Ah, a urb!... O vaivém nas ruas, o signo pulsante da modernidade, o espaço público por excelência. No início do século XX, João do Rio, o cronista marginal, fez um inventário dos “tipos” que circulavam pela cidade em A alma encantadora das Ruas, um clássico nacional. Mais do que um livro sobre crônicas de costumes, a obra retrata as transformações urbanas que o Rio sofria no momento de autoestima elevada da Belle Époque, quando despontava como capital da república nascente.
Nos mais de 100 anos que nos separam daquelas reflexões, as ruas do Rio de Janeiro e de todo o mundo viveram mudanças cruciais, que reorientaram a cultura, a política e a economia urbana. As cidades contemporâneas são um amálgama de um processo histórico marcado pelo êxodo rural e pelo fascínio da modernidade. O século XX nos deixou como legado cidades hostis e gigantescas manchas urbanas com desequilíbrios territoriais e dramas humanos de todos os tipos.
Olhar para trás e compreender essas transformações é tão fundamental quanto, neste momento, treinar o olhar para identificar oportunidades de mudanças na forma como nossas sociedades definem prioridades para o usufruto coletivo da cidade.
Crônicas e poesias continuam absolutamente necessárias para tocar nossas almas, mas é hora da gestão das grandes cidades serem tocadas pela realidade: o modo como vivemos nos meios urbanos alcançou um patamar insustentável. Encarar o problema e encontrar meios para revertê-lo passa pelo resgate da possibilidade de caminhar e, mais que isso, do prazer de flanar pela cidade. Como João do Rio, conhecer os tipos e costumes que nela habitam - a pé.
Foi neste esforço de unir diversas vozes engajadas na construção de cidades caminháveis que organizei, juntamente com o arquiteto e urbanista Victor Andrade, do LABMOB/UFRJ, o livro Cidades de Pedestres - a caminhabilidade no Brasil e no mundo. O livro reúne artigos inéditos de autores que têm se debruçado sobre medidas de pedestrianização e proposto alternativas viáveis à lógica de segregação que conhecemos tão bem.
Caminhar é uma forma de se reconectar com o espaço físico e, principalmente, com o espaço social que nos cerca. A escolha de uma mobilidade que nos transporta isolados do mundo, como indivíduos encapsulados que não se relacionam com a vida lá fora não deve prevalecer. Não podemos continuar privilegiando o privado em detrimento do público, enquanto políticas mal orientadas maltratam nossos sonhos de vivermos em cidades mais equitativas e mais democráticas e, sobretudo, de construirmos um futuro possível, respirável, caminhável. O caminho é longo. É urgente darmos o primeiro passo.