Perspectivas do Chão: Novos olhares para os concursos de projeto de arquitetura no Brasil

No final do ano de 2015, a Prefeitura de Campinas, através de sua Secretaria do Verde, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e em parceria com o IAB-SP, lançou um concurso de projetos de arquitetura denominado ‘Casa da Sustentabilidade’. O edital solicitava soluções “criativas e inovadoras” para a construção de um edifício no Parque Portugal - um dos principais parques públicos da cidade - o qual deveria ser, ele mesmo, “uma exposição permanente de soluções sustentáveis”. Além disso, deveria acomodar outras exposições de mesmo caráter e atividades do Conselho Municipal do Meio Ambiente (COMDEMA).

O desfecho do concurso foi divulgado em uma cerimônia realizada em Campinas, em fevereiro de 2016. Durante o evento, o concurso foi comparado com o novo ‘Museu do Amanhã’, em referência ao controverso projeto de Santiago Calatrava, no Rio de Janeiro. A analogia sugere o caráter espetacular que assediava a proposta do concurso, a qual colocava em questão as expectativas e as intenções em relação ao edifício.

Em face a um edital que repetidamente clamava por soluções ‘inovadoras e criativas’, surpreendeu a considerável homogeneidade arquitetônica nas soluções agraciadas pelo júri. As justificativas do júri, registradas em ata, mal podiam distinguir os projetos premiados, caracterizados a partir de qualidades pouco específicas como, por exemplo, ‘delicadeza e elegância’ ou ‘distribuição generosa’, que não permitem compreender as razões da escolha dos vencedores em relação à premissa inicial do concurso.[1] Ainda assim, não houve manifestações discordantes nem tampouco entusiasmadas em relação ao resultado.

A homogeneidade e a carência de soluções diversificadas e inventivas fazem com que a  apatia pelos projetos premiados em concurso de arquitetura no país seja cada vez mais frequente. O desinteresse pelos concursos pode inclusive prejudicar a execução dos projetos, como de fato vêm acontecendo. A recorrência desses resultados suscita as questões:

Mas afinal, o que se espera dos concursos? Para que servem? Qual a sua importância diante da inovação na arquitetura? Como poderiam ser melhor elaborados e avaliados? Os projetos devem respeitar o edital na íntegra ou cabe aos participantes questioná-lo e propor soluções baseadas no que acreditam? Projetos que não atendem às demandas estabelecidas podem ser consagrados como vencedores?

Motivados por estas questões, foi realizado um encontro, chamado de Perspectivas de uma geração de jovens arquitetos, na UNICAMP no dia 5 de maio de 2016. No evento, organizado pelo arquiteto Eduardo Costa, foram apresentados os projetos para a ‘Casa da Sustentabilidade’, elaborados por seis equipes, as quais continham arquitetos formados pela Unicamp. Foram também convidadas as Professoras Silvana Rubino (IFCH-UNICAMP),  Gabriela Celani (FEC-UNICAMP) e Joana Mello (FAU-USP) para comentários e discussões.

Chamou a atenção a fala da prof. Joana Mello (FAU-USP), a qual, ao iniciar a sua apresentação,  avaliou criteriosamente  os procedimentos utilizados no concurso em questão -o edital, o termo de referência e a ata do júri - e chamou atenção para algumas contradições, apontadas como recursivas na prática dos concursos no país.

Segundo ela, três diretrizes centrais se destacavam no edital para o direcionamento dos propostas: 

  1. A integração da edificação com o parque e a cidade por meio da valorização dos espaços e usos públicos e do respeito à topografia, à paisagem e à vegetação local.                             

  1. A busca por estabelecer um modelo de construção sustentável, considerando para isso: soluções de alta durabilidade; baixo custo de construção, limpeza e manutenção; economia de recursos; e favorecimento de tecnologias, serviços e materiais locais.                             

