Apresentamos a seguir uma entrevista com o arquiteto e curador português, Pedro Gadanho, realizada pela arquiteta e pesquisadora Carol Farias. Na conversa, discutem temas como urbanismo tático, utopias e curadoria ativista, temas abordados em exposições realizadas pelo curador em Nova Iorque e Lisboa.
Carol Farias - Gostaria que você falasse um pouco sobre 'curadoria ativista' e 'exposição manifesto', termos encontrados no material das exposições "Uneven Growth - Tatical Urbanism for expanding mega cities", realizada entre 2014 e 2015 no MoMA, e "Utopia / Distopia", realizada em 2017 no MAAT, enquanto contribuição para o pensamento e para o fazer no campo da arquitetura e urbanismo.
Pedro Gadanho - Talvez o fato de eu ser um curador com origem na prática, e no fato de já ter atuado como arquiteto, tenha sempre levado a curadoria mais como uma forma de divulgação e reflexão do que propriamente um exercício mais alinhado com a tradição da história da arte. Uma coisa que se vê muito na curadoria da arte é a observação da obra do artista, recuperar a história do artista, e contribuir de algum modo através da curadoria para elaborar interpretações e leituras sobre a obra de certos artistas. O fato de eu ter vindo do campo da arquitetura levou-me sempre a olhar mais para o campo da curadoria como uma forma de não só fazer uma divulgação para um outro público mais alargado dos temas e problemas da arquitetura, mas também no fundo, encarar a curadoria como uma possibilidade de refletir sobre aquilo que está a ser produzido. E no fundo será daí que acabo por chegar a uma posição em que fazer uma exposição não era só a possibilidade de pesquisar um determinado assunto ou um determinado tema, mas também de assumir uma posição política sobre o assunto, a partir das escolhas que se fazem, a partir dos trabalhos que seleciono para estar na exposição e a partir do pressuposto de que a comunicação e o debate em torno da exposição permitirá aprofundar certas perspectivas. Portanto, digamos que parto de uma perspectiva não tanto de assumir fazer uma exposição de arte a contemplar certo produto ou certa ideia, uma certa produção mas sim problematizá-la e colocá-la em questão. Nesse sentido, tenho de fato defendido que o museu pode caminhar para esse papel, participando mais do debate dos temas que vão sendo, de certo modo, a transformação social da sociedade e do mundo à nossa volta. Portanto, nesse sentido, mais do que meios para promover uma contemplação mais passiva, os museus podem de fato escolher temas que são problemáticos e depois expô-los de modo a participarem de um debate mais alargado que decorre entre outros atores que interveem nas cidades, desde os políticos até aqueles que fazem práticas do cotidiano.
CF - Inclusive com outras atividades que não só expositivas, mas workshops e outras formas de envolver as pessoas nesses temas trazidos pelo museu, não é?
PG - Sim, sem dúvida, os setores e departamentos educativos dos museus são muito importantes. Não só para criar aquilo que pode se chamar de 'o cultivo' da ida ao museu, normalmente entre públicos mais jovens, mas também exatamente trazer para o espaço do museu aquilo que às vezes acontece em circuitos mais fechados como em universidades etc., mas que é um debate público, que pode partir dos conteúdos das exposições ou entrar em direto diálogo com essas exposições. Foi o caso de quando fizemos a [exposição] Utopia/ Distopia aqui no MAAT, de criar a Conferência Internacional Post-Internet Cities que no fundo lidava também com essa ideia de como é que a utopia e a distopia se expressam no contexto urbano, no contexto da transformação urbana, e como isso é afetado por uma tecnologia específica que é a introdução da internet – que tinha originado no campo da arte toda uma área de atividade denominada ‘pós internet’. Portanto, para além da exposição e para além desses programas educativos, existe também o fato de essas exposições - que nós assumimos como 'manifestos' relativos a um certo tema a partir do trabalho de artistas e de arquitetos - gerarem um diálogo que não se vê assim tanto. Existem depois os catálogos que são mais entendidos, por exemplo no caso da exposição Utopia/ Distopia, como uma espécie de reader ou livro que acompanham com outras reflexões ensaístas, de escritores etc., aquilo que são os conteúdos da exposição. O catálogo, obviamente, é uma peça que fica durante mais tempo. Não é uma peça que, quanto a mim, tenha que servir estritamente para representar os conteúdos daquilo que é apresentado como o texto e a proposta curatorial da instituição, mas sim como abertura para um campo de reflexão mais vasto, a partir de outros contributos neste âmbito. Não tem tanto a ver com leituras da exposição, mas sim com outros pontos de vista sobre o tema que está a ser pesquisado através da exposição. Desde muito cedo para mim, aliás, vi as exposições como uma espécie de forma de pesquisa para chegar a publicações que permanecem com outro impacto ao longo do tempo, e que oferecem contributos que podem ser revisitados com muito mais detalhe. E, portanto, todos esses três formatos são para mim essenciais para promover essa ideia que o museu pode ser um agente de debate. Pode ser um debate através de um contato direto com a instituição, um debate através da realização de conferências ou conversas que aportam outras perspectivas sobre o assunto, e ainda um debate mais prolongado no tempo, que passa por deixar um contributo de reflexão sobre um tema específico.
