Em Maio de 2015, o Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio lançou a Revista PRUMO: uma publicação semestral cujo principal objetivo é aprofundar a reflexão sobre questões relevantes para a arquitetura. A PRUMO pretende, a cada edição, abordar temas atuais nos cenários tanto da arquitetura, como da cidade e da paisagem através da análise crítica e do debate.
A primeira edição teve como tema o Rio de Janeiro e o amplo processo de modificação que surgiu, principalmente, a partir da escolha do Rio como sede dos Jogos Olímpicos. Dentre os artigos, entrevistas, projetos, traduções e resenhas; destaca-se o artigo "Repensando HIS", da arquiteta e professora Verônica Natividade.
A atual política nacional de oferta de habitação de interesse social está baseada num intrincado jogo de interesses entre Estado e iniciativa privada, no qual fica claro que oferecer projetos arquitetônicos e urbanísticos de qualidade passa longe de ser o foco principal. O resultado geral são projetos com soluções arquitetônicas medíocres, construções de baixa qualidade e sem identidade, geralmente implantados em áreas inóspitas e afastadas do núcleo urbano das cidades.
Foi justamente para questionar não só a qualidade arquitetônica do Projeto Minha Casa Minha Vida (MCMV), mas também os conceitos envolvidos na produção de habitação de interesse social (HIS) no Brasil, que a Finep montou uma rede de pesquisadores de nove universidades para discutir desde políticas de promoção de HIS até análises de pós-ocupação desse tipo de empreendimento. Coube à equipe liderada pelos arquitetos Luiz Carlos Toledo, Verônica Natividade e Petar Vircibradic desenvolver projetos de arquitetura alternativos à prática atual.
O projeto MCMV é a primeira tentativa em décadas de enfrentamento do déficit habitacional cada vez mais crescente no país. Além disso, foi o primeiro programa de HIS a incluir a faixa de zero a três, além de estimular a indústria da construção civil, importante segmento econômico brasileiro que tem ajudado a manter índices razoáveis num cenário de crise mundial. Mas a lista de críticas expedidas por arquitetos e urbanistas é longa e, geralmente, direcionada a aspectos conceituais do programa, no entanto, não invalidando sua existência. Em parte, isso se deve ao fato de que o MCMV na realidade não é um programa de HIS propriamente dito, mas um programa de financiamento a longo prazo para construtoras, que se encarregam dos projetos.
Em geral, não há projeto arquitetônico ou urbanístico envolvido. As construtoras se utilizam basicamente de dois modelos de planta disponibilizados na Cartilha da Caixa Econômica Federal – repassadora dos recursos: um para habitação unifamiliar e outro para pequenos edifícios com quatro unidades por pavimento. Esses modelos são reproduzidos maciçamente, resultando no que parece uma ‘plantação de casas’, com residências uma ao lado da outra, e o consequente mal aproveitamento da infraestrutura urbana. Além disso, o atual modelo do MCMV impossibilita eventuais expansões e não considera a diversidade da composição das famílias que ocuparão o imóvel, já que o programa só prevê um único tipo de habitação de sala e 2 quartos, com área média em torno de 42m². É virtualmente impossível imaginar que, num país de dimensões continentais como o Brasil, as mesmas soluções habitacionais sejam eficazes desde o interior do Piauí até a região metropolitana de uma grande cidade como o Rio de Janeiro. Tal modelo ignora a cultura local, seja sob o ponto de vista arquitetônico seja pelas atividades diversas que podem ocorrer nas habitações como, por exemplo, um negócio familiar que funcione em casa.
A má qualidade construtiva também tem sido frequente em relatos de estudiosos de pós-ocupação. Em alguns casos, os moderadores têm abandonado as casas construídas no MCMV. Em casos mais drásticos, algumas construções colapsaram antes da conclusão. Para além da questão estrutural, há até registros de revestimento cerâmico assentado com adesivo plástico.
