Frustração e reconhecimento na arquitetura

Diferente de muitas outras artes, a arquitetura guarda algumas singularidades que só poderiam encontrar respaldo em um campo que, por natureza, se coloca como uma combinação de outros campos. De início, chamá-la de arte pressupõe afastar o foco de sua natureza técnica e social, voltando-o para questões relativas à liberdade artística e experimentações formais daqueles que a concebem. Falso se tomado como único modo de compreender e abordar a arquitetura, mas verdadeiro se visto como um dos modos de fazê-lo.

Há uma peculiaridade na arquitetura como arte, se a tomarmos em comparação com outras artes: o não-reconhecimento do “artista”. A produção de outros campos, ao atingir determinado grau de reconhecimento e legitimação dentro do próprio campo, extrapola seus limites e passa a fazer parte do conhecimento daquilo que se pode chamar de “público” – ou, pessoas de fora do campo, ou ainda, leigos.

Exemplos disso são abundantes sobretudo na música, literatura, cinema, teatro e pintura. Saramago é aclamado pela crítica, mas lido e conhecido por muitos; Sofia Coppola não é nome desconhecido para o público leigo; e Radiohead não é ouvido apenas por músicos. O mesmo acontece com artistas cuja qualidade da produção pode (e deve) ser questionada. Assim, Drake está na playlist de pessoas do mundo inteiro e Romero Brito talvez (e infelizmente) seja o artista plástico mais famoso do Brasil.

Quais arquitetos e arquitetas são de conhecimento do público leigo? Não é difícil adivinhar que Oscar Niemeyer é o único nome no Brasil, e no mundo, talvez Frank Gehry e Le Corbusier estejam entre os poucos conhecidos. Paulo Mendes da Rocha, Álvaro Siza, Renzo Piano, Richard Rogers, Lina Bo Bardi, mas também Francis Kéré, David Adjaye e Jeanne Gang, são todos nomes bem conhecidos dentro do campo da arquitetura, cujas respectivas obras já foram premiadas mais de uma vez. Fora dele, pouco se sabe de suas contribuições.

O que explica essa espécie de negligência em relação ao arquiteto? Materializada no espaço, a arquitetura não pode ser negligenciada; sua presença causa, inevitavelmente, alguma interferência, seja positiva ou negativa. Então, por que se negligencia aqueles que a produziram?

Uma possível explicação para isso pode ser encontrada nas reflexões de Walter Benjamin sobre a recepção tátil e a recepção ótica das obras de arte. Atribuindo à arquitetura o papel de arte experienciada através do olhar distraído, o autor comenta que, desde o início, “a arquitetura foi o protótipo de uma obra de arte cuja recepção se dá coletivamente, segundo o critério da dispersão. As leis de sua recepção são extremamente instrutivas.” [1] Nesse sentido, diferente das outras artes, o contato com a arquitetura se dá sem esforço, naturalmente e organicamente. Ao público usual – isto é, que não está fazendo turismo e visitando memoráveis edifícios e monumentos – não cabe a escolha da recepção da arquitetura: ela está lá e, invariavelmente, lhe causará algum efeito. Esta espécie de onipresença da arquitetura é explicada por Benjamin, que diz:

“Os edifícios acompanham a humanidade desde sua pré-história. Muitas obras de arte nasceram e passaram. A tragédia se origina com os gregos, extingue-se com eles, e renasce séculos depois. A epopeia, cuja origem se situa na juventude dos povos, desaparece na Europa com o fim da Renascença. O quadro é uma invenção da Idade Média, e nada garante sua duração eterna. Mas a necessidade humana de morar é permanente. A arquitetura jamais deixou de existir. Sua história é mais longa que a de qualquer outra arte, e é importante ter presente a sua influência em qualquer tentativa de compreender a relação histórica entre as massas e a obra de arte.” - Walter Benjamin [2]

Na contramão das outras artes, a arquitetura é, então, indispensável, atendendo uma necessidade essencial do ser humano: morar. Assim, os edifícios são recebidos “pelo uso e pela percepção” (e não pela contemplação) de modo habitual e corpóreo, em vez de visual e através de uma atenção concentrada. [3] Esse aspecto da arquitetura talvez ajude a explicar o desconhecimento de sua autoria, haja vista que a própria arquitetura se desconhece.

No caso das demais artes – que, segundo Benjamin, são mais recentes que a arquitetura e cuja existência e permanência não é assegurada por nada – o fato de serem recebidas pelo público através da atenção garante a elas maior reconhecimento: sabemos quem canta tal música na rádio, mas não sabemos quem projetou e construiu o edifício da esquina da rua onde vivemos. O reconhecimento na arquitetura, quando existe, ocorre quase que exclusivamente dentro do próprio campo da arquitetura. Fora dele não é apenas virtualmente inatingível, como nem faz parte das pretensões dos arquitetos. Dito de outro modo, se você quer ser famoso, não faça arquitetura.

Todavia, essa complexa relação do público com a arquitetura esconde outro aspecto desta que é, também, peculiar: embora interfira no espaço à sua volta (e, deste modo, na vida de todas as pessoas), a arquitetura é sempre feita para alguém ou a pedido de alguém específico. Particular, público, instituição, ONG, empresa, corporação, União, há sempre alguma outra instância que se convencionou chamar de “cliente” (com exceção talvez de arquiteturas especulativas, concebidas mais como provocações que com o objetivo de serem construídas).  Ao arquiteto é delegada a difícil tarefa de projetar para alguém e, simultaneamente, para todos – já que mesmo a presença singela de uma residência unifamiliar interfere em seu contexto – sem que, com isso, possa esperar o devido reconhecimento por seu trabalho.

Sintetizar desejos, exigências, expectativas, necessidades e restrições de toda ordem em um projeto arquitetônico não é tarefa fácil. Realizar isso satisfatoriamente é ainda mais complexo, já que dentro do campo há toda sorte de avaliações e julgamentos, e fora dele, há a expectativa do cliente que, se atingida, acaba sendo possivelmente a única fonte de reconhecimento do trabalho. E em meio à inerente frustração da profissão, há essa espécie de gratidão de trabalho feito que o arquiteto experiencia ao concluir, após tremendo esforço, a obra.

  • 1. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilida­de técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 193
  • 2. Idem.
  • 3. Idem.

Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Frustração e reconhecimento na arquitetura" 27 Abr 2017. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/869766/frustracao-e-reconhecimento-na-arquitetura> ISSN 0719-8906

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