Todo imóvel possui um potencial construtivo definido através de parâmetros urbanísticos específicos de cada zona, conforme a Lei de Zoneamento de cada município. Um imóvel tombado, devido às restrições estabelecidas pelo seu tombamento, pode não conseguir usufruir de todo o seu potencial construtivo previsto em lei. Sendo assim, a Transferência do Direito de Construir (TDC) consiste na permissão dada aos proprietários desses imóveis em vender seu potencial construtivo para outros imóveis da cidade.
No Brasil, o primeiro documento que trata desse tema é a “Carta de Embu”, proposta pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Administração Municipal (CEPAM), publicada em 1976. Esta carta aborda o conceito de Solo Criado iniciando a ideia de que para edificar além do potencial básico do terreno o proprietário estaria sujeito ao pagamento de uma contrapartida financeira ao poder público, assim como funciona o instrumento da Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC). Além disso, esse documento também já previa a possibilidade de os proprietários de imóveis tombados venderem o seu direito de construir.
Entretanto, a aplicação da OODC e da TDC, só foi prevista em lei no âmbito federal em 2001 através do Estatuto da Cidade (Lei Federal Nº 10.257/01), como instrumentos a serem adotados pela política urbana do planejamento municipal. No caso do município de São Paulo, o emprego da TDC já havia sido previsto desde 1984, quando foi aprovada a Lei Municipal Nº 9.725/84, que dispunha sobre o uso da transferência de potencial construtivo de imóveis preservados enquadrados como Z8-200.
A TDC possui várias finalidades definidas pelo Estatuto da Cidade, abrangendo outras questões do planejamento urbano além da preservação de imóveis de interesse histórico e cultural. Esse instrumento também pode ser empregado para a implantação de programas de regularização fundiária, para a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda com a provisão de habitação de interesse social e para a implantação de equipamentos urbanos e comunitários. A partir do novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE - Lei Municipal Nº 16.050/14), a TDC também pode ser utilizada para a execução de melhoramentos viários para a implantação de corredores de ônibus, para a implantação de parques planejados urbanos e para promover a preservação de áreas de interesse ambiental, enquadradas nas Zonas Especiais de Proteção Ambiental (ZEPAM).
Atualmente em São Paulo, no caso da conservação de bens culturais, podem transferir potencial construtivo os imóveis enquadrados nas Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPEC), classificados nas categorias Bens Imóveis Representativos (BIR) e Área de Proteção Cultural (APC). A área passível de receber esse potencial construtivo passou a envolver todos os imóveis com Coeficiente de Aproveitamento Máximo maior do que um (1), resultando em quase toda a Macrozona Urbana do município e não apenas as áreas ao longo dos eixos de transporte público de massa e no entorno das estações de trem e metrô, como era previsto na Lei de Zoneamento de 2004.
Também a partir do novo PDE, a conservação do imóvel tombado e o plano de manutenção a ser adotado por ele passam a serem fatores condicionantes para que a transferência de potencial construtivo seja efetuada. Sendo assim, para que um imóvel tombado possa se utilizar da TDC ele necessita, obrigatoriamente, da anuência do órgão municipal de preservação.
Com isso, foi aprovada no ano seguinte a Resolução 23/CONPRESP/2015, considerando a necessidade de regrar as medidas de restauro ou de conservação a serem adotadas pelos proprietários e ordenar como seriam verificadas as condições de conservação e preservação do imóvel tombado que ceder potencial construtivo.
As disposições do PDE associadas à Resolução do CONPRESP resultaram num conjunto de regramentos que vinculou a obtenção de recursos através da TDC à aplicação em ações de preservação do patrimônio histórico para a contratação de projetos de intervenção, execução de obras de restauro e mesmo no investimento para a manutenção permanente do imóvel, tornando esse instrumento um importante aliado na tutela dos edifícios de valor histórico e cultural paulistanos.
Contudo, para que se alcance uma situação permanente de conservação e manutenção dos imóveis tombados, é necessário compreender que a TDC é um instrumento findável, tendo em vista que uma vez esgotado o estoque de potencial construtivo do imóvel, não são permitidas novas transferências. Dessa forma, os órgãos de Urbanismo e da Cultura têm considerado a sua utilização como um estímulo à execução das custosas obras de restauro.
Junto com a execução dessas obras, é preciso que sejam desenvolvidas ações de educação patrimonial visando demonstrar aos proprietários desses imóveis como proceder de maneira adequada com a manutenção e conservação do seu imóvel tombado recém-restaurado, demonstrando que as tarefas de manutenção periódica são muito mais simples e baratas do que a realização de uma grande intervenção de restauro.
Sendo assim, a aplicação da TDC deve ser vista como mais uma peça dentro do conjunto de ações de tutela do patrimônio e deve ser articulada com outros instrumentos de modo a estruturar uma política de proteção e valorização dos bens históricos e culturais da cidade.
Penha Pacca é arquiteta urbanista formada pelo Mackenzie, com mestrado em Geografia Urbana pela FFLCH – USP e doutora em Planejamento Urbano pela FAU- USP. Trabalha há 38 na Prefeitura Municipal de São Paulo na Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento no Departamento de Uso do Solo (SMUL-DEUSO). É diretora da Divisão de Monitoramento do Uso do Solo, divisão responsável pelo monitoramento das Zonas Especiais de Proteção Cultural (ZEPEC) e dos instrumentos urbanísticos Outorga Onerosa do Direito de Construir e Transferência do Direito de Construir.
Flávia Peretto é arquiteta urbanista formada pela FAUUSP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, integrante do programa de Pós-Graduação em Gestão e Prática de Obras de Conservação e Restauro do Patrimônio Cultural da Universidade Federal do Pernambuco. Trabalha na Prefeitura Municipal de São Paulo na Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento no Departamento de Uso do Solo (SMUL-DEUSO), Divisão de Monitoramento do Uso do Solo. É representante da SMUL no Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), na Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU) e na Comissão Técnica de Análise de ZEPEC-APC.