Pavilhão brasileiro em Veneza tem méritos, mas ignora momento histórico do país.
No momento que um muro dividindo a Esplanada dos Ministérios em Brasília se tornou o símbolo de um país segregado, o tema do pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza de Arquitetura em 2016 dificilmente poderia ser mais paradoxal: “Juntos”.
A mostra curada por Washington Fajardo, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade ligado à prefeitura carioca de Eduardo Paes do PMDB (mesmo partido do presidente interino Michel Temer), optou por uma visão positivista tanto da arquitetura como da história do Brasil. A assistência de curadoria coube a Francesco Perrotta-Bosch.
Na primeira sala, o texto “Echos” retrata o Brasil como uma feliz amalgama resplendente de povos, raças e culturas. Se essa tese sustentou olhares sociológicos sobre um projeto de país nas primeiras décadas do século 20, ela foi hoje desconstruída pela academia e considerada base ideológica da dominação social e racial do país.
Duas fotos no pavilhão são particularmente levianas nesse contexto: as jornadas de Maio de 2013 e a célebre imagem de Tuca Vieira do condomínio de luxo junto da favela de Paraisópolis. De quais “Juntos” estamos falando? Trata-se de uma zombaria da situação social brasileira ou de uma reflexão ingênua e até em certa medida alienada do contexto e das ciências sociais?
Se por um lado a representação brasileira se ausenta de um pensamento crítico político, por outro, apresenta certos avanços na expografia e na seleção de obras levadas a Veneza. Soa contrastante o discurso da curadoria em sua moldura teórica com as obras de arquitetura exibidas na segunda sala do pavilhão no Giardini.
Projetos sem crítica
Por meio de projetos como a Casa do Jongo do Rua Arquitetos ou a Casa da Vila Matilde de Terra e Tuma, a representação brasileira procurou esboçar um diálogo com o tema geral dos pavilhões, Reporting from the Front [Notícias do Fronte], proposto pelo curador Alejandro Aravena, mostrando relações entre a arquitetura e comunidades. A seleção de obras teve a qualidade de ser original, desconhecida do grande público internacional.
Contudo, seguindo a toada positivista (e isso não foi exclusividade brasileira nessa Bienal) a mostra se furtou de discutir a arquitetura a fundo; as contradições da prática contemporânea. Para o Jardim Edite do MMBB e H+F, por exemplo, não há qualquer sinal de discussão sobre a propriedade privada e sobre a ausência de aluguel social no conjunto, nem mesmo sobre como os moradores podem se sustentar em um bairro nobre de São Paulo.
Já o Minha Casa Minha Vida – maior projeto de construção civil no Brasil – aparece apenas em um interessante selo de certificação da Fundação Vale, sem, porém, que sejam apresentadas as limitações das certificações institucionais ou do contexto dos desastres urbanísticos já produzidos pelo programa federal nos últimos 10 anos.
Apesar do predomínio de obras no Rio de Janeiro, não se vê sinal também das atuais tensões sociais e raciais da cidade, nem dos efeitos de gentrificação – aspectos relevantes para as comunidades contemporâneas. Por outro lado, a apresentação sobre o Parque de Madureira parece uma verdadeira propaganda política da prefeitura carioca.
Assim, debates, tensões e contradições – que tornam uma Bienal de Arquitetura potencialmente interessante e relevante – foram neutralizadas. Se a proposta era atualizar a situação de nossas trincheiras de guerra, a curadoria acertou em identificar objetos, mas não no teor das notícias enviadas. Fica ainda uma pergunta mais abrangente: seriam esses projetos suficientes para oferecer qualquer alento frente ao gigantesco desastre urbano no país?
Em busca de uma forma
De qualquer maneira, há méritos a serem reconhecidos como a expografia – uma grande mesa com cartazes coloridos destacáveis com bonita programação visual e maquetes – e a produção de conteúdo inédito – como textos com linguagem acessível e bem traduzidos para o inglês, além dos vídeos de apresentação de todos os 16 projetos.
Os vídeos logo se mostram também frágeis. Por meio de uma cinematografia inapropriada para arquitetura (sem precisão técnica de enquadramentos e movimentação), lembram reportagens televisivas; burocráticas e arrastadas. A escolha dos equipamentos de exibição (televisões pequenas com autofalantes abertos para o espaço, praticamente inaudíveis) aliada ao ritmo da edição faz com que assistir tudo seja uma penosa saga.
Em uma Bienal que traz a produção audiovisual de Cristóbal Palma sobre o GrupoTalca no Arsenale ou o emocionante filme do pavilhão de Portugal narrando histórias de Álvaro Siza, a representação brasileira não apresentou nenhuma inovação de linguagem.
Representação negligenciada
Para entender os problemas da representação brasileira não basta olhar para a mostra. O Itamaraty – sediado na maior obra de Oscar Niemeyer – delegou as representações em Veneza à Fundação Bienal de São Paulo, que tem dado pequena importância para a Bienal de Arquitetura.
Nunca foi instituída qualquer comissão oficial permanente sobre o assunto e, mais grave, o curador é definido por uma espécie de concurso secreto, sem transparência das propostas e permeabilidade democrática. Poucos pavilhões nacionais são ainda tão fechados quanto o brasileiro, sem sequer chamadas aberta de ideias.
Para 2016, confirmaram o curador apenas em dezembro, oferecendo irrisórios quatro meses úteis para pôr de pé a complexa mostra, com agravante de ser subfinanciada (não sobra tempo para levantar patrocinadores...). É necessário – mesmo que de forma paradoxal – reconhecer o trabalho dos envolvidos por executarem a exposição em condições tão ruins.
As representações em Veneza – pela relevância e projeção internacional – têm o potencial de sintetizar reflexões críticas dos países ou propor novos rumos para debates. Nada disso tem se mostrado como horizonte para o Brasil. Pois 2018 está logo ai: o que podemos esperar?