Vá a qualquer cidade medieval européia e veja como as ruas eram antes do advento do carro: lindas, pequenas, estreitas, íntimas, em escala indiscutivelmente humana. Temos poucas cidades nos Estados Unidos onde é possível encontrar ruas como estas. Em sua grande maioria, o que se vê nas ruas são aquelas projetadas para os carros - de grande escala para alta velocidade. Em minha São Francisco natal, estamos tornando as ruas mais seguras para caminhar e pedalar aumentando as larguras das calçadas, transformando faixas de carros em ciclovias, diminuindo a velocidade dos carros. Estamos trabalhando com as ruas que temos; uma rua típica em São Francisco possui entre 18 a 24 m de largura, comparada a uma rua medieval de antes do carro que possui entre 3 e 6 metros de largura.
Como urbanista, trabalho em muitos projetos onde pegamos grandes áreas e as subdividimos em quadras ao introduzir as ruas. Essas novas ruas são uma oportunidade rara de lançar um novo olhar aos tipos de ruas voltadas para carros que estamos habituados, e, ao invés disso, tentar projetar ruas que priorizem a segurança e conforto dos pedestres. Estes projetos nos dão a chance de projetar ruas que são apenas para pessoas. Imagine se nós fizéssemos estas novas ruas como as medievais, estreitas, íntimas e na escala humana. Mas mesmo se tentarmos projetar ruas que podem nunca ver um carro, achamos que as ruas se tornaram muito mais do que apenas lugares para caminhar e dirigir. Existe, portanto, uma série de coisas com as quais os projetistas devem se preocupar, além da habitual dicotomia pedestre-carro.
Primeiramente, a rua é onde estão localizadas as infraestruturas
Pergunte a qualquer engenheiro civil e ele responderá que uma rua é desenhada para ser uma via repleta de uma variedade de dutos, canos, conectores, protetores contra refluxo d'água e outras façanhas da ciência moderna que trazem água, energia e comunicação. Ruas proporcionam um sistema linear para organizar essa rede de serviços tanto horizontalmente (existem distâncias necessárias entre diferentes tipos de serviços) quanto verticalmente (água - em todas suas formas - precisa descer ao ponto mais baixo, mesmo em ruas aparentemente planas). Além disto, existem convenções bem testadas de como projetar estes sistemas para que operem diariamente sem que percebamos. Nossa rua reimaginada sem carros, em qualquer forma que assuma, precisa gerir a maneira como estamos conectados com este sistema vascular subterrâneo.
Com novas tecnologias, estamos descobrindo maneiras eficientes de gerir alguns destes serviços com menos dependência na rede. Por exemplo, existe agora uma série de edifícios que tratam e reutilizam seu próprio esgoto. Esta ‘água negra’ é tratada e os líquidos são utilizados para descarga e irrigação, enquanto que os sólidos são utilizados como biodigestores para energia que auxiliam no abastecimento de energia dos edifícios. Podemos ir mais longe e conectar algumas casas nestes edifícios de alta performance criando ecodistritos, e descobrir qual a quantidade de serviços que necessitamos para acomodar nas ruas pode eventualmente diminuir.
Segundo, a rua é um sistema de drenagem
Junte seu engenheiro civil com um arquiteto paisagista e você vai começar a entender as demandas das ruas com a gestão de águas da chuva. Na verdade, vai ouvir da perspectiva deles que o principal propósito do meio-fio não é separar os pedestres dos carros com segurança, mas sim de controlar as águas. As alturas do meio-fio são ajustadas em relação à inclinação de uma rua e do tamanho da boca-de-lobo recolhedora de águas para evitar que as calçadas e edifícios sejam inundados.
No entanto, de alguma forma este é um desafio auto-imposto. Ruas e calçadas impermeáveis na verdade impedem que a água penetre o solo e faz com que ela vá mais rápido e em volumes maiores pela superfície. Sabemos que pavimentos impermeáveis ajudam bastante a aliviar enchentes, e reduzir as áreas pavimentadas e aumentar as áreas plantadas é ainda mais eficiente. Muitas cidades estão refazendo suas ruas, tornando-as superfícies mais permeáveis que auxiliam a amenizar o problema. Ao projetar nossas ruas para serem capazes de lidar com a água de maneira mais holística, com infiltração e drenagem natural, podemos começar a retirar as camadas impermeáveis e ver sinal da flora que começa a brotar novamente.
