Este artigo foi originalmente publicado na Metropolis Magazine como “Dystopia in the Sky."
Para arquitetos, se eu posso generalizar toda uma comunidade profissional, existem poucos novelistas louvados como J.G. Ballard. Borges ou Calvino possuem sua significante porcentagem de admiradores, emprestando um adjetivo usado para descrever edifícios, Ballard é o mais icônico das figuras literárias - especialmente para os fãs de concreto. Tendo testemunhado a guerra enquanto criança, recebido treinamento em medicina, e posteriormente escrevendo a partir de um subúrbio de classe média, Ballard escreveu textos sobre a vida urbana que continuam a ser visceralmente desconfortantes.
High-Rise (em Portugal Arranha-Céus) foi publicado em 1975, em meio a crise econômica da Inglaterra. A prosa arrepiante de Ballard não será recriada aqui, mas em consideração à nova adaptação ao cinema dirigido por Ben Wheatley, o contexto original vale ser revisitado. High-Rise foi publicado depois do brilho da reconstrução do pós guerra e o estado do bem estar se apagaram: qualquer otimismo que restava levou vários golpes através de crises de combustíveis, greves industriais e escassez de alimentos. O modernismo foi declarado morto logo que foi instaurado. Visões inovadoras para habitação em massa - Eficientes! Pré-fabricadas! Modulares! - tiveram seu valor relacionado as engenharias e foram mal administrados, levando a execráveis condições físicas e sociais das muitas torres e propriedades construídas as pressas em todo o país. O efeito foi uma desconfiança na arquitetura em si: essa maneira de viver não funcionou. O livro de Alice Coleman de grande influência chamado Utopia on Trial (ainda sem tradução para português) categoricamente prejudicou os experimentos de habitação em grande escala, concluindo que a mudança dos fatores sociais não foram considerados no uso do solo, projeto ou disposição de esquemas como o Thamesmead, Roehampton, ou ainda Robin Hood Gardens.
As célebres torres Trellick e Balfron de Ernö Goldfinger estão muito acima do livro contemporâneo de Ballard, e também por sobre o filme. As passarelas internas e todo o concreto apaixonante do High-Rise de Wheatley têm uma semelhança notável com os pontos turísticos de Londres de Goldfinger, uma vez odiado, agora amado ao extremo. Aí que a similaridade termina. No filme, o experimento do arquiteto ficcional Anthony Royal é uma "mão" propositadamente deselegante de dedos tortos, cada torre um dedo pesado de proporções ridículas. A fetichização superficial do Brutalismo está em jogo aqui, assim como está a piscadela visível no poster do filme Laranja Mecânica. A atuação de Jeremy Irons não impressiona como Royal, mas o protagonista Robert Laing, interpretado por Tom Hiddleston, quem atua como um registro barométrico dos efeitos do morar em altura. Nos juntamos a ele assim que se dirige para a torre, pouco antes de conhecer e cumprimentar efusivamente a cínica vizinha Charlotte, bem interpretada por Sienna Miller. Eventos nos levam a vários estados de decadência: das estruturas familiares, grupos de amizade, valores humanos, egos pessoais, finalmente, a controle psicológico de Laing em si. O próprio olhar distante e pálido de Hiddleston é bom em transmitir as atitudes necessárias da consciência confusa e niilismo dormente.
Para amantes do livro, existem todos os julgamentos envolvidos de uma tradução cinematográfica de uma obra literária poderosa. O inquietante sinistro foi substituído por um inferno orgástico retumbante, a compressão de uma jornada humana à loucura e de volta em 119 minutos em uma tela Technicolor exigindo uma intensidade dramática. O livro de Ballard é quase rápido de ler, mas o leitor sempre pode ter seu tempo, refletir sobre as frases enquanto a imagem se refusa a congelar; a riqueza imediata do filme não permite essa alquimia misteriosa.
Tomemos a personagem Ann, a entediada e desiludida esposa de Royal, interpretada por Keeley Hawes que dá festinhas super selecionadas na fantástica cobertura do arquiteto. Estas cenas são transformadas em um grotesco baile à la Louis XV, em contraste a poderosas imagens da falta de energia e da precariedade dos pavimentos inferiores - amplificando os níveis do luxo insensível diante da degradação humana e da miséria. Deixem que comam bolo, para misturar referências históricas. Essa teatralidade exagerada - sem dúvida necessária ao trazer impressão para o celuloide ou seus equivalentes digitais é a nota mais dessoante para os puristas conservadores das páginas. No lugar da monotonia inelutável do romance, Wheatley se entrega a uma fantasia dolorosamente perfeita, em câmera lenta barroca, montagens cordiais, e tentativas escabrosas ao criar os efeitos colaterais surreais das experiências químicas ou sexuais. O diretor, que estende seus membros com o orçamento mais generoso de sua história, combina o desprendimento clínico de Ballard com uma qualidade exageradamente cinematográfica para criação de imagem. (Pessoalmente, eu também achei que a trilha sonora foi um pouco over, mas para outros, a melancolia de Portishead regravando SOS do Abba foi tão adequada quanto foi sublime.)
Na obra de Ballard aparece apenas um cineasta, eventualmente obrigado a documentar a degradação do mundo ao seu redor em uma Super 8, anunciando a digitalização compulsiva e o compartilhamento social de todos os momentos. Há uma claustrofobia definida em ser continuamente monitorado por vizinhos, como os espaços físicos de High-Rise - ainda que essa crítica não é tão desumana como é ser referido como um número na porta (como são os habitantes do edifício), número esse apenas visto quando a porta é fechada. Quando a triste Helen de Elisabeth Moss agradece a Laing por um atraso, com uma dose de satisfação sexual ainda que cafona e curta, dizendo "Você é a melhor comodidade deste edifício", sua ênfase lamentável tragicamente não foi colocada no melhor carnal, mas sim no você: o ser humano de carne e osso, o único adulto a quem Helen sente qualquer ligação real.
