Ordem e desejo de eternidade são as matérias-primas de nossos pensamentos, seria impossível pensar fora deste universo.
Toda a história da urbanidade é o teatro de um drama difícil de descrever. É difícil de compreender as causas dos múltiplos e diferentes condicionantes que determinam os resultados que às vezes admiramos e às vezes detestamos.
No entanto, esse teatro é a expressão mais autêntica e cruel, espelho da nossa civilização e, como tal, as áreas urbanas e as habitações são um reflexo indissolúvel desta complexidade.
Foi durante um voo de helicóptero com o objetivo de fotografar nossas obras que a distância nos revelou uma imagem comparativa sobre a relação de nossos raciocínios com a escala estarrecedora dos âmbitos das periferias urbanas onde os projetos se inserem.
Após 40 anos enfrentando projetos concretos, refletindo sempre o sentido de cada ação, com certeza vêm à tona as convicções da nossa formação moldada nas formas urbanas da ideologia modernizante.
Constatamos que na maioria dos nossos projetos, uma vez materializados e entregues à população, acontece uma rápida inversão de valores, em que os esforços presentes na etapa de projeto se transformam, mesmo aqueles objetivos que tenham sido estabelecidos em conjunto com a comunidade e o poder público. Apenas o fato de a comunidade se apropriar deste minúsculo território urbano é suficiente para uma espécie de “auto-depredação consciente”, algo como uma afirmação às avessas. Ou seja, depreda-se o que foi pensado para a melhoria do âmbito urbano daquele lugar.
O que foi acrescentado como valores de identidade da comunidade, o que foi concebido como interseção e solidariedade com o entorno imediato, o que foi concebido com valores de familiaridade nos espaços domésticos são modificados ou danificados através de ações de gestão, sejam elas justificadas legalmente ou não e executadas sem nenhuma participação dos órgãos competentes, acabando por ser, muitas vezes, invasões de territórios públicos previstos em projeto.
Esta lealdade à consciência da minha formação resiste a transpor a barreira das utopias do projeto cultural e social moderno sobre a ideia e forma dos convívios do público com o coletivo e com o privado, concatenados numa comunhão harmônica. Só podemos concluir nostalgicamente que nossos projetos são uma ilusão.
O resultado da minha formação não é uma questão de memória sentimental. Essa consciência está alicerçada e conferida nas suas possibilidades de constituição, sobre modelos locais ou não, nos diversos períodos de história. Todos os discursos teóricos nos chegam através dos castelos intelectuais que nós construímos. As ideias de ordem, dos traçados reguladores e ângulos retos, não são modernos, são constantes da casa ao templo, são uma ideia constante e potente desde os inícios longínquos. Contudo, apesar de nosso esforço, nossas obras não atendem à nossa realidade.
O valor do privado não é similar em todo o Ocidente. A constituição da sociedade no Brasil é um crisol de culturas em que não é fácil estabelecer modelos únicos. Excluindo as questões de clima e geografia, a ideia do privado, em São Paulo, por exemplo, está baseada no excludente e no exclusivo, estando enraizada em geral e irremediavelmente nas áreas mais carentes. A vida do coletivo está sempre coincidente com fatos peculiares e pontuais, inclusive as fatalidades e a própria pobreza; por outro lado, as vidas do acontecer coletivo estão associadas às tribos vinculadas hoje principalmente pelas vias virtuais. É difícil encontrar, salvo em raras exceções, um desenho urbano que fosse suficiente para restabelecer novos laços que hoje são inidentificáveis.
Nas nossas palestras e aulas sempre afirmamos: habitação social não é um problema construtivo nem um problema de quantidade, a questão é como construímos a cidade, pois entendemos o âmbito urbano como principal fator que determina a qualidade do habitar. A habitação deve sempre estar diretamente ligada à estrutura da cidade como um todo legível e indissolúvel – seja ele urbano ou suburbano.
Essa nossa afirmação contém uma necessidade de unidade entre desenho e qualidade. Essa é uma tendência também presente em outras ciências, do mito da fórmula definitiva, porque “a mente sempre volta a suas próprias necessidades de beleza, verdade e discernimento”. (BLOOM, 2005, p.13).
Sobre os modos de abraçar as novas concepções de cidade, destas desurbanidades por parte das comunidades, temos uma incapacidade enorme e congênita, herdada da nossa condição social que não elegemos, de entender estas populações. Com histórias fragmentadas, estas comunidades se recusam a entrar no jogo das formulações da razão (todas herdadas, mal ou bem, do capitalismo).
Permanecendo – a ação no território - numa constante indagação: conceber a arquitetura como um poder que estabeleça uma equação de equilíbrio entre Estado, Mercado, Razão e Sociedade.
Enfim, como nos adverte o Rabino Tarphon [1]: “Não sois obrigados a concluir a obra, mas tampouco estais livres para desistir dela”.
*Texto de introdução do livro “O Terceiro Território – Habitação Coletiva e Cidade” (Vigliecca & Associados/2014), organização Lizete Maria Rubano
Notas
[1] BLOOM, Harold. Onde Encontrar a Sabedoria, Editora Objetiva, 2005
Héctor Vigliecca é arquiteto e urbanista, sócio-fundador do Vigliecca & Associados, foi professor da Universidade Mackenzie e UNIP de 1992 a 2012. Tem três livros publicados: “Hipóteses do Real” (2012), “Arena Castelão – Governador Plácido Aderaldo Castelo” (2014) e “O Terceiro Território – Habitação Coletiva e Cidade” (2014).