O que nos leva ao próximo ponto: a rua é um ecossistema
Em uma cidade com uma rede urbana, ruas assumem 30% da área total da cidade, o que representa uma quantidade significante de espaço no domínio público. Então não deveria ser uma surpresa que as ruas acabem sendo onde encontramos a maioria da biomassa encontrada nas cidades, na forma de árvores e canteiros nas calçadas. Lindas ruas antigas possuem quase todas algo em comum: grandes árvores. Antigas e saudáveis, as árvores maduras podem tornar uma rua surpreendentemente adorável, mesmo se as ruas e calçadas não tenham nada de especial. Exemplo: a avenida Saint Charles, em Nova Orleans, tem alguns dos mais impressionantes buracos e calçadas intransitáveis da cidade, mas o túnel verde das figueiras e carvalhos centenários são gravados nas memórias dos visitantes como sendo uma das ruas mais bonitas da cidade.
Mas árvores também podem agir além da estética, e atuar como habitat da vida selvagem na cidade. Dois exemplos disto são o Polinator Pathway em Seattle e as colônias de borboletas ao longo da Market Street em São Francisco. Paisagistas tipicamente selecionam árvores por sua durabilidade, altura e tamanho de copa, mas cada vez mais estão escolhendo também por sua contribuição com um ecossistema maior. Uma vez que as árvores seguem uma rede conectadas de ruas, podem criar por natureza uma rede rica e conectada para a fauna que dependem delas também, conectando os parques em toda a cidade.
As boas novas são que as espécies utilizadas na arborização urbana são em sua maioria selecionadas, plantadas e recebem manutenção de apenas uma agência da prefeitura, o que significa que ao acrescentar uma performance ecológica ao critério de seleção ecológica pode ser uma maneira bastante efetiva para implementar corredores de vida selvagem em uma grande escala, e converter as ruas em corredores ecológicos que beneficiam todas as escalas, inclusive a humana.
Finalmente, claro, a rua é o direito público de ir e vir
Em outras palavras, uma rua é uma propriedade pública, o que significa que o público tem o direito de ocupar. Em um país democrático, as ruas são locais onde as pessoas se reúnem para serem vistas enquanto grupo, para resistir e para serem contadas. Estamos vendo a importância deste fato em cidades em todo o país (na verdade, no mundo) onde as pessoas estão mais uma vez tomando as ruas para encontrar sua voz; O prefeito de Nova York Bill De Blasio recentemente disse que o protesto é uma das funções mais importantes das ruas de Nova York. Embora certas vezes isso entre em conflito com outras funções, como a boa circulação do trânsito, permanece enquanto propósito crítico e fundamental das ruas da cidade.
Em todos os lugares as ruas são o local onde a vida pública é vivida diariamente. De Argel à Zurique, as ruas estão tomadas de pessoas fazendo coisas do cotidiano, como conversar com seus vizinhos, estender roupa, regar as plantas, comprar comida, e socializar suas crianças. Se temos que repensar a ideia de rua, precisaríamos encontrar uma maneira de garantir que esta vitalidade da vida pública possui espaço, em todas as suas formas, e que seja tudo público.
Quando se está desenhando uma rua em planta, se começa com uma linha central e delimita o espaçamento em ambos os lados. É quase literalmente uma linha que conecta dois lugares com uma certa largura. Essa distância é quase sempre determinada por um engenheiro que está tentando cumprir com um algoritmo para quantas pistas são necessárias para os carros que circularão por esta rua, e quantas instalações e serviços irão caber confortavelmente ali. Ao invés disso, deveríamos pensar nas ruas e seus usos variados - como locais de encontro, para viver mais saudavelmente, em maior harmonia com a natureza, com o próximo e construir a partir daqui.
Kristen Hall é a diretora responsável por projetos urbanos na Perkins+Will em San Francisco, especializada em complexos projetos de preenchimento urbano.
Publicado originalmente em 4 de março de 2017, atualizado em 1 de novembro de 2019.