Por muitas décadas, fumar representou status, charme e elegância, sendo o cigarro objeto do desejo de inúmeras gerações. Ao perceber que aproximadamente 25% da população brasileira era fumante, o Ministério da Saúde impôs, em 2002, que os representantes das marcas de cigarro adicionassem mensagens de advertência sobre as substâncias tóxicas presentes no produto e suas graves consequências à saúde. Dez anos depois da medida, essa taxa já havia baixado para 15% da população.
Mas o que isso tem a ver com os automóveis?
Diversos especialistas já afirmaram: os carros são o novo cigarro.
Assim como aconteceu com o cigarro no passado, hoje o carro é símbolo de status, objeto visto como indispensável à vida nas cidades brasileiras. Porém, seus riscos à saúde são pouco debatidos e menosprezados, já que observa-se a presença cada vez maior de veículos nas ruas por todo o Brasil. De acordo com o Observatório das Metrópoles, entre 2001 e 2014 a taxa de motorização no Brasil aumentou de 14,4 para 28,1 automóveis a cada 100 habitantes, um aumento de 95% em 15 anos. Já as Regiões Metropolitanas tiveram no mesmo período uma variação de 20,1 para 35,4 automóveis a cada 100 habitantes, aumento de 76%.
Tanto o cigarro quanto o carro causam dependência e possuem indústrias poderosas que defendem seu uso como escolhas individuais sob slogans que exploram o conceito de “liberdade” e tentam omitir seus riscos. A dependência do carro é um dos fatores que agrava tanto a epidemia de obesidade quanto mudanças climáticas, e é sustentada por tendências culturais tais como o aumento do consumismo e individualismo.
Cigarro e Automóvel*
SIMILARIDADES
- Ambos são defendidos como escolhas individuais e/ou direitos;
- Nem fumar nem o uso do carro são escolhas individuais verdadeiramente livres;
- Ambos afetam diretamente a própria saúde e saúde dos outros;
- Políticas para limitá-los são combatidas por um poderoso lobby;
- Ambos utilizam estratégias de marketing para aumentar e manter seu uso;
- Ambos utilizam lobistas profissionais e organizações de fachada para garantir seus privilégios;
- Ambos os lobbies usam o termo "Estado-babá" para atacar medidas para restringir o fumo e as velocidades máximas nas vias;
- Ambas indústrias têm procurado desacreditar provas sobre os danos causados pelos seus produtos, muitas vezes usando "especialistas" pagos para fazê-lo.
DIFERENÇAS
- Enquanto o cigarro prejudica indivíduos, os carros têm maiores externalidades, prejudicando a comunidade em geral e a sustentabilidade global;
- Enquanto a dependência do tabaco é um vício fisiológico, a dependência do automóvel é social;
- Diferentemente do cigarro, possuir um carro pode trazer em alguns casos benefícios individuais e econômicos, como um melhor acesso à cidade (emprego, serviços e facilidades);
- Diferentemente do cigarro, a posse de um carro traz, de início, benefícios individuais. Porém, esse benefício diminui conforme outros fazem a mesma escolha, minando a vantagem de cada um;
- Enquanto no cigarro o primeiro passo para resolver o problema é o indivíduo admitir a dependência e se comprometer a mudar, com o carro é a sociedade como um todo, além da dependência individual;
- No caso do cigarro, a dificuldade para voltar atrás é o vício e a dependência, enquanto que com o carro a dificuldade pode ser fazer outras escolhas para o deslocamento diário.
*Fonte: Margaret J. Douglas, Stephen J. Watkins, Dermot R. Gorman and Martin Higgins. Are cars the new tobacco?
Diversas medidas podem ser adotadas com o objetivo de alertar sobre os riscos à saúde ao se adquirir um automóvel. A partir disso, foi lançada a campanha Cidade Ativa Adverte, criada pela organização Cidade Ativa, a fim de incentivar a presença de mensagens de advertência nos automóveis inspiradas nas embalagens de cigarro através de uma série de adesivos que podem ser colados nos veículos e que comunicam esses alertas à saúde.
A campanha inspira a ideia de que um dia os carros saiam de fábrica com dispositivos que nos lembrem de todos os riscos à saúde que eles nos trazem - fatos que normalmente não nos passam pela cabeça no dia-a-dia, assim como foi feito com os cigarros.