Um cenário, muitos problemas
A favela da Rocinha foi escolhida como cenário da pesquisa por diversas razões: muitos conceitos importantes já haviam sido desenvolvidos no Plano Diretor da Rocinha (2006) pelo coordenador do núcleo, Luiz Carlos Toledo, gerando dados abundantes sobre o local; seria mais interessante e desafiador trabalhar com terrenos e situações reais do que partir de uma tábula rasa fictícia; a complexidade e diversidade da Rocinha possibilitariam cobrir grande parte das situações encontradas em pontos diferentes da cidade e até do país; acreditamos que as HIS devem ser implantadas e mimetizadas em tecidos urbanos já consolidados.
Os problemas da Rocinha são compartilhados por quase todas as comunidades: baixa oferta de espaço público e de lazer, infraestrutura precária, mobilidade reduzida, apropriação indevida do espaço público. Mas a Rocinha tem peculiaridades que a tornam particularmente desafiadora: a intensa verticalização, sem ganho de espaço público e a altíssima densidade.
Comparamos a ocupação do solo em quatro áreas na cidade do Rio de Janeiro, com morfologias urbanas bem distintas: a localidade Jardim Oceânico na Barra da Tijuca, Copacabana, Santa Teresa e Rocinha. A partir dela, constatamos a excessiva ocupação do solo na Rocinha, até mesmo quando comparada à Copacabana, bairro caracterizado por ter uma das mais elevadas taxas de ocupação do solo na Cidade do Rio de Janeiro.
A série a seguir ilustra um estudo teórico sobre a relação entre a taxa de ocupação do solo da área de estudo da Rocinha (AI-2) e o número de pavimentos das edificações nela implantadas. Na primeira figura da série está representado o número médio de pavimentos das edificações existentes nessa área (3,15 pavimentos) e o percentual da ocupação do solo pelas edificações (66,4%). Nas figuras seguintes, à medida que o número de pavimentos aumenta, esse percentual cai, chegando na última ilustração da série a apenas 4% com edificações de 50 pavimentos.
Com base nesses dois estudos, ficou claro que a verticalização pontual poderia ser um caminho para promover a liberação de espaço público no denso tecido da Rocinha e que uma única escala de edifício não seria adequada às diversas condições urbanas e até topográficas da área.
A observação do sistema viário e da disposição das quadras revelou que, depois do alargamento de algumas vias realizado no Plano Diretor, algumas vias passaram a ter até 5m de largura, ao passo que a maior parte das vielas permanecia estreita, com trechos de 80cm de largura. No último caso, edifícios de gabarito mais baixo seriam mais adequados, incorporando-se mais facilmente à escala e ao tecido existentes. Chamamos esses casos de microintervenções. Para chegarmos o mais próximo possível de um saldo positivo entre edificações que precisariam ser relocadas e unidades construídas, o gabarito das microintervenções foi determinado em 4 pavimentos, acima da média da AI-2.
Por outro lado, seria fundamental aproveitar as vias alargadas e as partes mais planas para verticalizar os tipos e ganhar unidades habitacionais para equacionar as reduções ocasionadas pelas microintervenções. Essas edificações de maior porte foram batizadas de macrointervenções, com gabarito variável de 6 a 10 pavimentos em função da ambiência urbana, para houvesse adequação entre a escala da edificação em proporção aos afastamentos das edificações vizinhas e à largura da via.
Um papel ampliado para as HIS
O conceito essencial que norteou o projeto dos tipos foi a reflexão sobre o potencial das Habitações de Interesse Social (HIS) como agentes de transformação do espaço urbano e como indutoras de um esforço de renovação da forma de projetar e construir que transfira os avanços projetuais e tecnológicos à população. Isso significa que as HIS de- veriam ter sua função ampliada de forma a proporcionar, além de moradia, a organização do espaço urbano onde fossem implantadas ou que atuassem como instrumento de reorganização espacial em assentamentos informais já consolidados, combatendo a excessiva ocupação do solo, criando novos espaços públicos, melhorando a mobilidade e as condições sanitárias da favela, com um mínimo de desapropriações.
Flexibilidade arquitetônica alcançada com a modulação
A adoção de uma arquitetura modular conferiu aos tipos estudados um alto grau de flexibilidade programática e construtiva, permitindo plantas variadas numa mesma edificação e facilitando a incorporação às HIS de componentes industrializados, sejam eles estruturais (pilares, vigas e lajes), os painéis utilizados para fechamento da fachada, paredes internas, entre outros.