  1. Flexibilidade dos espaços e das instalações.

Destas três diretrizes, as quais deveriam ser as mais importantes para o estabelecimento dos critérios de julgamento, a arquiteta observou que, de acordo com o próprio júri, o projeto vencedor havia atendido apenas a uma delas de modo satisfatório, no caso a “flexibilidade dos espaços e das instalações”.

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Em relação à “integração da edificação com o parque e a cidade”, percebe-se que o edifício se destaca como um objeto isolado da paisagem, inserido em um entorno indistinto e cujo percurso e envoltória são essencialmente autorreferentes, ou seja, o espaço envoltório está exclusivamente à disposição da visualidade do edifício, sem tratamento arquitetônico. A solução, portanto, não apresenta qualquer vantagem ou ressalva referente ao fato de estar ali, é indiferente à condição espacial do parque e poderia estar em qualquer outro lugar. 

Por fim, em relação ao quesito de “estabelecimento de um modelo de construção sustentável” – central ao tema do concurso - os jurados registraram ponderações técnicas básicas, como readequação da materialidade translúcida do edifício em relação à orientação solar da implantação, além de recomendar a “incorporação de outras tecnologias sustentáveis porventura não consideradas na proposta original”. Ainda, critérios de sustentabilidade deveriam ser verificados e complementados de acordo com aqueles “exigidos pelas mais importantes certificações de sustentabilidade” antes da execução.

Além disso, apesar de os sistemas construtivos estarem expostos no projeto vencedor, de acordo com o júri, “de maneira legível”, não foram explicitadas considerações referentes à cadeia produtiva destes componentes ou sobre o dispêndio de energia para a sua realização, considerando-se o canteiro e o edifício como parte de uma cadeia de processos, aspectos necessariamente relevantes em uma concepção de sustentabilidade.

Ora, se para um concurso arquitetônico para a ‘Casa da Sustentabilidade’ nem a orientação solar em relação à materialidade de suas fachadas, nem as “tecnologias sustentáveis” adotadas atendiam plenamente às diretrizes estabelecidas pelo edital, e tampouco foram consideradas os impactos das soluções nas cadeias produtivas de materiais, qual o motivo para a escolha do vencedor? Quais qualidades serviram de parâmetro para a premiação dessa proposta?

O júri registrou as seguintes justificativas:

  1. “A delicadeza e a elegância com que o edifício pousa sobre o terreno revela a postura de profundo respeito pelo entorno adotada no partido”; 

  1. “A racionalidade construtiva e de organização espacial é legível em todos os seus elementos”;              

  1. “A dimensão humana em seu papel original: não colocando o homem como elemento dominador, que dobra, molda e subjuga a natureza à sua vontade, mas como mais um elemento que se integra em harmonia com o ambiente em que está inserido – e isso, sim, é uma construção sustentável.”

Como observou a arquiteta e professora Joana Mello, as qualidades listadas não são simplesmente vagas e não se tratam de adjetivos isolados e de opiniões subjetivas em relação à arquitetura. Esses valores são compatíveis, segundo ela, a um modo de fazer e pensar que remetem a critérios de uma “boa arquitetura”, característicos do ideário da profissão nos anos 40. Estes aspectos se impuseram sobre os critérios objetivos do concurso, em vez de explicitar aqueles que melhor atenderiam às exigências e necessidades apresentadas no edital.

Vimos, a partir deste resultado, que a exaltação do objeto arquitetônico e sua plasticidade ainda prevalece de modo hegemônico na discussão dos concursos de arquitetura no Brasil. Isso fica evidente ao se observar a homogeneidade dos projetos premiados e das menções honrosas da referida competição. Entre o primeiro lugar e as menções, só é possível verificar uma gradação na qualidade de projetos, que são muito semelhantes, em vez de se explicitar um modo diferente, ainda que louvável, de se encarar o desafio proposto. 

