Este artigo foi originalmente publicado no caderno de Cultura do jornal Expresso.
Quem atravesse por estes dias os corredores do Metro de Paris não deixará de reparar num cartaz a anunciar uma das inúmeras exposições disponíveis na cidade. Les Universalistes – 50 ans D'architecture Portuguaise é uma das formas encontradas pela Fundação Calouste Gulbenkian, para, ao assinalar 50 anos de presença em França, dar um novo contributo para a divulgação de uma das facetas mais relevantes, mais discutidas, mais seguidas da contemporânea cultura portuguesa.
Neste momento são múltiplas as manifestações artísticas com origem em Portugal presentes na capital francesa. Há, por exemplo, Ana Jotta em Yvri-sur-Seine, Ana Almeida em Ju de Paume ou Julião Sarmento, na delegação parisiense da Gulbenkian. A partir da próxima quarta-feira abre no Grand Palais a grande e tão esperada exposição dedicada a Amadeo de Souza-Cardoso.
"Venho inchado e com o meu orgulho de ser português em alta". Assim se expressava Eduardo Souto de Moura após ter usufruído do facto de, na companhia de Álvaro Siza, ter sido convidado a fazer uma primeiríssima e inesperada visita à exposição, ainda numa fase de montagem.
Há um evidente universalismo em Amadeo, nunca suficientemente reconhecido internacionalmente. Não por acaso, é também de universalistas que fala a mostra de arquitetura portuguesa presente na Cité de l'architecture. Embora aqui seja outro e de uma enorme vastidão o sentido dado à palavra universalismo pelo comissário Nuno Grande, ainda assim tudo conflui na ideia de algo afastado de uma componente muito paroquial da qual decorreria uma suposta singularidade arquitetónica portuguesa.
A questão não é pacífica, desde logo por ser ainda esse o olhar de alguns críticos e outros interessados na disciplina, como se viu esta semana em Paris durante os debates organizados na Cité de l'architecture. Percebe-se a existência de três ideias feitas e muito redutoras sobre a arquitetura feita em Portugal. Uma, acondiciona-a numa visão idealizada, porventura romântica, de um trabalho feito, não exatamente por profissionais que, sendo arquitetos, seriam sobretudo algo parecido com artesãos de uma profissão cada vez mais mediatizada. Esta perceção tende a reduzir as especificidades da arquitetura portuguesa ao muito particular momento vivido durante o período pós-25 de abril, com o SAAL e o trabalho participativo com as comunidades na tentativa de construção de uma habitação social digna e de qualidade. Por fim, e porque há hoje uma necessidade absoluta de individualizar e criar vedetas, acontece com demasiada frequência a tentação de reduzir o universo arquitetónico português a Álvaro Siza e, ocasionalmente, também a Eduardo Souto de Moura, os dois laureados com o Prémio Pritzker.
Ao apresentar meio século de pensamento e produção arquitetónica em Portugal, a exposição de Paris é a demonstração prática de uma realidade que é, em tudo, o contrário daquele conjunto de visões estáticas, reacionárias mesmo.
Ao desenvolver ao longo de décadas um diálogo assente numa fusão inteligente entre o que é especificamente local e o que resulta do conhecimento do mundo que nos rodeia, isto é do global, a arquitetura portuguesa, sem deixar de expressar o que possam ser as heranças culturais e sociais decorrentes da sua condição geográfica, nunca abdicou de absorver a herança mais vasta do pensamento e da produção arquitetónica universal.
Por isso, embora possam suscitar espanto, deviam antes de mais ser merecedoras de respeito pela qualidade nelas contidas, obras como a igreja da “Sagrada Família”, de Amâncio (Pancho) Guedes, em Machava, Moçambique, a estaçāo ferroviária da Beira, de Joāo Garizo do Carmo, Francisco José de Castro e Paulo Melo Sampaio, em Moçambique, a "Casa em Ovar", de Paula Santos, uma das poucas arquitetas representadas na mostra, a embaixada de Portugal no Brasil, de Chorão Ramalho, ou a Casa das Mudas, na Madeira, de Paulo David. São escassos exemplos de uma lista longa onde se incluem obras, entre outros, de nomes referenciais como Fernando Távora, Nuno Teotónio Pereira, Francisco Keil do Amaral, Álvaro Siza, Gonçalo Byrne, Alcino Soutinho, Eduardo Souto Moura, Manuel Graça Dias, João Luís Carrilho da Graça, os irmãos Aires Mateus, Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos.
Numa tradução inequívoca do valor do trabalho desenvolvido pelas diferentes gerações, é crucial perceber que neste exato momento há teatros, mesquitas, prédios de habitação, museus, igrejas e o mais que se possa imaginar, a serem construídos, com assinatura de arquitetos portugueses, nos mais diversas paragens do mundo. De Portugal à China ou aos Estados Unidos da América.
É o resultado da afirmação da qualidade de um trabalho ao qual já pouco interessará o debate sobre o regionalismo ou a insistência numa especificidade portuguesa. Ao construir a sua vocação universal, esta é uma arquitetura que, em definitivo, se libertou do mito do bom selvagem. Não é uma curiosidade arqueológica ou sociológica que seria curioso preservar. É uma realidade concreta, com propostas inovadoras, num mundo cada vez mais globalizado.
Valdemar Cruz é há mais de 20 anos jornalista do semanário Expresso, onde chegou após ter trabalhado noutros jornais e revistas. Responsável pela redação do semanário no Norte de Portugal, é licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Várias vezes distinguido pelos seus trabalhos jornalísticos, recebeu em 2001 o Prémio Gazeta (Reportagem), o mais importante prémio de jornalismo atribuído em Portugal. Tem colaboração dispersa por vários órgãos de comunicação portugueses e estrangeiros. Tem vários livros publicados, entre os quais um sobre Álvaro Siza Vieira, intitulado Retratos de Siza.