Hoje, mais do que no passado e, através do desenvolvimento dos meios de comunicação, o arquiteto é um personagem que se tornou assunto na sociedade contemporânea, em obras literárias, filmes, livros, etc.
Entre telas, bustos, fotografias e vídeos, a mostra L’architecte. Portraits… et clichés na Cité de l’Architecture de Paris ilustra a evolução desse personagem, sua formação, seu universo criativo, seus métodos de trabalho, ferramentas e clichês, que serviram para sedimentar o mito do star-architect.
A Mostra L’architecte. Portraits… et clichés na Cité de l’Architecture de Paris propõe reconstruir a imagem do profissional a partir de longa sequência de retratos de arquitetos da Antiguidade até os dias atuais, demonstrando as profundas transformações ocorridas no estatuto disciplinar, compondo assim uma história da profissão repleta de curiosidades e surpresas e também, como ressalta o título da mesma, de muitos clichês.
O percurso evolutivo com clara perspectiva francófona, evidencia como no curso dos séculos a imagem do arquiteto foi continuamente atualizada: daquela do técnico da construção, do capomaestro e do homem de negócios; àquela do intelectual, do engenheiro e do artista.
A primeira questão que vem à tona é o arco temporal da mostra. Isto é, quem foi o primeiro arquiteto? A resposta é esclarecida na abertura da exposição, que coloca Deus representado no ato da formação do Universo usando um compasso, símbolo recorrente da profissão. Somente depois aparecem os primeiros arquitetos mortais, encontrados a partir da Mesopotâmia e do Antigo Egito, como o famoso Imhotep, digno de ser esculpido em estatueta de bronze, pois estava no ápice da sociedade da época.
Há clara opção por parte da curadoria em alargar o sentido do fazer arquitetônico, deixando de lado o recorte clássico renascentista, quando a arquitetura torna-se arte liberal. Nesse sentido, avança-se sobre a condição dos arquitetos na Grécia Antiga e Roma, que apesar dos esforços de Vitruvius, não ficou quase nenhum registro desses personagens; e na Idade Medieval, onde frequentemente o cliente é definido como architectus (quem efetivamente edificava era o construtor). Somente aí que o Renascimento emerge triunfal, com o ingresso acentuado da figura de Leon Battisti Alberti, por sua obra De re aedificatoria.
A mostra então, rapidamente desloca-se para o Grand Siècle, o século do Barroco e do Rei Sol, período em que o arquiteto conquista o papel de artista criativo, inclusive tornando-se figura próxima ao Rei Luis XIV, que não por acaso funda a Académie Royale d’Architecture (1671). Na sequência de retratos dessa parte da exposição, vê-se claramente a relação com o poder, refletido nas vestes e nas medalhas, assim como nas perucas. Justamente para satirizar esses acessórios, o inglês William Hogarth realizou desenhos inspirados nas ordens arquitetônicas, denominados “As Cinco Ordens de Perucas”.
No Século das Luzes a imagem do arquiteto mostra-se menos pomposa e o retrato torna-se mais informal, quase íntimo, como aquele feito em 1780 por Antoine-François Callet, de Claude-Nicolas Ledoux sentado à mesa de desenho com o compasso em mão e a filha Adelaide no braço. Depois de Napoleão, tem-se o triunfo da sobriedade, sobretudo o preto - ainda hoje uma cor preferida por muitos desses profissionais.
A ligação entre artistas e arquitetos se intensificará com a Belle Époque; e a partir do Novecentos assume particular relevo, finalmente com algumas mulheres entrando em cena, de Charlotte Perriand à Zaha Hadid.
Entre telas, bustos, fotografias e vídeos, a mostra concentra-se depois em temas mais específicos, como a paixão de Ingres pelos seus amigos arquitetos, enfatizada pelas dezenas de retratos por ele elaborados ou a fama de Charles Garnier, projetista da Opera de Paris reproduzida em diversos modos, inaugurando o mito do ArquiStar.