Diversidade programática
Os programas arquitetônicos dos diferentes tipos variam desde um estúdio, de 22m², a apartamentos de quatro quartos, de 85m², estudados para atender aos diversos tamanhos e composições familiares. Foram projetados de modo a dar às unidades habitacionais a maior diversidade programática, admitindo diversos arranjos dos cômodos em uma mesma edificação. No caso das HIS evolutivas, as unidades contam com uma área livre na qual o morador pode expandir seu imóvel, podendo ali instalar uma atividade de geração de renda ou um novo cômodo para abrigar mais membros da família ou mesmo para alugar.
Uma montadora de HIS
A incorporação de avanços tecnológicos nas HIS exige novos processos construtivos. Para resolver as questões ligadas ao processo de construção em si, o projeto propõe o uso de componentes pré-fabricados. Além do ganho em agilidade, haveria uma aproximação entre o projetista, o construtor e o usuário, graças à flexibilização do programa arquitetônico, permitindo, inclusive, que o usuário participe da construção de sua moradia.
Nesse sentido, a equipe propôs uma alternativa à maneira de projetar e construir, utilizando-se de um vocabulário contemporâneo e da substituição dos métodos tradicionais de construir por um sistema de montagem aberto à participação dos que atuam na construção das HIS, na industrialização dos seus componentes, na produção dos materiais nelas utilizados, e à população a que se destinam. Desse modo, projeto e modo de construir caminharam juntos.
Influenciados pela obra de Lelé, idealizamos a Montadora de HIS, inspirada na “Fábrica de Escolas” por ele criada no Rio de Janeiro, durante o Governo Brizola, com uma diferença: enquanto o modelo de Lelé pode ser caracterizado como um sistema fechado, no qual o arquiteto-fabricante-construtor projeta, controla, fabrica e monta grande parte dos componentes da obra, o nosso é um sistema aberto, que busca no mercado componentes industrializados, sejam eles já existentes ou que venham a ser fabricados para atender ao modelo proposto.
O projeto contempla, ainda, a montagem de uma fábrica dos painéis de fachada dentro da própria comunidade. Assim, o morador poderia encomendar seus painéis se quisesse modificar o apartamento. Além da apropriação da concepção de sua moradia, a fábrica promoveria a transferência tecnológica e capacitação e mão-de-obra. Ao dar acesso a essas duas etapas do processo, a população passa a ser protagonista da produção das HIS, e não agente passivo diante de programas rígidos e, por vezes, distantes das reais necessidades e expectativas daqueles para quem as habitações são construídas.
Os tipos projetados
Com base nos conceitos e princípios enumerados acima e utilizando-se dos mesmos elementos arquitetônicos (painéis de fechamento, estrutura modular, escadas etc.), os três arquitetos da equipe projetaram 14 tipos de HIS muito diversos, distribuídos conforme a imagem acima.
Os 14 tipos não significam um projeto definitivo. Ao contrário, novos elementos arquitetônicos poderiam ser criados, novas famílias de plantas estudadas, mais composições modulares poderiam ser concebidas. Ou ainda, o simples rearranjo das arquiteturas projetadas poderia gerar novos projetos. Muito mais do que um projeto alternativo ao MCMV, o produto criado na pesquisa foi um novo sistema tanto de projetar como de construir, que pode ser apropriado por outros arquitetos para adaptar e criar novos projetos adequa- dos a outras realidades.
Mais informações sobre a pesquisa e os projetos em: www.labhab24ts.wix.com/redemorarts
Arquitetos: Adauto Cardoso (coordenação), Luciana Lago (coordenação), Luiz Carlos Toledo, Petar Vrcibradic e Veronica Natividade
Estagiários: Bernardo Soares, Fernanda Giannini, Fernanda Petrus, Frances Sansão, Maria Isabel Pedro e Marina Di Biasi
Colaboradores: Arquitetura - Luiz Claudio Franco, Thais Velasco e Vera Tangari
Fotografia: Julio Ferreti
Verônica Natividade é arquiteta, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).