Como a arquitetura fala com o cinema

Jean-Luc Godard, através de seus filmes, fala de arquitetura quase com a mesma facilidade com que fala sobre o próprio cinema. Em homenagem ao ícone da nouvelle vague, que faleceu hoje aos 91 anos de idade, revisitamos Como a arquitetura fala com o cinema.

Há muitas formas de fazer filmes. Como Jean Renoir e Robert Bresson, que fazem música. Como Sergei Eisenstein, que pinta. Como Stroheim, que escrevia romances falados na era do cinema mudo. Como Alain Resnais, que esculpe. E como Sócrates, digo, Rossellini, que cria filosofia. O cinema, em outras palavras, pode ser tudo ao mesmo tempo, juiz e litigante. — Jean-Luc Godard [1]

À lista de Godard sobre os modos de fazer filmes, podemos acrescentar um outro, mais específico: cinema como arquitetura. A interação entre cinema e arquitetura – “a arquitetura inerente da expressão cinematográfica e a essência cinematográfica da experiência arquitetônica” – apresenta várias facetas e acontece sob diversas circunstâncias. [2]

A respeito do processo de produção destas duas “formas de arte”, o arquiteto Juhani Pallasmaa destaca que são ambas realizadas com a ajuda de uma equipe de especialistas e assistentes, resultado do esforço coletivo, todavia, ainda assim, um outro aspecto as aproxima: ambas são artes de autor, fruto de um criador, um artista individual. Determos nossa atenção a este e outros momentos em que estas artes se aproximam.

A construção de cenários é, sem dúvida, um destes momentos. Permitindo grande controle sobre as condições de filmagem, cenários construídos em estúdios fechados proporcionam a possibilidade de se desprender de limitações relativas ao clima, às condições de luz e a eventuais contratempos que possam acontecer em filmagens realizadas em ambientes reais. Alfred Hitchcock é um exemplo de cineasta que fez extenso uso de cenários para criar espaços de tensão e horror em suas produções.

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Cenário do filme Festim Diabólico. Direção: Alfred Hitchcok. Distribuidora: Universal Studios Home Entertainment, 1948. 1 DVD (80 min). Fonte: https://lisathatcher.files.wordpress. com/2012/09/rope-set.jpg.
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Cenário do filme Janela Indiscreta. Direção: Alfred Hitchcok. Distribuidora: Universal Home Video, 1954. 1 DVD (112 min). Fonte: http://theredlist.com/wiki- 2-20-777-789-view-1950-1960- profile-1954-brear-window-b.html.

Outro exemplo emblemático da utilização de cenários no cinema ocorre no expressionismo alemão; filmes como O Gabiente do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, e Nosferatu (1922), de Friedrich Wilhelm Murnau, são obras nas quais, diz Pallasmaa, os espaços e ambientes apresentam uma “arquitetura fantástica suspensa entre a realidade e o sonho”. O filme de Wiene mostra uma arquitetura completamente distorcida, caracterizada por ângulos oblíquos e sombras marcadas nas superfícies do cenário que estabelecem esta arquitetura como algo deslocado da realidade. Já o cenário de Nosferatu replica arquiteturas que estão mais próximas de realidade, todavia, a narrativa do filme carrega os espaços fílmicos com uma atmosfera onírica.

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O Gabinete do Dr. Caligari. Direção: Robert Wiene. Distribuidora: Continental Home Vídeo, 1920. 1 DVD (118 min). Imagen: drmvm1 via Visualhunt.com / CC BY-ND

Os espaços artificiais do expressionismo alemão, com seus ângulos, sombras e perspectivas forçadas geram tensão e deformam a percepção humana, “oprimindo o próprio espaço do observador, incorporando-o ao vórtice do filme”. [3] Desde modo, filmes como Caligari produzem espaços inteiramente novos que, ao mesmo tempo, tudo abarcam e tudo absorvem. Nestes filmes, percebe-se o cenário atuando como protagonista, e não apenas como pano de fundo.

Dotar de valor poético aquilo que ainda não o possui, restringir intencionalmente o campo de visão para intensificar a expressão: estas são as duas propriedades que ajudam a fazer do cenário cinematográfico o palco ideal para a beleza moderna. — Aragon [4]

Para isso, no entanto, não é necessário criar cenários que simulam sombras e distorcem perspectivas; movimentos de câmera e enquadramentos específicos podem criar efeitos semelhantes nos filmes. Preestilizar a realidade antes de enfrenta-la, escreve Erwin Panofsky, “equivale a se esquivar do problema. O problema é manipular e filmar a realidade não estilizada de modo que o resultado tenha estilo.” [5]

