Sobre os concursos de arquitetura no Brasil e a deprimente ausência de inovação / Héctor Vigliecca

Temos um histórico reconhecido de participações em concursos, mais de 100! Em 40 anos de atuação profissional foram 53 prêmios, que prefiro não recontar, e apenas dois projetos construídos...

Nós nunca comentamos os resultados, nem fazemos críticas sobre os resultados, mas hoje decidi romper este silêncio, possivelmente alentado pelos últimos artigos publicados sobre o assunto.

Nunca comentamos os resultados porque entendemos que os concursos são uma atividade humana de confrontação intelectual, portanto susceptível a erros, incompreensões, disputas e, às vezes, até à ignorância.

Mas é preciso reconhecer que resultados inovadores precisam de participantes inovadores, júris com mentalidade inovadora e, principalmente, precisamos de um âmbito cultural inovador, isso implica universidades, escolas, empreendedores, políticos e políticas inovadoras.

Um âmbito inovador só acontece quando as condições sociais, políticas, econômicas e culturais de um país se apresentam como incentivadores das transformações, algo que, na situação atual, estamos longe, aliás, muito longe de alcançar.

Entendo como âmbito transformador aquele em que não se dá lugar a realidades lidas literalmente, mas sim ao jogo da interpretação e, portanto, à criatividade.

Sem dúvida, para um bom observador, se percebe uma certa desistência, uma apatia, até uma falta de interesse em arriscar uma virada, inclusive constatamos ainda até com uma triste sensação de derrota essa ausência completa de conteúdo e de raciocínio transformador.

Os trabalhos são certinhos, sem dúvida, sempre certinhos com essa insistência na linguagem modernista extremamente melificada, repetitiva e às vezes, reacionária.    

Todos, absolutamente todosos concursos realizados nesses últimos anos e, principalmente os de habitação, nos editais se solicitam soluções “criativas e inovadoras”, mas  pareceria que todos os participantes junto com o júri comungam de uma unanimidade: (como se expõe no artigo de Federico Costa e outros): “tentar legitimar um tipo recorrente que retoma as características modernas e nos leva a crer que existe apenas um jeito de se fazer arquitetura” (1).

Mas aqui é interessante destacar essa insistência da “gênesis” modernista através da primazia do objeto arquitetônico e seus valores estéticos próprios, prevalecendo isso de modo hegemônico na execução dos projetos e nas suas avaliações críticas.

Não resisto exemplificar alguns casos que mostram este estado catatônico em quem nos encontramos.

No concurso do IAB-CAU se solicitava especificamente e insistentemente a configuração de dois prédios diferentes e bem identificados atuando no mesmo lote: “Por fim, e especialmente importante, é determinante que o conjunto edificado reflita e preserve a independência e a identidade corporativa de cada instituição”. Pagina 33 do Termo de Referência.

Todos os participantes, inclusive os premiados, fizeram um prédio único e quase ridiculamente similar aos projetos de todos os outros participantes!!! Ou seja: se subverte uma condição especialmente importante do programa para colocar valores estético-volumétricos como prioridade.

Assim, obviamente, é difícil entender as razões para as premiações, sempre defendidas por adjetivos isolados, vazios e subjetivos.

No mesmo artigo citado acima se indaga:

Os projetos devem respeitar o edital na íntegra ou cabe aos participantes questiona-los e propor soluções baseadas no que o participante acredita” !! (1)

Essa indagação não é pertinente. Obviamente o participante deve aceitar e respeitar o edital, esta é definitivamente a regra do jogo, e é aqui onde sempre sou mal interpretado quando afirmo que temos que fugir pelas frestas abertas do texto. Isso significa que temos que entender de uma vez por todas que os editais são bases e o nosso trabalho é interpretar criativamente as solicitações, não questioná-las.   

Acho que os júris não são uma classe à parte que só conseguem ver o mundo com as mesmas referências e condicionantes que os participantes. Nem os resultados são de sua exclusiva responsabilidade. Todos somos responsáveis por esses curiosos resultados.  

De qualquer modo, entendo que o júri não faz, nem deve fazer, um trabalho burocrático de riscar quadradinhos certos e errados. O júri tem a liberdade e a obrigação de analisar a abordagem do tema e desentranhar os “saltos de interpretação” (4) que um participante elabora.

Não é através da mudança na maneira de julgar os concursos de arquitetura que vamos melhorar a instabilidade de nossa condição atual.

O IAB cumpriu com louvor o seu papel quando refez a estrutura dos editais de um concurso de modo extremamente competente e prático ao exigir apresentações pelo meio virtual, diminuindo assim custos e tempo de envio etc. e facilitando também o próprio trabalho do júri.

Mas somos conscientes de que não é mudando os editais ou diversificando o júri que se muda a qualidade da arquitetura, assim como não é, como aumento das regras e restrições, como no caso da CEF, que se melhoram os projetos.

Finalmente temos que aceitar que estamos atravessando “uma crise social, democrática, geopolítica e ecológica que, no seu conjunto, configuram uma crise de civilização” (5), este cenário onde aparentemente é difícil vislumbrar novas ideias é justamente o momento que devemos abrir novas perspectivas para uma transformação insuspeita, pois não podemos nos desprender da consciência do privilégio e da imensa responsabilidade de nossa profissão na ‘construção’ de novas realidades que nos impõe o dever de gerar sabedoria. E neste longo percurso de atuação profissional, continuamos insistindo no caminho de acreditar no projeto como o próprio instrumento de investigação. (6)

Referências:
(1) Referência ao excelente e inédito artigo publicado no ArchDaily “Perspectivas do Chão”: Novos olhares para os concursos de projeto de arquitetura no Brasil, de autoria de Federico Costa, Lea Gejer, Luis Fernando Milan e Maira Barros. (link)
(2) Francisco Segnini Junior; Concursos de projetos arquitetônicos no Brasil. Questões para discussão. (link)
(3) Héctor Vigliecca; Concurso: uma ginastica intelectual. Espaço & Critica. Boletim do IAB nº 31 Nov/Dez 2002
(4) Os saberes na competência de Le Boterf. Avaliação e Sociedade. A negociação como caminho. Págs. 283, 284. Robinson Moreira Tenório; Marcos Antônio Vieira. EDUFBA
(5) Gustave Massiabh: Uma estratégia Altermundialista. CI Capital Intelectual.
(6) Agora é o momento que não podemos esquecer o temperamento de Le Corbusier, que em plena ocupação da França na Segunda Guerra Mundial elaborou um dos mais importantes raciocínios matemáticos e teóricos para a arquitetura, El Modulor, em vista de uma futura e possivelmente improvável reconstrução europeia, sem em nenhum instante, num exercício de abstração e concentração intelectual surpreendente, fazer referência ao momento terrível sobre a qual Europa estava passando.

Sobre este autor
Cita: Héctor Vigliecca. "Sobre os concursos de arquitetura no Brasil e a deprimente ausência de inovação / Héctor Vigliecca" 17 Jul 2017. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/875906/sobre-os-concursos-de-arquitetura-no-brasil-e-a-deprimente-ausencia-de-inovacao-hector-vigliecca> ISSN 0719-8906

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