali mudam conforme a posição do observador e sua relação com o edifício. No Pedregulho, além do sistema de membranas, outros arquétipos construtivos serão desenvolvidos e aperfeiçoados com o edifício da escola: o conjunto da rampa —elemento que articula volumes e gera espaços de transição— e das abóbadas de concreto, elementos que tocam o piso criando situações de tensão entre a cobertura e a vedação dos espaços internos. (Figs. 6 a 8)
Concebido de modo a constituir uma “unidade residencial autônoma”, o conjunto do Pedregulho transcende esta ideia ao buscar associar a criação de pequenos núcleos urbanos àquela da cidade linear proposta por Le Corbusier, em 1929 e 1936. Se encarado como matriz de uma série de outros projetos —como de fato era a intensão do Departamento de Habitação Popular— pode-se dizer que, com ele, vislumbra-se uma nova possibilidade para o planejamento global da cidade do Rio de Janeiro. A possibilidade que se abre baseia-se numa nova estrutura urbana organizada em núcleos autônomos integrados por meio do sistema viário que, por sua vez, assumem nova escala de cidade.
MAM: razão e emoção no universo da técnica
O projeto para a sede do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1953-1954) ocorreu dentro de um contexto no qual a preocupação pela construção de uma nova modernidade urbana era compartilhada pelo poder público e o privado. Entre o MAM e o Pedregulho, existem importantes fatores de continuidade em relação à obra de Reidy. O entendimento do edifício como elemento gerador de um novo espaço público é um deles.
Desde sua criação, a concepção museológica do MAM-RJ envolvia um projeto educativo cuja tarefa primordial era a de educar as “massas”. Assim, enquanto entidade, ele foi concebido como um espaço para que se “entendesse” a arte moderna, um espaço que ajudasse a desenvolver a sensibilidade do homem comum em direção a uma nova estética essencialmente calcada no abstracionismo; um “museu-escola” voltado para a formação de uma produção artística integrada à indústria e à tecnologia.[5] (Fig. 9)
Idealizado como espaço símbolo de uma nova modernidade urbana, o MAM possuía um discurso e uma narrativa próprias sobre si mesmo. Reidy apropriou-se deste discurso —que em muito se identificava com sua maneira de entender a arquitetura—, traduzindo-o em seu projeto, conceituado como “museu dinâmico”, espaço educativo e de socialização.
Lugar aberto ao grande público, o MAM também foi concebido integrado ao mais novo espaço de lazer da cidade: o Parque do Flamengo. O Museu e o Parque — ambos, espaço público— projetados como um único equipamento, representavam perfeitamente a ideia do edifício dentro de um parque.
Estrutura leve e transparente, o Museu se abre para a baía. Com uma horizontalidade perfeita, ele simboliza o aterro: plataforma de contemplação. Plataforma elevada, assume e representa, ao mesmo tempo, o papel de pórtico de passagem entre a cidade cosmopolita e o parque. Seus espaços, desde os primeiros croquis, surgem como espaços monumentais.
O propósito de utilizar o pórtico como estrutura do edifício estava relacionado à ideia do ambiente único, o que significava, eliminar completamente os apoios do interior do edifício. Além disto, estava associado ao desejo de explorar formalmente o uso do concreto armado de modo a criar uma estrutura inédita, valorizando o elemento técnico como elemento integrador do projeto. O pórtico é aquele que representa e sintetiza a estrutura do edifício, entendida em sua concepção mais ampla.