Ballard uma vez disse certa vez que estava interessado apenas nos próximos cinco minutos, e High-Rise é ambientado no tempo de sua publicação - um período de desilusão profunda com o governo trabalhista e com o romance do pós guerra de gastos públicos ambiciosos. Alguns anos mais tarde, Margaret Thatcher aproveitou de sua primeira vitória nas eleições gerais de 1979, o começo dos anos 80 presenciou o crescimento da cultura das corporações, a importância do individualismo, e a competição do capital privado como os principais fatores da mudança social. Não houve outra alternativa, Thatcher afimou, para o triunfo dos mercados livres neoliberais ao longo de um tecido comum mutualmente responsável. (A Dama de Ferro também brincou: "Não existe essa coisa de sociedade.") Em termos de viabilidade das fábricas inglesas, foi um tapa na cara em particular perceber que o crescimento da competitividade alemã desde a guerra, apesar do Muro de Berlim, talvez o único elemento arquitetônico da divisão social mais potente do que a torre estratificada.
A única ideia defendida pelo governo Thatcher foi o da propriedade, da importância da casa própria privada, e a abdicação do Estado em assumir a responsabilidade para as habitações de seu povo. Entre 1965 e 1970, 1,3 milhões de novas casas foram construídas sob o governo trabalhista de Harold Wilson, e habitações fornecidas pelo estado responderam por quase um terço de todos os lares britânicos em meados dos anos 1970. Sob Thatcher, milhares e milhares dessas casas estatais foram rapidamente liberadas para compradores privados, flutuando cada vez mais alto fora do alcance do livre (leia-se ridiculamente superaquecido) mercado.
Apesar de a decisão de manter o conjunto histórico em 1975, a atualidade do filme de Wheatley é tão impressionante como a clarividência de Ballard. Na época, assim como agora, um certo mal-estar precedeu uma onda de otimismo tecnológico. (A Internet não iria resolver tudo?) Uma pergunta interessante surge da presente perspectiva: tal ambiente é concebível hoje, quando a tecnologia certamente divulgaria tudo e traria alívio às vítimas do projeto fracassado de Royal? Tão entusiasmado somos pela capacidade de compartilhar experiências através da mídia que, se de fato quando, tal qual a carnificina que ocorre hoje, nós fazemos um espetáculo disso como o filme faz. Depois, há o paralelo de austeridade. No início dos anos 70, os cintos foram apertados severamente quando a inflação disparou bem acima dos 20%; em 2013, o atual primeiro-ministro britânico David Cameron repetiu Thatcher quando dava início a uma nova política econômica de poupança pública, dizendo: "Se houvesse outra maneira, eu iria escolhê-la. Mas não há alternativa." Por último, a Grã-Bretanha enfrenta uma crise de habitação, mesmo quando o seu mercado imobiliário é o parque de diversões dos super-ricos. As intensas contradições da vida urbana contemporânea nos força a enfrentar contingências, às vezes algumas desconfortáveis - não menos em questionar ao que temos acesso, o que realmente possuímos, e quão alto é o preço que estamos preparados a pagar o direito de viver como nós achamos que devemos.
Tendo crescido em um edifício em altura, em uma Kolkata pós colonial, e após isto em um bucolismo suburbano reprimido do Distrito de English Peak, posso afirmar isso: O problema não é o edifício, ou mesmo as intenções equivocadas do arquiteto que-tudo-vê. É com as pessoas e como nós nos arranjamos para morar junto. Os edifícios dão visibilidade, em um senso gráfico cru, às hierarquias e tribalismo subsequente - aqueles que sobem ao topo ou se encontram aprisionados nas bases. Construir em altura tem sido acusado de tornar aparente aquelas estratificações de cultura, classe e claro, de saúde; desde a Torre de Babel, as aspirações verticais tem sido emblemáticas do veneno da ambição social. O progresso parece ser medido nos vertiginosos skylines das cidades aspirantes e estabelecidas, mesmo quando elas simbolizam a crescente desigualdade entre os cidadãos. Mas podemos realmente apontar para a própria torre ou até mesmo para o arquiteto que imagina isso? As condições culturais e sistêmicas que privilegiam ganho pessoal sobre o uso ou necessidade, que permitem “portas pobres" e futuros precários - não seriam essas estruturas maiores, até mesmo a mais brutal das imposições concretas, que atormentam a psique de ambos os habitantes e espectadores?
O High-Rise de Wheatley é sem dúvidas estiloso: sombriamente engraçado, e muito bonito para tudo isso. Talvez falte o algo do original, mas é descaradamente um hino de um grande fã. Refletindo sobre os paralelos entre aquela época e agora, é talvez ao crédito de Wheatley que ele manteve o filme tão servilmente ambientado naquela época, mesmo quando ele poderia ter tão facilmente transposto para os dias atuais. Porque em seu tratamento exagerado e fantasmagórico, a obra possui aquele tom apenas suficientemente desfocado para nos permitir apreciar o espetáculo e evitar o horror de reconhecer a nós mesmos.
Não se cansa de High Rise? Leia outra reportagem na Metropolis por Zach Mortice, aqui.