A arquitetura, do mesmo modo que qualquer outra profissão, necessita de ferramentas específicas para acontecer. Como o poeta usa a caneta e o carpinteiro o serrote, o arquiteto também usa alguns instrumentos para traduzir suas arquiteturas imaginárias em paredes, chão e teto. A complexidade, porém, da arquitetura exige mais que caneta e serrote, muito mais que régua e prancheta; atividade coletiva e realizada e múltiplas etapas, até que se faça a arquitetura propriamente dita – aquela concreta – há passos que devem ser seguidos e, para cada um deles, as ferramentas mais adequadas.
Na arquitetura não há quem não tenha fracassado. Dito de outro modo, não há arquiteto ou arquiteta que tenha conseguido, todas as vezes, transformar as ideias em espaço concreto, construído. Aliás, essa espécie de “fracasso” é muito recorrente na profissão; o longo e intrincado processo necessário para trazer uma ideia ao mundo das concretudes faz com que a maior parte de nossos projetos permaneça apenas projeto. Assim, lidamos boa parte do tempo com representações – ou apresentações, já que não existe um referencial concreto a ser re-apresentado.
As representações ocupam, então, parte considerável do tempo e do material produzido por arquitetos. Ferramentas necessárias tanto para transformar as ideias em obras construídas como para oferecer ao público não especializado uma visão mais palpável do que virá a ser a arquitetura, as representações abrangem um espectro bastante amplo de linguagens, como por exemplo a escrita (sim, memoriais de projeto também são representações), plantas e desenhos técnicos, croquis, desenho de observação, fotografia, vídeo, realidade virtual, imagens computadorizadas fotorrealistas... a lista é longa e está continuamente em expansão.
Em plataformas virtuais como o ArchDaily os tipos mais usuais de representação de projeto são os desenhos técnicos, textos, fotografias e imagens computadorizadas, com prevalência destas duas últimas que são as maiores responsáveis por seduzir o público e apresentar os projetos – sejam construídos ou ainda apenas ideias. A fotografia, como já foi dito em outro artigo publicado no ArchDaily Brasil, representa de modo bastante fiel a arquitetura; embora possam ser manipuladas e editadas à exaustão, às vezes transformando radicalmente alguns aspectos da arquitetura, elas necessitam de uma referência concreta a qual re-apresentam, isto é, só existem após o edifício ou objeto.
Renders, ou imagens computadorizadas fotorrealistas, por outro lado, tratam de apresentar simulações de arquiteturas que ainda não foram construídas. Através de modelagem 3D, renderização e edição, é possível fazer ver aquilo que até então era exclusivo da mente de um arquiteto ou grupo de pessoas. E isso vem sendo feito com incrível “realismo” a ponto de confundir a mente do espectador que, incrédulo diante das imagens, se pergunta: mas isso é de verdade?
Não, não é. E logo a ausência de pessoas, o excesso de brilho e a insipidez dos ambientes revelam que se trata de um logro, uma imagem cuidadosamente composta para parecer uma fotografia de algo que já foi construído, mas que ainda habita o plano das ideias. O render enquanto ferramenta vem sendo usado em concursos de arquitetura e em apresentações de projeto para seduzir júri, público e investidores, e obtém sucesso nisso, já que apresenta a arquitetura como um momento estático, insípido, organizado. Nos renders a arquitetura não está sujeita ao uso coletivo e suas consequências: desgaste material, desorganização, sujeira, enfim, aspectos que humanizam a arquitetura.
Contrapondo a hegemonia do render na arquitetura profissional e acadêmica, o Atelier FALA, de Portugal, formado pelos arquitetos Filipe Magalhães, Ana Luisa Soares e Ahmed Belkhodja, que se autodenominam “um escritório ingênuo de arquitetura”, trabalha um outro tipo de representação, oferecendo imagens nem tão ingênuas de seus projetos. Sem a pretensão de parecerem fotografias, as imagens do FALA exploram aspectos lúdicos de um cotidiano imaginado nos edifícios e ambientes que projetam. Com singeleza, retratam momentos corriqueiros, despretensiosos e íntimos de personagens fictícios que, ricos em pormenores, superam a condição de meras “escalas humanas” e se tornam seres humanos em potencial dentro das arquiteturas imaginárias do FALA.
Quais são aqueles livros no canto do quarto? Seriam de poesia, ou thrillers policiais? E dentro daquele frasco de remédio, o que há? Quando foi a última vez que lavaram a louça nessa cozinha? Dúvidas como essas surgem silenciosas em nossas mentes ao passo que detemos nossa atenção nos detalhes meticulosamente plantados nas imagens.
Essas imagens usadas como ferramentas de representação espacial despertam a curiosidade não apenas em relação aos pormenores que humanizam a arquitetura, mas também, e sobretudo, em relação ao próprio espaço. Há vida nesses ambientes, mas como elas se comportam e interagem com eles?
Questões como essas não se mostram tão latentes em renders que simulam fotografias porque lhes faltam justamente esses detalhes: a xícara com café pela metade, as migalhas de torrada sobre a mesa, o gato olhando pela janela. Às imagens fotorrealistas falta o que de sobra há nas representações do FALA: realidade.
E não é exagero dizer que na arquitetura, importa menos a técnica empregada na representação que as imagens que ela cria em nossas mentes.
Publicado originalmente em 15 de setembro de 2016; atualizado em 22 de junho de 2020.