Uma das características pela qual a década de 10 do século XXI será lembrada é a da inclusão quase que irrestrita dos dispositivos móbiles (celulares, tablets e outros) na vida e no cotidiano das pessoas de qualquer classe social, salvo em raras partes do mundo. Como símbolo gerador de maior impacto nos tempos de hiper conectividade, podemos destacar os aparelhos da categoria “smartphone”, que por meio da internet remota, nos faz acessível a qualquer conteúdo ou plataforma online, inclusive esses mesmos aparelhos hiper conectados nos proporciona outro experiência já indelével de nossos tempos, as interações sociais virtuais por meio de redes sociais.
Nessas redes sociais podemos distinguir com muita facilidade a elaboração de conteúdos de informação como fotos ou pequenos textos, onde o foco em geral é a transmissão de uma experiência pessoal vivida a um determinado grupo de pessoas, sendo essa experiência cotidiana ou ímpar, relevante ou ordinária, mas que deve ser registrada e compartilhada, como manda as regras de etiqueta sócio virtuais.
Podemos até não ser usuários ou entusiastas dos dispositivos móbiles, mas por fazermos parte ou pelo menos estarmos à deriva da geração denominada Millennials, ou ainda a nova geração Z, que já nasceu digitando com seus polegares opositores em telas sensíveis ao toque, não podemos deixar de analisar as capacidades e potencialidades que esses dispositivos podem oferecer, seja de encurtar distancias ou de organizar eventos em grande escala com um objetivo comum, como os movimentos da chamada Primavera Árabe de 2010.Também por estarmos inseridos nessa sociedade conectada não podemos deixar de pensar nas disparidades, perdas e conflitos que essa tecnologia ou até esse modo de vida possa trazer.
Em idas recentes a museus no Brasil ou de outros países, é notável a grande quantidade de pessoas utilizando os dispositivos móbiles para registrar o acontecimento da visita, e claro em geral “compartilhando” na rede em tempo real o momento. No entanto com o massivo uso dos dispositivos nesse tipo de espaço, muitas vezes ficamos envoltos por um mar de pessoas a fotografar e ser fotografado junto de sua obra favorita, ou não tão favorita. Assim tanto quem visita sem registrar, quanto aquele que registra a todo o momento acaba perdendo ou deixando realmente de “ver” e sentir tanto a experiência espacial do museu ou da montagem daquela exposição ou ainda deixa de apreciar, mesmo que da forma mais inculta, simplesmente por mero deleite estético a obra disponível.
O “ver” na atual realidade saí prejudicado e uma das funções mais importantes dos museus é perdida. A função da educação do olhar e da percepção em uma ambiente controlado de que todos os indivíduos fazem parte de uma complexa e intricada realidade. Mas que essa realidade é moldável as nossas necessidades, contudo se vivenciamos uma parte considerável de nossas experiências em mundo virtual e nos distanciamos do presente real, como iremos moldar nosso futuro?
Levando o problema da perda da experiência real e a importância do museus para a compreensão dessa realidade, como cerne dessa discussão, encaramos à principal indagação: Deveriam os museus banir totalmente o uso de dispositivos móbiles ou câmeras fotográficas de suas dependências, para dar maior ênfase na experiência museólogica e no “ver”.
Vejamos por exemplo a experiência do Rijksmuseum de Amsterdã, casa do famoso A Ronda Noturna de Rembrandt, e seu programa The Big Draw que incentiva as pessoas a largar suas câmeras e ver através do desenho, para observar melhor a beleza e o mundo que se apresenta a sua volta, com calma e segundo a direção do programa sem a distração de um dispositivo a vibrar a todo o momento. Iniciativa essa que um arquiteto sabe compreender como poucos profissionais, pois temos a noção do poder não só de comunicação do desenho ou croqui, mas também do de apreensão do mundo em que vivemos.
