* O texto é um fragmento do trabalho de conclusão de curso “Espaços-Varanda: Ensaio de Relações em uma Superquadra de Brasília[1]”, realizado no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (DAU PUC-Rio) em 2016, sob a orientação do Professor Gabriel Duarte.
A varanda, por ser apropriada a temperaturas elevadas, típicas do clima tropical, é um elemento de muita importância e de presença constante na arquitetura brasileira. Este espaço projetado ou embutido na fachada, coberto e aberto para o ambiente externo, gera sombra e permite a entrada de ar fresco no interior da edificação. Desde as construções indígenas, se fazia “o uso de uma varanda totalmente aberta para permitir a ampla ventilação durante o descanso do calor do meio-dia [2]”.
Ao longo da evolução da varanda na moradia brasileira, esta modifica-se fisicamente e é adaptada aos diferentes terrenos, às diversas formas do edifício e às novas demandas da sociedade. Em alguns momentos, o espaço contém uma função de varanda, mas não possui uma característica essencial do seu significado. O termo “Espaços-Varanda”, utilizado no trabalho, abrange todos esses ambientes que derivam da varanda, sem, necessariamente, encaixarem-se na sua definição.
Após uma análise da evolução dos “Espaços-Varanda” em moradias brasileiras, guiada por um estudo histórico de diferentes movimentos arquitetônicos ocorridos no Brasil, entende-se o motivo das mudanças. Mudanças estas tanto no elemento arquitetônico propriamente dito, quanto no comportamento dos moradores que vivenciam os espaços.
No que se refere às mudanças ocorridas nos “Espaços-Varanda” pode-se observar que não há uma sequência lógica quando se trata da sua forma, de suas funções ou das relações proporcionadas. A única sequência possível de ser traçada é a que diz respeito à evolução de técnicas construtivas. Um exemplo que demostra a ausência de um desenvolvimento sequencial das relações existentes nos “Espaços-Varanda” é quando esta atua como um espaço intermediário entre moradia e paisagem.
Inicialmente, existe uma proximidade óbvia entre habitações indígenas e natureza. Em construções sobre palafitas, a relação é direta. Em seguida, em centros urbanos coloniais, a presença de habitações geminadas e ruelas estreitas limita a visada do morador. A paisagem deixa de ser natural para se tornar urbana. O vínculo entre moradia e paisagem só reaparece em algumas construções neoclássicas. Isto ocorre devido à introdução do jardim lateral e à transformação da varanda. Neste momento, a varanda se volta para a lateral do lote, com função de contemplar a natureza. Contudo, a relação da moradia neoclássica com o seu jardim é igualmente restrita. Somente no modernismo que o contato da residência com a paisagem voltará a ser usado.
Três dos cinco pontos fundamentais da arquitetura moderna corbusiana possuem relação direta com o tema da articulação edifício-paisagem. Estes são: o terraço-jardim, o pilotis e a janela em fita. O uso da janela em fita, por exemplo, aproxima o espaço interno e o externo. No momento em que a janela está aberta, o morador que se encontra em frente a ela tem a sensação de estar em uma varanda, debruçado para fora.
Hoje, a relação se mantém e, em alguns casos, se intensifica, tornando o limite entre interior e exterior incerto. Porém, muitas varandas presentes em edifícios brasileiros, do final do Século XX em diante, não proporcionam essa relação. Em geral, estas são projetadas com a função de valorizar o imóvel financeiramente e não com a finalidade de proporcionar um ambiente de transição que aproxima as duas esferas, conectando moradia e paisagem.
Outro exemplo importante, que demostra a ausência de um desenvolvimento sequencial das relações existentes nos “Espaços-Varanda”, ocorre no momento em que se estuda a influência dos espaços sobre o comportamento humano e vice-versa. Fazendo uma ligação com fatos históricos, é possível observar que ao longo da evolução da moradia brasileira, há uma gradação na relação do interior com o exterior. Em certos momentos existe uma aproximação maior dos moradores com o espaço externo e em outros, um afastamento.