Diante desse cenário, fica a pergunta: Por que os projetos premiados deveriam ser necessariamente tão semelhantes? É possível dizer que existe um padrão arquitetônico que tende a determinar o resultado das principais competições do país? As qualidades deste padrão podem e devem ser utilizadas como justificativas em detrimento de critérios e objetivos pré-estabelecidos? Como seria possível reconhecer soluções “criativas e inovadoras” em um paradigma que pressupõe um tipo ideal de arquitetura?

Ao se favorecer apenas soluções legitimadas, a premiação deixa de explicitar contrapontos críticos e tampouco outras abordagens e novos olhares sobre o tema, restringindo o caráter experimental das competições de arquitetura. Um caso exemplar que justifica a relevância da diversidade nos concursos foi a competição para o Museu da Bauhaus, em Dessau. Naquela ocasião, o júri escolheu dois projetos radicalmente diferentes como vencedores na primeira colocação, demonstrando a diversidade de olhares e possibilidades para um mesmo conjunto de requisitos. [2]

Primeiros colocados no Concurso Museu Bauhaus. Fonte: https://concursosdeprojeto.org/2015/12/20/premiados-concurso-internacional-bauhaus-museum-dessau/

Refletindo sobre essa questão, chegamos a conclusão de que a composição pouco diversa de um júri possa ser um dos motivos para recorrência de resultados como este. A grande maioria das comissões julgadoras de concursos de arquitetura no Brasil são compostas exclusivamente por arquitetos, apesar dos temas naturalmente exigirem cada vez mais uma busca pela interdisciplinaridade de soluções. Deste modo, na medida em que os concursos públicos de projeto são encarados somente como procedimentos exclusivos de arquitetura, desfavorecem a participação de outros profissionais e a apreciação mais democrática de outras discussões pertinentes  para a cidade e a sociedade.

Além de contemplar representantes da sociedade civil no júri, ou mesmo prever a apreciação das propostas por estes antes da decisão final, nos parece necessário compreender que a dimensão profissional dos concursos não deve ser unicamente de responsabilidade do arquiteto, mas também de outros profissionais vinculados a cada demanda. Por exemplo, profissionais da saúde deveriam participar de avaliações sobre edifícios de equipamentos de saúde, bem como profissionais das ciências ambientais para concursos de sustentabilidade, dialogando em conjunto sobre a demanda em questão.

Ademais, ponderamos que os concursos atuais preservam ainda um papel tradicional no Brasil de legitimação de uma dada produção, que inclusive remete a episódios controversos do estabelecimento da arquitetura moderna no país. Neste contexto, é preciso distinguir entre prêmios e concursos. É pertinente às premiações de arquitetura, promovidas pelas entidades profissionais específicas, valorizar um conjunto de soluções que se pretende destacar, mas o mesmo não cabe aos concursos de caráter público. Entendemos que estes últimos são, pelo contrário, uma oportunidade única de se aprimorar a diversidade, a inovação e o caráter experimental da arquitetura sem, no entanto, abrir mão do compromisso de fortalecer os vínculos e atender às expectativas da sociedade em relação à profissão.

 A falta de uma distinção entre concursos e premiações tem resultado em equívocos evidentes em todas as instâncias que viabilizam a realização dos concursos, desde a formulação dos editais até seus resultados. Nesse sentido, constata-se, por exemplo, no concurso das sedes do IAB e CAU do Distrito Federal, que o edital e termos de referência se pré dispunham a favorecer o aspecto de austeridade, nos termos de Lucio Costa e seu Memorial do Plano Piloto. Nos mesmos documentos, foi solicitado aos projetos “reconquistar a posição de vanguarda que a arquitetura brasileira ocupou nos cenários nacional e internacional”. No entanto, estas solicitações geram, no mínimo, uma ambiguidade tendenciosa entre uma retomada da arquitetura moderna brasileira como tradição cultural consagrada e emblemática, produzida há mais de meio século, e um pensamento de vanguarda que, em tese, deveria pressupor a ruptura com essa tradição em favor de sua superação.