Como parte da estrutura formal do edifício, além do ambiente único, integrado ao exterior por meio de suas transparências, e do pórtico como expressão máxima de racionalidade, estava a luz como elemento capaz de produzir variadas sensações e estimular visualmente o usuário. Introduzida de forma difusa e localizada, ela possui o papel de tensionar a pele delgada das superfícies de vidro e a massa corpórea do pórtico. Tal estrutura pode ser completamente apreendida através da secção do edifício. (Fig. 10)
O MAM é o primeiro projeto onde aparece claro, na obra de Reidy, a busca de novos caminhos fora dos limites da obra de Le Corbusier e de Niemeyer. É o primeiro projeto em que procura fazer uma releitura miesiana, aplicando os princípios aprendidos de Le Corbusier. Nela se identificam o Mies van der Rohe do Crown Hall e o Le Corbusier de Chandigard. O pórtico —corbusiano— e a caixa de vidro —miesiana— são tratados como estruturas autônomas que lutam por um mesmo espaço.
À repetição e à linearidade do pórtico, contrapõem-se a variedade e a descontinuidade da laje do teto. Às ideias de repouso e equilíbrio presentes na obra de Mies, Reidy acrescenta a dramaticidade dos espaços de Le Corbusier. À ideia de ambiente único e isotrópico, Reidy acrescenta a variedade e hierarquia presentes em toda a sua obra. Mezaninos, lanternins, rampas e as diferentes formas de incidência da luz produzem a divisão virtual dos espaços.
O espaço de entrada do Museu e o pátio interno da “Escola Técnica da Criação”, estruturados com base no conceito da promenade architecturale, são espaços hierarquicamente diferenciados que buscam representar o conceito de “museu dinâmico”. Neles, Reidy procura explorar as ideias de percepção visual e de campo ótico —utilizadas pela arte concreta e informadas pela teoria da Gestalt— quando manipula inventivamente as formas para produzir uma nova ordem de informações visuais, forçando o espectador a romper esquemas convencionais de percepção. (Figs. 11, 12 e 13)
Além da sofisticação do sistema estrutural e da manipulação dos espaços do edifício, outras investigações são levadas a cabo neste projeto. Os elementos de controle de luz e de temperatura dos ambientes, não são mais aqueles, em forma de membrana, agregados às fachadas. Eles passam a ser estudados de modo a integrar a volumetria do edifício, fazendo parte de sua estrutura globalizante e uníssona. A necessidade de refletir sobre a essencialidade da obra, neste caso representada pela ideia de “estrutura”, faz parte de uma tendência própria da arte na modernidade, em sua busca de aproximação com a ciência e a técnica.[6]
No MAM, Reidy procura explorar as relações formais e estéticas do concreto aparente e do tijolo à vista: mais um exemplo da interação entre obras de Le Corbusier e Mies van der Rohe. As relações táteis e estético-visuais entre o usuário e o objeto artístico —leia-se arquitetônico— se dão por meio deles. O edifício, como espaço lúdico, contribui para ensinar. Ele educa e fomenta a sensibilidade do homem para viver na nova cidade. Neste sentido, o paisagismo proposto por Burle-Marx, tanto para o entorno imediato do museu, quanto para os espaços do Aterro, foram fundamentais. A ideia de projetar espaços abertos coerentes com a proposta do Museu, nele estão presentes. Concebidos como uma grande obra de arte, seus jardins buscam responder à ideia de integração das artes, na épocatão cara aos arquitetos brasileiros. Estes jardins, como elemento didático da arte abstrata, são igualmente espaços representativos da narrativa do Museu sobre si mesmo.
Aterro do Flamengo: cidade, território e paisagem
Na Prefeitura do então Distrito Federal, Reidy desenvolve, em um ambiente pluridisciplinar, os temas do centro cívico, da unidade de vizinhança e do parque, que relaciona com o sistema viário como mecanismo essencial para a integração da metrópole e da democratização do uso do solo. Em seus projetos, reconhece a cidade existente e o contexto natural como pontos de referência para a materialização da nova cidade. O contexto urbano, para o qual propõe espaços representativos de uma nova ordem social, é para ele uma situação concreta e particular, cujas valências devem ser descobertas, favorecendo a coexistência de ambas cidades: a das ruas e a dos símbolos edificados dialogando com a paisagem.