A disseminação dos riscos à saúde associados ao carro é essencial para desestimular o uso de automóveis nas cidades do Brasil. É importante mudarmos a visão de que é necessário ter um carro para ser mais feliz e bem sucedido, de que ele trará maior independência e conforto nos deslocamentos. Em grande parte das viagens isso não é verdade e os efeitos colaterais para cada indivíduo e principalmente para a sociedade como um todo são muito prejudiciais à saúde das pessoas e das cidades.
A série de adesivos trata de quatro temas: poluição, sedentarismo, estresse e lesões por colisão. Neles, dados científicos embasam os alertas à saúde de maneira criativa e divertida.
Poluição
Todo ano, 22 mil brasileiros morrem prematuramente, em média, por exposição a poluentes, e o carro é um dos grandes responsáveis. De acordo com estudos do Dr. Paulo Saldiva, o ar de São Paulo recebe anualmente cerca de 3 milhões de toneladas de poluentes, sendo 90% deles emitidos por gases dos veículos automotores. Além disso, uma pesquisa realizada em Londres revelou que motoristas são os que ficam expostos à maior quantidade de poluição porque absorvem a fumaça produzida pelo veículo da frente, que fica presa dentro dos veículos.
Sedentarismo
Nas últimas décadas houveram grandes mudanças nos estilos de vida dos brasileiros. Muitas pessoas começaram a se deslocar em automóveis, se mudaram para locais afastados do trabalho e passaram a realizar trajetos diários maiores. O aumento no uso do automóvel gerou hábitos poucos saudáveis, já que esta rotina faz com que pessoas se desloquem menos a pé, e os números comprovam as consequências: hoje, mais de 50% dos brasileiros está acima do peso. Tanto o sedentarismo quanto o sobrepeso são gatilhos para doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão, entre outras.
Estresse
Enfrentar diariamente o trânsito nas cidades brasileiras é muitas vezes a causa do estresse de motoristas. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Psicologia e Controle do Stress revelou que é comum encontrar em pessoas já diagnosticadas com estresse outras doenças relacionadas como ansiedade, depressão, pânico, gastrite e asma ou outra doença respiratória. Além disso, especialistas afirmam que o estresse em excesso também eleva a pressão arterial e a frequência cardíaca. Uma maneira de promover a diminuição do estresse é a prática de atividade física, que pode ser realizada nos deslocamentos diários a pé ou de bicicleta.
Lesões por Colisão
O uso do termo “acidente” é refutado pela Organização Mundial da Saúde por transmitir a ideia de algo inevitável e imprevisível, fazendo com que essas mortes e danos sejam invisibilizadas e não consideradas no orçamento dos agentes responsáveis pela segurança viária, por exemplo. Diversas organizações que tratam do tema estão adotando termos como “mortes e lesões no trânsito” a fim de transmitir a mensagem de que esses eventos podem e devem ser evitados.
Segundo o Ministério da Saúde, 45 mil pessoas morrem todos os anos por envolvimento em colisões de carro. Dentro desse número, aproximadamente 20 mil pessoas são mortas por atropelamento. Além dos números alarmantes de fatalidades, há ainda consequências na economia e no sistema de saúde no país, já que pessoas que sofreram lesões ocasionadas por veículos automotores ocupam 55% dos leitos hospitalares e cada vítima não fatal custa R$ 90.000,00 para o governo. Além disso, o medo de atropelamentos acaba sendo razão comum para proibir crianças de brincarem do lado de fora e escolher o carro como meio de transporte até a escola.
Apesar de todos os argumentos, muitos podem alegar que as cidades, hoje, não nos oferecem alternativas ao transporte individual motorizado: muitos bairros, ou quase cidades inteiras, foram planejadas para os carros no Brasil, com modelos de urbanização equivocados e, ainda por cima, com muitos subsídios à indústria automobilística. No entanto, algumas cidades já têm focado esforços em diversificar as opções de transporte e precisamos estar abertos para vislumbrar essas novas possibilidades. O entendimento é que apenas cidadãos conscientizados serão capazes de cobrar gestores por esta mudança de paradigma em futuros projetos e investimentos para as cidades.
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A organização Cidade Ativa nos apresenta um artigo por mês. Veja todos aqui.