Dessa forma se coubesse ao arquiteto, em gênese produtor e pensador do que é o espaço ocupado pelo ser humano, defensor máximo da experiência espacial, responder a pergunta de banir os celulares e afins dos museus de maneira radical, rápida e sem uma análise profunda do todo. A resposta certamente seria sim. Deveríamos banir, totalmente os celulares e afins do local sagrado e hermético chamado museu. Proteger o usuário dele mesmo, e tentar direcionar toda sua atenção à experiência de visitar esse depósito de cultura humana. Direcionar seu olhar a cada detalha do edifício ou da montagem e despertar nele a mais aguda sensibilidade quanto a pureza da arte.
Mas vamos analisar alguns fatos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Museus, tivemos 24.853.648 de visitas a museus em 2014, levantamento esse feito pela primeira vez com abrangência nacional, o que não nos deixa em situação de análise comparativa entre anos, mas que demonstra um numero bastante expressivo. Contudo com uma breve retomada de lembranças, vimos durante o ano corrente, noticias em jornais ou mesmo porque encaramos as grandes hordas humanas a visitar exposições internacionais em museus brasileiros como foi o caso do sucesso da Exposição Yayoi Kusama: Infinite Obsession, a sexta e sétima exposições mais visitadas do mundo em sua versão paulista e carioca respectivamente, sendo que ainda existem mais cinco montagens entre as top 20 de 2014 segundo a lista da referencial revista inglesa The Art Newspaper.
Não podemos esquecer ainda das movimentadas exposições montadas no MIS-SP que estão entre os mais populares como a do Castelo Rá-Tim-Bum que teve 410.000 vistas ou a do artista Ron Muek com 165.000 visitas na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Analisando rapidamente essas montagens percebemos como características comuns entre elas a boa gestão e curadoria dessas exposições e montagens impecáveis que mostra uma especialização profissional dos envolvidos, e também o caráter de interatividade e liberdade praticamente total de registro fotográfico do publico, liberdade essa que até a poucos anos era restrita, pois a grande maioria dos museus não permitia esse registro. Assim ou os museus perceberam que não conseguiriam impedir ou policiar os usuários, pois o número de pessoas que portam uma câmera fotográfica cresceu exponencialmente ou os dirigentes das instituições resolveram tirar partido dessa revolução.
A meu ver a popularidade dessas montagens está totalmente relacionada com o registro e posterior compartilhamento da visita nas redes sociais, fazendo assim surgir uma espécie de marketing digital espontâneo, de grande abrangência a custo zero para a instituição organizadora, e que cria no receptador dessa informação uma ânsia de vivenciar e por conseqüência nesse ciclo, compartilhar sua vivencia a outros nas redes, formando uma rede extensa de visitantes, que em muitas ocasiões se não pagam a entrada da exposição acabam por consumir produtos relacionados aquela montagem. Formando-se assim uma chance única para angariar fundos e manter esses espaços.
Essa questão inclusive das chamadas lojas de surveniers, uma parte dos programas de museus que deve ser repensada nos âmbitos de arquitetura e marketing, pois poderia representar uma parte importante de geração de receita ao museu, pois em geral temos somente uma pequena loja desse tipo em todo um museu, e poderíamos sem duvida ter espaços mais generosos e integrados a cada exposição, criando-se não uma mercantilização da arte, mas fortalecendo um mercado criativo que se relaciona com ela, na criação de produtos editoriais, peças licenciadas e outros.