Seu plano mental para o Rio de Janeiro é concebido a partir de “fragmentos” —os articuladores do sistema viário. A grande autopista, elemento técnico integrador da cidade, está presente em seus planos de urbanização para o Rio desde a Esplanada do Castelo (1938). (Fig. 14) Nos projetos que Reidy realiza para a urbanização do desmonte de Santo Antônio, dez anos após, a temática do “centro de gravidade” da cidade e da ligação entre a zona norte e a zona sul — presentes no projeto para o Castelo—, voltam a aparecer com maior intensidade. Tais projetos apresentam-se como fragmentos da cidade de Le Corbusier e materializam a ideia do centro cívico e representativo da cidade moderna, foco da discussão do CIAM de 1951, ocorrido em Hoddesdon, na Inglaterra, e presidido por Josep Lluís Sert.[7]
O problema da urbanização do Aterro Glória-Flamengo tem uma primeira abordagem no projeto que Reidy realiza, em 1948, para o Santo Antônio, quando já propõe o parque para a zona do Aterro e a conexão da autopista norte-sul, que cruza a urbanização, com uma perimetral que substituiria a Avenida Beira-Mar nesta região. A proposta de criação de um grande parque nesta área é mantida por Reidy durante anos, sendo motivo de vários confrontos seus com a administração municipal. Em 1949, a pedido do Prefeito, Reidy modifica o projeto para a Urbanização de Santo Antônio, propondo uma série de arranha-céus próximos ao mar, junto à zona do Aterro.[8] (Fig. 15) Esta ideia é abandonada pelo arquiteto por ser considerada inviável. Construir na orla significava simplesmente o afastamento da praia do Flamengo para ampliação da zona edificada do bairro, não resolvendo com eficácia a questão da ligação entre as zonas norte e sul e nem respondendo ao projeto de cidade por ele almejado, a ideia de criar uma grande área verde, um “parque” sem precedentes em escala urbana.[9]
Essa ideia de criar um “pulmão” natural para a cidade, que saneasse seus problemas ambientais e ao mesmo tempo funcionasse como um “parque ativo” destinado às grandes massas e que fosse “o mais moderno espaço da cidade”, eram partes importantes desde projeto. Reidy retoma estas ideias, em 1953, quando desenvolve o anteprojeto para o Museu de Arte Moderna e as desenvolve, definitivamente, no projeto realizado em 1962.
A proposta para a Urbanização Glória-Flamengo (1962-1964), tem como principais elementos estruturadores o sistema viário e o paisagismo. São evidentes duas ideias-chave: a de se criar uma nova paisagem e a da democratização dos espaços públicos.
A construção da autopista significava não apenas a possibilidade de ligação entre a zona norte e a zona sul —áreas proletárias e burguesas, respectivamente—, mas também a acessibilidade, tanto ao parque , quanto ao Museu, à toda a população da cidade. O Parque do Flamengo não se tratava de mais um espaço de lazer destinado a uma parcela limitada e localizada da população, mas de um parque em escala compatível a uma grande metrópole cosmopolita.
Significava a construção de uma nova paisagem que recriasse espaços de grandes dimensões, de uma plasticidade vigorosa, moderna e de conformação precisa. Buscava refletir a amplitude da geografia da baía da Guanabara, materializar a imagem de ambiente tropical urbanizado idealizada pelos dirigentes da capital brasileira desde o final do século XIX. Uma paisagem que, com suas autopistas e passagens elevadas —elementos de primorosa arquitetura e engenharia— representa uma estrutura inédita de espaço urbano. A autopista, como grande obra de engenharia, torna-se o novo “edifício” que ordena os meandros da metrópole. Estes elementos técnicos, que ordenam e organizam os espaços a nível urbano, buscam a racionalização do projeto e a recriação desta paisagem.
