Este ensaio se apresenta na ocasião da Oficina de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social que será realizada pela assessoria técnica Peabiru TCA em Florianópolis nos dias 17, 18 e 19 de março, financiada coletivamente e que surgiu de uma iniciativa do IAB-SC com um grupo de profissionais comprometidos com a função social da arquitetura.
A assistência técnica em habitação de interesse social no Brasil tem uma longa história. Cooperativas gaúchas, movimentos populares pela moradia em São Paulo e mutirões de Goiás, entre outras experiências, há várias décadas arquitetos vêm assessorando a população de baixa renda na produção das suas moradias e, em termos gerais, na produção de cidade. Com o restabelecimento da democracia em 1988, a assistência técnica começou a ter apoio institucional, permitindo trabalhar projetos de grande escala e avançar na consolidação de um modelo de produção não submetido aos interesses dos capitais imobiliário e financeiro. Em 2001, o Estatuto da Cidade reconheceu a assistência técnica como um dos instrumentos para atingir o seu principal objetivo, a saber, ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Em 2008 finalmente foi aprovada a Lei 11.888 de Assistência Técnica Pública e Gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social. O problema que visa resolver é simples: se uma família ganha menos de três salários mínimos, como vai poder contratar um arquiteto para projetar e construir uma moradia segura que cumpra as exigências legais urbanas e habitacionais?
Estes desenvolvimentos vem caminhando junto a um processo de reflexão coletiva sobre a sociedade contemporânea. A reflexão tem como base o direito à cidade, termo utilizado pela primeira vez pelo filósofo francês Henri Lefebvre em 1968 e que vem crescentemente sendo utilizados como bandeira articuladora dos movimentos sociais urbanos do Brasil e do mundo ocidental em geral. Mas, como podemos entender especificamente a assistência técnica desde a perspectiva do direito à cidade? Como os arquitetos e engenheiros podem assessorar a população de baixa renda para que eles possam exercer seu direito à cidade? A resposta a estas perguntas é complexa, primeiro, pela diversidade de significações que este termo adotou em função do contexto e dos objetivos dos usuários; segundo, pela sua profundidade filosófica, tanto no pensamento do seu criador como nos debates e produções literárias atuais sobre este conceito.
Numa aproximação fiel à radicalidade, abrangência e complexidade deste conceito, devemos entender que o direito à cidade transcende a materialidade da cidade e da moradia. Não é um direito, no sentido jurídico, a uma casa ou espaço urbano melhor, não é só uma questão de redistribuição da riqueza nem de cumprir procedimentos. O simples fato de ter assistência técnica não assegura o acesso ao direito à cidade. O primeiro que devemos ter em conta é que, em essência, o direito à cidade é antagônico ao neoliberalismo. Juntos, o direito à cidade e o neoliberalismo compõem o movimento da história contemporânea. Este movimento, a nossa história, se alimenta das contradições, conflitos, lutas e disputas na cidade e pela cidade. Quando se luta pelo direito à cidade, se luta pela superação do neoliberalismo. Quando seja superado o neoliberalismo, o direito à cidade ficará também no passado e surgirão novos desafios.
Outro aspecto fundamental do direito à cidade é que também nos ajuda a entender a dialética entre a sociedade e o espaço, de como o espaço não é universal, não é uma condição a priori, não é simplesmente o lugar onde acontecem as coisas. O espaço é um produto social que intervém simultaneamente na produção da práxis social. Em outras palavras, de um lado, a sociedade concebe e constrói o espaço, do outro lado, o espaço influi nas relações sociais.
Resumindo, o direito à cidade é uma noção que nos convida a refletir criticamente sobre a lógica neoliberal dominante por trás da segregação urbana e das desigualdades sociais. O direito à cidade também nos ensina que, no processo de produção do espaço (das moradias, da cidade) mudamos a nós mesmos.
Então, onde entra assistência técnica nestes conceitos? Vemos dois pontos entrelaçados, um político, outro sócio-espacial. Primeiro, ao lidar com clientes de renda baixa em projetos urbanísticos, os arquitetos ou engenheiros devem posicionar-se politicamente a favor ou contra a desigualdade social, a segregação, a valorização fundiária e a mercantilização das relações sociais. Segundo, em projetos arquitetônicos devemos posicionarmos no degrau na escada de participação do processo: vamos escutar o cliente e apoiar suas aspirações criativas, ou vamos elaborar um projeto autoral para que o cliente ratifique-o no final? Estes posicionamentos condicionam a possibilidade da assistência técnica contribuir ao direito à cidade. Este é o principal desafio que os arquitetos e engenheiros devem afrontar ao trabalhar com população de baixa renda.
Jordi Sanchez-Cuenca é Arquiteto Urbanista espanhol, formado na Universitat Politécnica de Catalunha em Barcelona com mestrado na Bartlett Development Planning Unit, em Londres. Têm experiência no setor público, em ONGs internacionais, na ONU e no Governo Nacional do Equador. Atualmente é doutorando na Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisando sobre o Programa Minha Casa Minha Vida e o direito à cidade.