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Roma, Cidade Aberta. Direção: Roberto Rossellini. Distribuidora: Image Entertainment, 1945. 1 DVD (103 min). Fonte: https://www.tomshw.it/ files/2011/02/immagini/29608/

Filmar o espaço real era o objetivo de diretores como Roberto Rossellini, Vittorio De Sica, Luchino Visconti e Pietro Germi, que criavam narrativas que mostravam a realidade italiana da segunda metade da década de 1940. Seus filmes, dentre os quais vale destacar Roma, Cidade Aberta (1945), de Rossellini, Ladrões de Bicicletas (1948), de De Sica e A terra treme (1948), de Visconti, apresentam visões críticas da realidade da época (do pós-guerra) e, como afirma Siegfried Kracauer, o espaço urbano, com suas ruas e edificações, era tanto o local como o veículo dessa crítica social.

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Duas ou três coisas que eu sei dela. Direção: Jean-Luc Godard. Distribuidora: Pierrot Le Fou, 1967. 1 DVD (87 min). Fonte: http://laboratoireurbanismeinsurrectionnel. blogspot.com.br/2012/04/godard- la-gestapo-des-structures.html.

Representações do espaço urbano, todavia, não se limitam aos filmes neorrealistas italianos, constituindo parte importante da trama de produções posteriores. Jean-Luc Godard em seu filme Duas ou três coisas que eu sei dela (1967), por exemplo, faz uso de imagens da cidade – no caso, Paris e as transformações pelas quais passava a capital na década de 1960, com a construção de grandes projetos nos subúrbios e periferias – como metáfora para situações cotidianas na vida de algumas das personagens retratadas no filme. Consumismo, capitalismo e globalização aparecem como temas centrais dessa história, seja em relação à cidade ou à vida pessoal dessas mulheres. De modo similar, Quentin Tarantino com Pulp Fiction (1994), retrata a periferia de uma cidade genérica como pano de fundo de uma série de histórias banais: pessoas desempregadas, assassinos, garçonetes e hotéis de beira de estrada compõem uma trama que se enquadra em algo que se poderia chamar de “realismo sujo” e que pode ocorrer em qualquer parte do mundo. [6]

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Pulp Fiction: Tempo de Violência. Direção: Quentin Tarantino. Distribuidora: Miramax Films, 1994. 1 DVD (154 min). Histórias banais em lugares banais. O subúrbio norte- americano mostrado através de um “realismo sujo”. Fonte: Screenshot do filme.
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Pulp Fiction: Tempo de Violência. Direção: Quentin Tarantino. Distribuidora: Miramax Films, 1994. 1 DVD (154 min). Fonte: Screenshot do filme

Visões distópicas do futuro das cidades também compõem o espectro de interferências da arquitetura no cinema. Exemplo disto é o filme Blade Runner – o caçador de andróides (1982), de Ridley Scott, que apresenta uma cidade fictícia (San Angeles) fruto de uma “nova sociedade cibernética, que aglomera etnias e estilos arquitetônicos diversos, evidenciando os resultados de anos de um uso híbrido dos espaços, muitas vezes não compatíveis e geradores de resíduos.” Seus ambientes são manifestações distópicas de “um pós-modernismo garantido pela supremacia capitalista da era pós-industrial.” [7]

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Megalópole fictícia San Angeles em Blade Runner – O caçador de androides. Direção: Ridley Scott. Distribuidora: Warner Home Vídeo, 1982. 1 DVD (117 min). Fonte: http://www.deolhonailha. com.br/florianopolis/cinema/ blade-runner.html

Metropolis (1927), de Fritz Lang, é outro caso que retrata de maneira distópica o futuro. Santos (2004) escreve que “a grande máquina do sistema é eficazmente representada por uma cidade opressora e onipresente, que reduz seus habitantes a meros ventríloquos manipulados pela engrenagem, numa clara manifestação dos medos suscitados por uma nova cidade industrial.” É claro que esta obra de Lang deve ser examinada a partir do contexto no qual se insere; tendo sido produzida ainda na terceira década do século passado, reflete questões relativas ao entre-guerras, momento em que a Alemanha sofria com a derrota da Primeira Guerra e demais países europeus apresentavam crescimento econômico acelerado devido à pesada industrialização. Naquele cenário sociopolítico, Metropolis se mostrava uma possibilidade de futuro distópico, não tão distante da realidade como se poderia assumir para outros filmes do expressionismo alemão.