No parque do Aterro, a natureza e a técnica aparecem como um binômio perfeito, ambas possuem coerência interna e imunidade a fatores externos que possam perturbar sua lógica. Como espaço social e educativo, articula signos ambivalentes que representam um sonho de ordem social.
Espaço público representativo da modernidade dos anos 50/60, da cultura do automóvel e da sociedade de massas, o Parque do Flamengo, como hoje é conhecido, altera a paisagem europeia da cidade de Pereira Passos, tornando-se um modelo de espaço público brasileiro. (Fig. 16)
* Este texto foi escrito com base na tese de doutorado “Affonso Eduardo Reidy. O Poeta Construtor”, defendida na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, em fevereiro de 2000. Ela busca sintetizar o fio condutor da análise interpretativa realizada, trazendo consigo uma das facetas da obra do arquiteto carioca, a nosso ver, a mais instigante.
Eline Maria Moura Pereira Caixeta é arquiteta pela Universidade Católica de Goiás (1986), especialista em cultura e arte barroca pelo Instituto de Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (1990) e doutora pela Escola Técnica Superior de Barcelona - Universidade Politécnica da Catalunha (2000). Atualmente é professora de projeto, história e teoria da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo das Faculdades Integradas Ritter dos Reis, onde coordena o Laboratório de História e Teoria da Arquitetura.
Notas
[1] O Plano da Cidade Universitária (1936-1937), como metáfora da cidade —lugar da utopia realizada— foi outro projeto que se tornou, nesta época, foco do embate entre estes dois modelos de urbanismo.
[2] Nos referimos não só a seus projetos arquitetônicos e de conjuntos urbanos, mas a toda sua atuação como diretor do Departamento de Urbanismo da Prefeitura do Distrito Federal, entre 1948 e 1955.
[3] Trata-se dos projetos para o edifício sede da Prefeitura do Distrito Federal (1932), o edifício sede da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do D.F. (1934), a Escola Primária Coelho Neto (1933-1937) e o edifício sede da Polícia Municipal (1935-1937).
[4] A questão da habitação popular era vista em sua integridade: em sua dimensão arquitetônica, urbana, social e econômica. Os conjuntos, construídos e mantidos pela Prefeitura, eram de sua propriedade. A moradia era um serviço prestado pelo Estado à população de baixa renda, na medida de suas necessidades, assim como a saúde e a educação. Segundo Reidy e Carmen Portinho, cada bairro da cidade deveria possuir habitações populares, já que todos eles possuíam trabalhadores. Além do problema da habitação, se deveria também avaliar a questão da acessibilidade e dos meios de transporte, de modo a “poupar”, aos trabalhadores, o “cansaço”, que prejudica a saúde e o trabalho.
[5] O MAM-RJ, teve como modelo de entidade museológica o MOMA de Nova York e como principal referência pedagógica a Bauhaus de Gropius. Sua história se confunde com a história da arte abstrata no Brasil.
[6] Essa tendência é expressa de forma explícita nos textos que escreve sobre o Museu, por volta de 1958. Em seu antecedente mais próximo na ideia de explorar formalmente a estrutura portante do edifício e seus elementos construtivos, o Colégio Experimental Brasil-Paraguai (1952-1965), a secção já aparece como elemento definidor da estrutura geral do edifício.
[7] A ideia de que cada área deva possuir um centro ou núcleo e cada cidade, um centro cívico moderno onde a comunidade possa desenvolver atividades e intercâmbios culturais e comerciais, já estava presente nos projetos de Reidy para o Castelo e Santo Antônio e inclusive era abordada, de forma geral, no plano de Agache para o Rio de Janeiro.
[8] Projeto realizado em coautoria com Hermínio de Andrade e Silva.
[9] Parte das estratégias empregadas no Aterro Glória-Flamengo, desde o início, centram-se no princípio de “desurbanização” contido na cidade linear de Soria y Mata e nas propostas de Le Corbusier para o Rio.
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