Podemos destacar ainda maneiras muito criativa de aproveitar esse boom de visitantes munidos de celulares para até ampliar a experiência, como é o caso ainda restrito do uso da tecnologia de realidade aumentada, vide a recente exposição que aconteceu no Centro Cultural Banco do Brasil, do artista Kandinsky, que utilizou os óculos RIFTS, em um espaço restrito do saguão do prédio, que nada mais são que simples celulares plugados a headfones e uma caixa de papelão com lentes. Ou ainda o aplicativo disponível no Museu Afro Brasil, que pode ser baixado gratuitamente e funciona como áudio-guia da exposição. Ou seja, algumas dessas tecnologias disponíveis e outras que com certeza virão, podem ser usadas para integrar os espaços museológicos e nós arquitetos devemos conhecer essas possibilidades, como cita a arte educadora Ana Mãe Barbosa, “interpretar uma exposição é um processo tão complexo e dialético, quanto interpretar um quadro ou uma escultura” e essa dialética que é o interessante a ser explorado, como as redes sociais por exemplo, pois mostra-se um meio profícuo para a discussão e desvendamento de múltiplas visões do que é arte, espaço do museu e também de mundo, talvez se bem utilizada a rede social, pode ser até mesmo ser um canal de análise de reorganização e gerenciamento do museu, medindo a satisfação, integração e absorvimento a que o visitante foi exposto.
No entanto essa situação de hiper conectividade tem outro lado possível, que é o de limitar ou anular a experiência do espaço museológico, pois acaba levando o usuário a perceber o espaço de maneira restrita, preocupando-se somente com o anseio de registrar. Mas esse ponto da perda de entendimento do que acontece a volta de si mesmo, por conta dos celulares, é uma característica que afeta as mais diversas atividades humanas atualmente, seja no trabalho e a perda de produtividade ou a falta de atenção no transito ou simplesmente os desvios de conversas em uma mesa de bar com os amigos. No entanto perante um cenário cultural atual em que as pessoas normalmente não possuem hábitos de visitas a museus, surge um cenário muito interessante de procura intensa de visitas a esses equipamentos, o que de certo modo pode efetivamente fazer com que as funções básicas do museu possam ser atingidas pelo um número crescente de pessoas, e mais, criar o hábito efetivo nas pessoas de visitar regularmente museus, tanto os de montagens mais preservacionistas quanto os de caráter mais exibicionistas como os de arte contemporânea.
Dessa forma com um pouco mais de horizonte podemos quem sabe responder a questão posta anteriormente. Não, os museus não deveriam banir totalmente os dispositivos móbiles, mas deveriam restringir em alguns locais, não por questão de segurança, devido ao alto custo da obra exposta ou ineditismo daquela, mas restringir de acordo com uma montagem que em certas situações foque na experiência museológica, mas que em outras situações liberem e façam com que os usuários interajam totalmente com obra e espaço e estimule uma pesquisa pós-visita, como é o caso exposto do Rijksmuseum, que orienta de uma forma simples o visitante a pensar e ver, arte e espaço, mas que poderíamos adaptar de uma forma menos restritiva com a articulação dos dispositivos móbiles. Quem sabe um caminho a seguir seria a criação de Apps que orientariam o visitante a conhecer melhor a história da edificação onde se instala o museu, ou os bastidores da montagem ou até mesmo por meio dos chamados quiz, que o usuário poderia submeter-se após a visita e melhorar um ranking compartilhado na página da rede social determinada instituição.
Algumas idéias expostas que de nada possuem de original ou de determinante somente, tem a função de exemplificar que arquitetos, educadores, curadores e até artistas podem e devem tirar o máximo proveito da situação atual de hiper conectividade e mais especificamente o arquiteto deve antever nos projetos de novos museu ou adaptação esse mundo conectado, que ainda vai sofrer mudanças, mas que aponta que as pessoas não irão mais se desconectar ao menos que consigamos orientar sua atenção.
Ronaldo Amaro é arquiteto e urbanista, atuou no setor publico em prefeitura de pequeno município, e desde 2012 é sócio em escritório de arquitetura onde concilia a atividade de pesquisa em arquitetura.
Referencias
Ana Mae Barbosa, A imagem no ensino da arte, cap. 4, 8ª edição, Ed. Perspectiva, São Paulo, 2012.
Formulário de visitação anual, 2014, Instituto Brasileiro de Museus, disponível online, acessado em 20 de outubro de 2015.
Visitor Figures 2014, The Art NewsPaper, 267, Abril de 2015, disponível online.
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