A segregação espacial é um dos grandes problemas urbanos no mundo. Ela se caracteriza pela separação de classes sociais em diferentes regiões das cidades. Esse processo, ao longo do tempo, acaba contribuindo para o aprofundamento dessas diferenças. Nos Estados Unidos após a crise de 1929, o governo federal criou uma metodologia para orientar empréstimos financeiros, visando possibilitar a quitação de imóveis para as populações endividadas. A metodologia se dedicou a classificar as regiões da cidade de acordo com seus aspectos sociais, e acabou por enfatizar e aprofundar uma urbe fragmentada, encorajando o preconceito e a intolerância. A segregação como política pública, acabou por limitar as oportunidades de muitas populações por gerações, resultando em uma distribuição social que ainda hoje, quase 100 anos depois, é evidente na maioria das cidades norte americanas.
Nos anos 30, em meio à Grande Depressão que assolava os EUA, um programa do governo federal chamado Home Owners’ Loan Corporation (HOLC) foi estabelecido. Ele era parte do grande engenho anti-cíclico do Presidente Roosevelt, o New Deal. A tarefa era relativamente complexa: o HOLC deveria mapear os riscos provenientes de empréstimos nos bairros de diferentes cidades do país, para que os bancos pudessem determinar para onde iria o dinheiro que refinanciaria os empréstimos para compra de casas para população que estava completamente quebrada depois da crise.
Para isso ser feito, o HOLC fazia parcerias com corretores e agências imobiliárias locais, que tinham maior permeabilidade nas cidades, e poderiam ajudar nesse processo de mapeamento. Estes, na maioria dos casos, julgavam os bairros baseados nos seus perfis raciais e nas condições econômicas das populações. O mapeamento, ao invés de ser um mapeamento de risco, acabou se tornando um mapeamento da pobreza. Os bairros mais pobres, com mais minorias étnicas e populações estrangeiras eram avaliados com as piores notas, e pintados de vermelho. Daí a origem do vermelho ser relacionado a notas baixas.
As metodologias de segregação urbana
As fichas de descrição de cada bairro apresentavam, além de dados populacionais, detalhes sobre o zoneamento e sobre os imóveis de cada região, e sobre o status financeiro de cada propriedade (alugadas, a venda, se possuem dívidas, etc). A classificação dos mapas era feita em sua maioria devido aos aspectos sociais (renda média, distribuição étnica, população estrangeira) da seguinte forma: A) Ótimo (verde); B) Desejável (azul); C) Em decadência (amarelo); D) Perigoso (vermelho).
Acontece que os bairros mais pobres e com mais minorias étnicas não necessariamente estavam ligados a maiores taxas de inadimplência. O que aconteceu, foi que as pessoas que se endividaram durante a Grande Depressão, se morassem em regiões vermelhas, dificilmente conseguiriam apoio para se restabelecer financeiramente. As baixas notas dificultaram muito a vida dessas populações mais pobres, marginalizando-as ainda mais, e dificultando muito o seu acesso à casa própria. O mapeamento aprofundou a desigualdade.
Os típicos empréstimos eram amortizados em 15 anos. O que era extremamente atrativo, já que os empréstimos de bancos privados eram de 3-6 anos. As taxas de juros também eram atrativas. Enquanto o mercado oferecia juros de cerca de 8%, o HOLC oferecia juros de 4,5% ao ano. Entre 1933 e 1935, o HOLC fez mais de um milhão de empréstimos. Em geral, os empréstimos eram feitos para pessoas que estavam devendo por mais de dois anos. Cerca de 20% dos empréstimos nunca foram pagos.
Os legados da desigualdade
Basta acessarmos os documentos para entendermos do que se trata. Em algumas regiões, os bairros são descritos como: “próximo a área de negros”, ou então “infiltração de elementos raciais subversivos”. Essa mentalidade fragmentadora, fundamentada na segregação sócio-espacial e na segregação econômica, gera preconceito e intolerância, está até hoje enraizada no planejamento urbano das cidades americanas. As cidades são divididas em pequenos clusters, divididos por muros invisíveis. Essa fragmentação sócio econômica se desdobra em diversos aspectos, e se reflete espacialmente através: da priorização no financiamento das escolas públicas, de escolhas na melhoria da infraestrutura, das políticas de segurança pública, da qualidade alimentar e poluição, da geração de empregos. Tudo. Sociedade desigual, cidade excludente.
Esse legado de discriminação ainda é sentido hoje em dia. Alguns bairros como South Central LA, hoje em dia possuem taxa de criminalidade é extremamente alta e as populações parecem estar abandonadas pelo estado. a Little Armenia, também em Los Angeles, era considerado em decadência nos anos 30, mas melhorou com políticas públicas de incentivo à infraestrutura, ao turismo, e a programação cultural. Em New York, Fort Greene é majoritariamente habitado por uma classe trabalhadora negra, no Brooklyn. Mas como tudo que está a um raio de 8 quilômetros de Manhattan, a área se transformou, e grande parte das populações marginalizadas pela discriminação histórica, já estão longe. Perto do JFK, no norte do Bronx, ou quilômetros para dentro de New Jersey.
O mais angustiante é observar que apesar do fato de que alguns bairros evoluíram, no que diz respeito à forma como eles são vistos por investidores imobiliários (principalmente devido à escassez de terras urbanas), as populações que lá estavam, continuam sendo alvo de preconceito, e segregação. Nas grandes cidades dos EUA, existem bairros inteiros dedicados a populações chinesa, coreana, japonesa, italiana, armênia, russa, polonesa, mexicana, peruana, colombiana. A segregação é ainda mais evidente quando se trata da população negra.
Desigualdade racial e espacial estão diretamente associadas com acesso aos principais serviços associados a uma alta qualidade de vida (saúde, educação, emprego, etc). A segregação racial e a concentração da pobreza, tendem a concentrar de um lado os problemas urbanos, e de outro, os privilégios. Esses efeitos perduram por gerações. Pesquisas já mostram relações entre pobreza e gravidez na adolescência, mortalidade infantil, qualidade escolar, expectativa de vida. Acesso à água limpa, exposição a tintas à base de chumbo, altas taxas de stress e obesidade, isolamento social. Tudo afetado pelo local onde as pessoas nascem, vivem e trabalham.
Alguns insistem em argumentar que os indivíduos escolhem seus caminhos livremente, baseados em suas capacidades financeiras. Mas muitos pesquisadores já demonstraram o papel de políticas públicas e práticas institucionalizadas (como políticas fiscais, de transporte e de zoneamento) que servem como barreiras para a escolha do indivíduo em relação a onde morar. Elas contribuem com a desigualdade espacial.
Talvez se o “mapeamento de riscos” tivesse realmente considerado inadimplência ou se tivesse ao menos considerado o apoio à populações marginalizadas, para que elas pudessem ter acesso às necessidades humanas básicas, as metrópoles norte-americanas hoje estivessem vivendo um patamar mais digno de harmonia social, ao invés da consolidação da segregação e da formação das bolhas suburbanas que duraram 50 anos, e da bolha da gentrificação do século XXI. Vai saber…
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*1 Robert K. Nelson, LaDale Winling, Richard Marciano, Nathan Connolly, et al., “Mapping Inequality,” American Panorama, ed. Robert K. Nelson and Edward L. Ayers, accessed February 9, 2017.