Os resultados, por sua vez, se colocam da mesma forma como observado no concurso da Casa da Sustentabilidade e privilegiam mais a primeira opção do que a segunda. Projetos extremamente parecidos, que tendem a legitimar um “tipo” arquitetônico muito recorrente nos concursos brasileiros, que retoma características modernas e nos levam a crer que existe apenas um jeito de se fazer arquitetura. Se ainda, por exemplo, compararmos o projeto vencedor do concurso da Casa da Sustentabilidade, com o das sedes do IAB e CAU/DF, de 2016, e com o do Edifício Anexo do BNDES, de 2014, fica ainda mais evidente os aspectos sistêmicos dessa situação. 

Primeiro colocado no Concurso CAU e IAB/DF. Fonte: http://www.saopauloarquitetos.com/
Primeiro colocado Edifício Anexo BNDES. Fonte: https://concursosdeprojeto.org/2014/09/30/premiados-concurso-anexo-do-bndes-rio-de-janeiro/

Frente à tais circunstâncias,  acreditamos que seja essencial o fortalecimento de uma cultura de concursos de arquitetura baseada em um caráter democrático e profissional amplo que garanta a experimentação e o aprimoramento da arquitetura, bem como o acesso e apreciação desses resultados para a população. Ainda, acreditamos que os concursos de arquitetura são as oportunidades mais adequadas para se expor, debater e explorar, junto com a sociedade, a diversidade de caminho e novas possibilidades de se fazer e pensar a arquitetura. É por isso que reforçamos a importância dos vínculos entre as demandas objetivas do edital e as soluções arquitetônicas, de uma maneira que faça sentido para a sociedade e não somente para uma tradição disciplinar da classe.

No encontro realizado na Unicamp, percebemos ainda um aspecto comum a praticamente todos os projetos vencedores. Eles apresentaram imagens dos projetos, observadas a partir de grandes alturas, distantes dos edifícios e muitas vezes raras para os usuários. Para além de representações coincidentes, entendemos que essa maneira de apresentar os projetos correspondem a um modo específico de se pensar a arquitetura.

De forma distinta, percebemos o valor de se encarar a arquitetura - assim como poderiam ser encarados os concursos - a partir dos olhos de um observador, dos usuários, de uma perceptiva do chão. Esse ponto de vista, além de oferecer uma relação mais próxima, honesta e pertinente com a sociedade, indica que as visões acerca de um problema de arquitetura são sempre parciais, ou seja, observadas a partir de um certo ponto de vista. Na medida em que se compreende as possibilidades dessa diversidade de olhares, os projetos passam a responder aos diversos ângulos de visão em vez de necessariamente se ater a um ponto único, arriscado sempre a perder de vista as demais opiniões.

Notas

1. Este fato se torna recorrente dentro do contexto de concursos de arquitetura no Brasil, como é observado pelo arquiteto Francisco Segnini Júnio, em artigo publicado em 2015, o qual analisa a situação dos concursos de arquitetura no país e comenta a repetição de adjetivos pouco específicos nos pareceres do juri. http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.181/5596
2. Mais informações no link: http://bauhausmuseum-dessau.de/competition-brief.html

Redação do texto: Frederico Costa, Léa Gejer, Luis Fernando Milan e Maíra Barros 

Assinam o texto: Ana Claudia Maciel, Ana Luiza Gnaspini Monteiro, Ana Paula Fellippe, Daniel Winnik, Deborah Sandes, Katia Sartorelli Veríssimo, Laís Amorim, Lara Branco Santos, Mariana Boschini, Marília Rondinelli Boccia, Marta Pinto Levy, Sarah Nunes e Tiago Brito. 

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Sobre este autor
Cita: Frederico Costa, Léa Gejer, Luis Fernando Milan e Maíra Barros. "Perspectivas do Chão: Novos olhares para os concursos de projeto de arquitetura no Brasil" 25 Abr 2017. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/869916/perspectivas-do-chao-novos-olhares-para-os-concursos-de-projeto-de-arquitetura-no-brasil> ISSN 0719-8906

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