Outros clichês? A coleção de cachimbos, óculos e gravatas borboletas de Le Corbusier; a mesa de desenho de Viollet-le-Duc; as notas de dinheiro com a efígie dos arquitetos (Thomas Jefferson no dólar, Corbusier no franco suíço, Bernini na nota de 50 mil liras); e a sala dedicada ao arquiteto no cinema.
Apesar da mostra não desenvolver muito a conexão do arquiteto e a cinematografia, vale ressaltar que Cinema e Arquitetura e Urbanismo sempre tiveram uma relação muito estreita. Metropolis (1927) do cineasta austríaco Fritz Lang, que retrata a condição da “vida nervosa” como a base psicológica da existência na metrópole moderna, inaugura de forma peremptória o debate sobre o nascimento desta, e porque não dizer, do Urbanismo enquanto campo disciplinar.
A mostra parisiense não é a primeira que aborda o tema – vale recordar, dentre vários, The image of the architect de Andrew Saint (1983) e L’architetto: ruolo, volto, mito de G.Beltramini e H.Burns (2009) –. Contudo, a mostra funciona como grande estímulo para se perguntar quem é e qual o papel desse profissional no terceiro milênio.
Nas últimas quatro décadas são numerosos os filmes em torno de arquitetos, desde os que foram filmados dentro de edifícios historicamente importantes ou ainda, os que o tecido urbano é parte fundamental do corpo da narrativa. Alguns deles encontram-se figurados na Mostra, mas sem uma reflexão mais profunda sobre essa relação e sobre a possibilidade de pensarmos o papel do profissional no projeto da cidade contemporânea.
Dois filmes, a meu ver, colocam de forma contundente – através da figura de dois estudantes de arquitetura, a nova relação dialética entre uma nova didática nos cursos de arquitetura á luz do projeto da cidade contemporânea. E mais do que isso, explora uma nova relação entre Mestre e Discípulo, com valor pedagógico inestimável: Inception de Christopher Nolan (2010) e La Sapienza do diretor Eugène Green (2014).
O primeiro é o convite à reflexão a partir do filão comparativo entre o mundo arcaico e clássico, que aparece na figura do labirinto e de Ariadne, a estudante de arquitetura. O segundo, a partir da viagem de estudo do arquiteto francês formado em Veneza e do aspirante a arquiteto. Durante sua narrativa remonta explicitamente o Grand Tour - prática secular dos alunos e interessados em arquitetura - , no qual o percurso arquitetônico na obra de Borromini aparece como lugar de reflexão e de encontro entre presente epassado. Vale destacar que no La Sapienza aparece um personagem interpretado pelo próprio diretor, que ao personificar o estrangeiro, explora de forma incisiva o drama que vive a Europa e o infortúnio de seus habitantes que perderam sua cultura.
Será que em cidades contemporâneas retratadas na ficção é possível restituir à travessia uma dimensão estética, política e social, em grau de nos tornarmos mais integrados a esse ambiente, conscientes do nosso corpo e dos nossos sentidos? É plausível romper a inércia, a solidão, a opacidade e o estranhamento passivo da nossa condição urbana? Ou seja, deixarmos o estado blasé, como na encarnação da ideologia da “metrópole moderna” descrita no livro Metrópole e a Vida Mental, do alemão George Simmel?
Talvez essa seja a pergunta que a Mostra queira nos sugerir, pois não basta elaborar teorias sem entender como as políticas inclusivas e o projeto da cidade pública, podem ser uma realidade no cenário de caos que estamos vivenciando.Cabe-nos, portanto, definir abordagens críticas para questionar todos os aspectos e todas as dimensões da sociedade, para entendermos qual é a dimensão política de nossa profissão.
* Parte dessa reflexão foi apresentada na X Semana de Arquitetura de Presidente Prudente – 2016. Agradecemos à Cité de l'Architecture et du Patrimoine pela disponibilização das imagens.
Adalberto Retto Júnior é professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP - Bauru. Com doutorado na FAU USP e no Departamento de História do Istituto Universitario di Architettura di Venezia - IT.