A dificuldade de se pensar sobre a arquitetura brasileira vem sendo enfrentada continuamente por arquitetos, historiadores, teóricos, críticos e pelos demais profissionais que se detém a analisar reflexivamente as amplas questões relacionadas ao tema. Nesse sentido, o olhar artístico, ao tangenciar e instigar reflexões sobre o assunto, também pode contribuir para os debates em curso sobre a historiografia da arquitetura brasileira. Para tanto, pode-se tomar como exemplo a obra “Transarquitetônica”, proposta pelo artista Henrique Oliveira, em 2014, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
O título da obra indica um percurso transversal, um corte, um rasgo sobre o tema da arquitetura, considerado de maneira ampla, mas que detém seu olhar no caso particular da arquitetura brasileira. Alguns elementos sugerem essa aproximação ao tema da brasilidade – seja o próprio título, que conforme entrevista do próprio artista [1] alude à rodovia “Transamazônica”; ou pelo fato de que o percurso linear proposto pelo artista tem em uma de suas extremidades o edifício de Oscar Niemeyer no qual se insere – ambos os fatores relacionados à modernidade brasileira e às buscas pela identidade nacional num contexto de desenvolvimento progressista conduzido pelas mãos do Estado [2].
Dialogando com esse contexto, a narrativa proposta por Henrique Oliveira se desenvolve num percurso que abrange tanto materiais industrializados – tais como blocos de concreto e telhas de pvc – quanto materiais e técnicas construtivas derivadas de processos artesanais – como, por exemplo, tijolos de barro, estruturas de madeira, paredes de pau-a-pique e taipa de pilão. A progressiva (ou regressiva) intervenção do homem sobre os materiais pode ser interpretada a partir da alusão a cenários rudimentares, como grutas ou cavernas, e a ambientes insípidos ao habitar humano, conforme indica a utilização de galhos de árvores, remetendo tanto às teorias heideggerianas do habitar [3] quanto ao tema das raízes ou origens da arquitetura [4] e extrapolando, desta maneira, o caso particular da arquitetura brasileira.
O fato de as duas extremidades da instalação serem constituídas pela arquitetura moderna de Niemeyer e pela suposta alusão às “raízes da arquitetura” podem sugerir leituras interessantes se pensarmos no modernismo brasileiro como um processo de busca pela identidade nacional, num contexto de negação da arquitetura eclética de origens europeias e de busca pela “autêntica” e “verdadeira” arquitetura brasileira [5]. Nesse sentido, pode-se lembrar que os elementos ornamentais associados ao ecletismo brasileiro foram apagados por décadas tanto da narrativa histórica da arquitetura brasileira, quanto das políticas de preservação dos órgãos de preservação patrimonial – considerando que apenas a partir da década de 1990 as políticas de tombamento voltaram seu olhar ao chamado ‘ecletismo’ brasileiro.
Ainda assim, os processos de aceitação desta (e de tantas outras) manifestações culturais e arquitetônicas são questões em processo de desenvolvimento; sendo que o modernismo arquitetônico e a construção do “olhar moderno” para o passado ainda permeiam fortemente o imaginário coletivo brasileiro, conforme enfatiza a instalação de Henrique Oliveira. A construção de sua narrativa que transpassa a arquitetura (com ênfase na arquitetura brasileira) e a sua abordagem tectônica dos materiais apenas faz coro ao olhar sobre o passado brasileiro consolidado pelo Movimento Moderno – apresentando a “narrativa oficial” desenvolvida por órgãos institucionais como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (criado em 1937), que privilegia a produção cultural de determinados momentos da história brasileira em detrimento de outros [6].
A pretensa linearidade histórica proposta pela obra de Henrique Oliveira se contrapõe, contudo, aos percursos orgânicos sugeridos ao visitante, desviando-se da estrutura rígida e modulada da arquitetura do edifício e possibilitando a apreensão da obra a partir de uma abordagem multissensorial – que inclui sentir, tocar, ouvir e sair (ou entrar) agachado ou ajoelhado da obra. A oposição sugerida pelas extremidades do percurso entre a amplitude e a suposta abstração do espaço moderno, em contraponto à redução da escala que o espaço assume na outra extremidade, remete aos debates teóricos que versam sobre a polarização entre “abstração” e “figuração”, e que indicam a dificuldade de se lidar com esse binômio considerando a passagem do moderno para o pós-moderno e suas inúmeras tentativas de recuperar não só a escala do homem, mas também as relações entre a arquitetura e a natureza, e que de fato perpassam os debates contemporâneos sobre os rumos da arquitetura na contemporaneidade, aproximando-se às pautas da ecologia e da sustentabilidade – questão, essa, que também extrapola o contexto brasileiro e se coloca de maneira ampla na sociedade contemporânea. Embora os “conceitos verdes” não tenham sido centrais no raciocínio desenvolvido pelo artista, conforme ele declara explicitamente em sua entrevista [7], certamente constituem questões que podem ser elaboradas a partir do olhar para sua obra – assim como as considerações sobre história e crítica da arquitetura brasileira apresentadas neste texto. Desta maneira, vê-se que as questões pontuadas são apenas algumas que podem ser interpretadas a partir de uma obra que, na escolha dos títulos, dos materiais, em sua compreensão e apreensão, sugere inúmeras leituras que podem nos auxiliar a pensar nas próprias bases que sustentam os estudos e reflexões sobre o campo disciplinar da arquitetura, e que sem dúvidas podem vir a constituir elementos importantes para se pensar a arquitetura do passado, do presente e do futuro.
NOTAS
[1] Para mais informações, ver OLIVEIRA, 2014, disponível em <www.youtube.com>. Acesso em 26.09.16.
[2] Para mais informações, ver CHUVA, 2009.
[3] Para mais informações, ver NESBITT, 2006.
[4] Para mais informações, ver NESBITT, 2006.
[5]Para mais informações, ver CHUVA, 2009.
[6] De acordo com Márcia Chuva, o processo moderno de consolidação da identidade nacional brasileira privilegiou, por meio da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937, sobretudo a “arquitetura colonial” e a “arquitetura moderna” brasileiras – em detrimento de tantas outras possíveis narrativas. Para mais informações, ver CHUVA, 2009.
[7] Para mais informações, ver OLIVEIRA, 2014, disponível em <www.youtube.com>. Acesso em 26.09.16.
REFERÊNCIAS
CHUVA, Marcia Regina R. Os arquitetos da memória. Sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
NESBITT, Kate(org). Uma nova agenda para a arquitetura. Antologia teórica 1965-1995. São Paulo: Cosac Naiff, 2006.
OLIVEIRA, Henrique. Espaço Mix entrevista o artista Henrique Oliveira. Publicado em 29.06.14. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fXrBi2M8Dbc. Acesso em 26.09.16.
Site do Artista www.henriqueoliveira.com. Acesso em 26.09.16.
Bianca Lupo é arquiteta e urbanista formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), mestranda em História e Teorias da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU-USP.
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