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Metropolis. Direção: Fritz Lang. Distribuidora: Kino Video, 1927. 1 DVD (153 min) e a possibilidade de um futuro distópico. Fonte: Screenshot do filme

Décadas mais tarde, a cidade moderna foi magistralmente representada de forma irônica nos filmes Meu Tio (1958), Playtime (1967) e Trafic (1971), de Jacques Tati. A tecnologia e a modernização, encarnada pelos mais diversos artefatos, dispositivos e edifícios, são contrastadas pela simbólica figura de M. Hulot, sujeito que simplesmente não se encaixa no novo modo de vida imposto pelo acelerado processo de modernização das cidades. Deslocado, tenta em vão se adequar à nova realidade que promete facilidade e conforto, mas que lhe apresenta apenas obstáculos e resistência. 

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A casa moderna em Meu Tio (1958) não parece facilitar a vida de M. Hulot. Fonte: https://girlsdofilm.wordpress. com/2015/09/20/mon-oncle-m -hulot-is-puzzled-by-modernism/
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Paisagem urbana de Playtime. Direção: Jacques Tati. Distribuidora: Continental Home Vídeo, 1967. 1 DVD (115 min). Fonte: http://3.bp.blogspot.com/ -y7LJmbBN-aM/

Outro ponto de vista interessante, comenta Pallasmaa, seria pesquisar se a arquitetura do cinema, liberada das restrições das funções práticas, da tecnologia construtiva e dos custos, “obteve alguma vantagem artística sobre os projetos de arquitetura reais destes arquitetos de notáveis edifícios.” Isto é, longe das limitações concretas, teria a arquitetura do cinema ido mais longe que a arquitetura que dá origem ao nosso ambiente construído? Pistas disso podem ser vistas em projetos de arquitetos cenógrafos, como a Maison Suspendue, de Paul Nelson, na qual “os ambientes estão suspensos em uma cela de aço e vidro como ninhos de pássaros.” [8] Resta à imaginação especular que edifícios estes cenógrafos teriam construído se não tivessem se dedicado ao cinema. O arquiteto Robert Mallet-Stevens observa:

É inegável que o cinema tem uma influência marcada na arquitetura moderna, por sua vez, a arquitetura moderna traz seu lado artístico para o cinema...[Ela] não apenas serve ao cenário cinematográfico, mas imprime sua marca na direção [mise-en-scène], rompe seu enquadramento; a arquitetura ‘atua’. — Robert Mallet-Stevens [9]

Estes cruzamentos também podem ser vistos no sentido inverso: assim como a arquitetura ergue cenários nos filmes, o cinema pode, com luz, sombras, escala e movimentos, construir espaços. Para cineastas com estudo ou aproximação acadêmica com a arquitetura, como por exemplo Sergei Eisenstein, a inexistência de limitações físicas concretas – gravidade, funcionalidade etc. – faz com que o cinema possa ir ainda mais longe que a arquitetura (entendida aqui como prática de projetar e construir edificações) em termos de experimentações espaciais.

  • 1. GODARD, Jean-Luc. Godard on Godard. New York: Da Capo Press, 1986. p.208.
  • 2. PALLASMAA, Juhani. The Architecture of Image. Existential space in architecture. Helsinki: Rakennustieto Publishing, 2007. p.14.
  • 3. VIDLER, Anthony. The Explosion of Space: Architecture and the Filmic Imaginary. Assemblage, No. 21 (Aug., 1993), pp. 44-59, Cambridge: The MIT Press, 1993. p.47.
  • 4. ARAGON, Louis. "Du decor", Le Film 131, 1918, p. 8-10. In. VIDLER, Anthony. The Explosion of Space: Architecture and the Filmic Imaginary. Assemblage, No. 21 (Aug., 1993), pp. 44-59, Cambridge: The MIT Press, 1993. p.50.
  • 5. PANOFSKY, Erwin. Style and Me­dium in the Motion Pictures. Bulletin of the Department of Art and Archeology, Princeton University, 1934. p.32.
  • 6. TOORN, Roemer van. Architecture Against Architecture – Radical Criticism Within Supermodernity. Disponível em: http://www.roemervantoorn.nl/architectureagai.html. Acesso em: 05/04/2010. p.9.
  • 7. SANTOS, Fábio Allon dos. A arquitetura como agente fílmico. Vitruvius – Arquitextos, 2004. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.045/616 Acessado em 25 de junho de 2014.
  • 8. PALLASMAA, Juhani. The Architecture of Image. Existential space in architecture. Helsinki: Rakennustieto Publishing, 2007. p.17.
  • 9. MALLET-STEVENS, Robert. Le Cinema et les arts: L'Architecture, Les Cahiers du Mois-Cinema, 1925. In. VIDLER, Anthony. The Explosion of Space: Architecture and the Filmic Imaginary. Assemblage, No. 21 (Aug., 1993), pp. 44-59, Cambridge: The MIT Press, 1993. p.46.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Como a arquitetura fala com o cinema" 13 Set 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/867865/como-a-arquitetura-fala-com-o-cinema> ISSN 0719-8906

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