A arquitetura indígena apresenta uma grande variedade entre forma, estrutura e compartimentação. Observa-se que cada tribo tem uma particularidade em relação ao modo de construir e ocupar sua moradia, que pode ser compartilhada por toda a tribo, não apresentando divisões internas; ou pode ser dividida por diferentes famílias, por meio de separações em nichos. Em todos os casos, uma área central da aldeia é destinada à comunidade. Neste local acontecem encontros e rituais. Pela importância dada aos eventos, a vida em comunidade é muito valorizada. Porém, as relações se mantém internas, dificilmente havendo uma integração entre diferentes tribos.
Após a descoberta das Américas, por um lado, costumes indígenas e hábitos portugueses influenciam uns aos outros. Por outro, a dominação dos portugueses sobre os índios e/ou escravos, define, tanto em moradias urbanas, quanto em rurais, uma divisão de ambientes. Em chácaras, casas de engenho e sobrados, contendo dois pavimentos, o primeiro piso é destinado aos escravos e animais e o pavimento superior é consagrado à família. Gera-se um filtro do mais acessível ao mais reservado.
Por influência de hábitos portugueses, mulheres são resguardadas no interior da moradia, raramente sendo reveladas. Desta forma, observam-se pátios internos em construções rurais e fechamentos de janelas por muxarabis em habitações urbanas, ambos com a função de recolher e esconder a figura feminina. Em paralelo, algumas moradias possuem ambientes voltados para fora que funcionam de forma oposta aos anteriores. A varanda frontal na chácara ou na casa de engenho e a loja do primeiro piso do sobrado são direcionados ao espaço externo, permitindo uma relação entre as duas esferas. Em alguns momentos o ambiente tem função de controle sobre o exterior e, em muitos casos, o local serve de acesso e, consequentemente, de filtro para o visitante ou desconhecido. Desta forma, observa-se uma dualidade na moradia colonial, ora como espaço íntimo, ora como espaço de exposição.
Com a transferência da Família Real para o Brasil e a chegada da Missão Artística Francesa em 1816, ocorre uma “espécie de revolução francesa: a do sistema e dos métodos de construção, a dos estilos e gostos de habitação e dos próprios hábitos brasileiros de vida doméstica[3]”. Neste momento a vida particular das famílias começa a ser exposta. Inicialmente, retiram-se as influências mouras, os muxarabis, por uma questão de higiene, mas principalmente estética. Sem os fechamentos, varandas, sacadas ou balcões não são somente postos de vigília, mas também postos de exposição, onde a mulher é vista e não mais escondida do exterior.
Em seguida, reformulam-se as regras de ocupação dos lotes urbanos, primeiramente exigindo um único afastamento lateral e depois, um afastamento completo das divisas. Na faixa obtida pelo afastamento lateral, quando suficientemente larga, insere-se um jardim. Voltado a ele cria-se uma nova tipologia de varanda, baseada na estrutura da varanda alpendrada, anteriormente presente em construções rurais e em alguns quintais de moradias urbanas. Frente a essa nova configuração da varanda, o brasileiro presencia novos hábitos: nos momentos de descanso e de contemplação ao jardim, o morador está totalmente exposto, embora que devidamente protegido pelos limites de sua propriedade. Por mais que as moradias tenham sofrido modificações, expondo seus moradores à rua, os ambientes íntimos da casa permanecem protegidos em área central do lote, muitas vezes sem abertura para o exterior.
No movimento modernista, a separação entre ambiente íntimo e espaço social persiste, porém, o primeiro é menos reservado do que era anteriormente. O quarto, local de maior intimidade da casa, apresenta aberturas para o exterior, logo, um contato com o lado de fora. Para manter a privacidade do ambiente em relação aos demais, o quarto costuma ter fechamentos diferenciados em relação aos dos locais de convivência. Neste momento, elementos como cobogós, brises, jardineiras, varandas e outros são desenvolvidos e altamente utilizados na composição das fachadas, permitindo uma hierarquia de permeabilidade. Observa-se que muitos prédios modernistas apresentam fachadas diferenciadas, onde a da frente contém janelas em fita ou varandas embutidas e as de fundo cobogós ou brises.
A janela em fita, assim como a varanda, aproxima o morador do espaço externo. Quando as folhas de vidro da janela estão abertas, o espaço interno se comporta como varanda, proporcionado uma visão desimpedida. Durante o dia, a natureza e o movimento urbano são apresentados ao apartamento. Durante a noite, o processo é invertido, onde a convivência intima da moradia é exposta para a rua. As paredes de cobogó também revelam o interior do apartamento à rua no decorrer da noite. Elas expõem luz e movimentos de sombra, ocasionados por seus usuários, para o ambiente externo, tornando a fachada em uma espécie de luminária urbana.
O pilotis, utilizado em grande parte das construções do movimento, é um ambiente de convivência pública, inserido na arquitetura. Ele propõe uma continuidade da superfície da cidade sob o edifício, assim como a ininterrupção do percurso ali presente. É um “Espaço-Varanda” que reflete os novos hábitos do brasileiro. Hábito este de andar livremente no espaço urbano e de conviver em espaços públicos, como praças e parques. Na percepção do usuário, os espaços urbanos recebem um aspecto mais privado por serem conhecidos. Eles deixam de ser espaços para se tornam lugares onde “a identidade, as relações e a história daqueles que o habitam [ou frequentam] estão inseridas[4]”.
Conclui-se que os “Espaços-Varanda” se modificam ao longo da história da evolução da moradia brasileira, se adaptando às demandas e aos avanços tecnológicos; proporcionando uma gradação na relação do interior com o exterior e, consequentemente, na relação do interior com a paisagem externa. De modo geral, a arquitetura brasileira é caracterizada por seus espaços abertos. Espaços abertos por condizerem ao clima tropical, mas também por serem aceitos pelo povo brasileiro. Essa aceitação ocorre por conta da busca por espaços ventilados e conectados à paisagem externa e pela vontade de se relacionar e conviver em espaços públicos, assim como de se apropriar deles. Por estes motivos, a varanda é facilmente integrada à arquitetura brasileira e suas variações, ou seja, os “Espaços-Varanda”, amplamente utilizados.
Notas
[1] O projeto, intitulado “Espaços-Varanda: Ensaio de Relações em uma Superquadra de Brasília”, é um estudo teórico-projetual sobre os espaços intermediários entre arquitetura e cidade. O exercício parte da elaboração do conceito de “Espaços-Varanda”, que são ambientes resultantes da evolução histórica das varandas no Brasil. Em seguida, faz-se um enfoque na arquitetura modernista brasileira, momento histórico em que foram aplicados os cinco pontos fundamentais do Modernismo junto a uma releitura de elementos tradicionais brasileiros, criando uma linguagem arquitetônica singular. Brasília é escolhida para ser o local de aprofundamento do tema, pois é uma cidade puramente modernista e estritamente brasileira. De fato, ela é criada em um momento nacionalista, moldada a partir dessa linguagem. Por fim, o trabalho tem como intensão fazer um ensaio de relações geradas por “Espaços-Varanda” em uma Superquadra ainda desocupada de Brasília.
[2] BARRETO, Guilherme; BENATTI, Karoline; FERREIRA, Rovy; e BOLSON, Vivian. Arquitetura Indígena. Disponível em: http://www.ceap.br/material/MAT21042014225238.pdf. p.46. Acesso em: FEV/2017.
[3] FREYRE, Gilberto. Casas de residência no Brasil – Introdução e notas. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Vol.7 Rio de Janeiro: MES, 1943, p.99 – 127.
[4] AUGÉ, Marc. O sentido dos outros: atualidade da antropologia. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 134.
Marjorie Lange (1992) é uma arquiteta franco-brasileira, recém-formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).