CF - A propósito da exposição "Uneven Growth - Tatical Urbanism for expanding mega cities", no MoMA, que abordou o urbanismo tático enquanto alternativa à rigidez do planeamento, enquanto alternativa às políticas neoliberais que oprimem as cidades e os habitantes: de que forma você acha que o urbanismo tático é de fato essa alternativa, como você vê essas práticas enfrentando o neoliberalismo hoje?
PG - Bem, devo começar por contextualizar que a exposição surgia num ciclo que abrigava os grandes temas da contemporaneidade e sua relação com o campo da arquitetura. Um dos primeiros temas, por exemplo, foi as alterações climáticas e a subida das águas, portanto era uma exposição que lidava com temas de quase catástrofe, de como é que podíamos começar a lidar com esses aspectos de catástrofe. Para mim foi importante afirmar que a desigualdade social nas cidades – e as formas como as cidades tem vindo a evoluir nos últimos 20, 30 anos com o crescimento frequente das populações em contextos de grande pobreza e informalidade – tinha para mim aspectos que eram tão potencialmente catastróficos como os efeitos das alterações climáticas. Ou seja, num futuro próximo as desigualdades sociais podiam originar uma situação de catástrofe social muito aproximada àquela que pode derivar da subida do nível das águas etc. O que quer dizer que o tema era mais abrangente, no sentido de contemplar as tradições de evolução na cidade nos próximos anos, lançando questões como o pensar como se lida com o crescimento das culturas informais ou como é que se lida com a questão da desigualdade social e econômica no contexto urbano. É nesse sentido que se questiona a possibilidade de o planeamento top down, a partir de cima e a partir de diretivas políticas ou institucionais, conseguir resolver esses problemas – porque, obviamente, parece não estar a conseguir resolvê-los. E também se questiona se o planeamento típico do início do século XX - quando também houve um grande crescimento populacional informal nas grandes cidades europeias, que eventualmente foi dominado à custa do desenvolvimento industrial, com a eliminação de favelas, etc. – seria agora capaz de atender à dimensão e a escala desses novos focos de informalidade na megacidade atual. A estas questões aliava-se a percepção de que, no campo da arquitetura, tem havido uma série de movimentações denominadas por urbanismo tático, que vão contra a lógica desse planeamento exclusivamente top down. Mas também podemos falar de ações exercidas juntos da comunidade, ações como as que, no Brasil dos anos 70/80, começaram a identificar os problemas da favela, não necessariamente para os erradicar, mas para os tratar. Portanto existe toda uma outra abordagem, ou um tipo diferente de planeamento, que de fato não lida apenas com as questões mais evidentes da organização da cidade formal, mas que começa a lidar com as características da cidade informal. E, portanto, foi natural pensar, não sendo uma resposta suficiente, o urbanismo tático era uma resposta que se poderia aliar à lógica tradicional do planeamento top down, do planeamento que vem de cima – que tem que continuar a existir ao nível da macro escala, ao nível da presença do Estado para solucionar certos problemas básicos. Ou seja, não havia tanto uma ideia de apresentar o urbanismo tático como uma alternativa, mas sim como um elemento que se pode conjugar com o urbanismo clássico, que trata das escalas territoriais mais vastas e que tem uma capacidade política de representar o Estado nessas situações. Percebe-se, nesse sentido, que o urbanismo tático é frequentemente uma espécie de substituição ao Estado, quando o Estado não tem a capacidade de resposta às necessidades mais diretas das pessoas. E isso pode ser problemático. Nesse sentido, sou sempre cauteloso a afirmar que o urbanismo tático não representa uma solução exclusiva, mas pode ser uma perspectiva que altera o modo como o planeamento e o urbanismo top down se comportam e lidam com as várias escalas e situações presentes nas grandes cidades contemporâneas. Assim, o que foi pedido aos arquitetos foi que, entre equipes locais e equipes de fora, pensassem cenários futuros em que se pudesse alinhar o conhecimento disciplinar próprio da arquitetura e do urbanismo que eles detêm – afinal, eles são planeadores, e agem de forma top down - com essas novas tendências de ligação à comunidade, de planeamento bottom up, dos urban grassroot movements, etc. No fundo, encomendou-se a arquitetos que, quer do ponto de vista mais local, quer do ponto de vista da apreciação de questões mais globais, criassem cenários em que o seu papel ia ao encontro da conjugação dessas duas forças e modos de pensar e intervencionar a cidade. Deste modo, eles traziam não só o seu conhecimento de planeamento, como também a sua percepção do tipo de ações que estavam a ter lugar nesse momento, iniciada por grupos de artistas, grupos de líderes comunitários, mas também grupos de arquitetos mais jovens etc. Tratava-se no fundo de agarrar energia desses movimentos espontâneos e pensar como é que, no futuro, eles poderiam estar mais articulados com os fenômenos top down, com o impacto de novas tecnologias e, no fundo, com aquilo que são as novas ferramentas digitais e sociais à disposição desses grupos, por modo a enfrentarem a escala de problemas que se afigura nesses grandes conglomerados urbanos.
CF - Essa exposição foi realizada entre 2014 e 2015, num momento de grande explosão dos chamados 'urbanismos táticos', desse movimento. De lá para cá, esse tipo de ação tem crescido e espalhado mais pelo mundo. Mas, no entanto, já olhando para os desafios desse urbanismo tático, uma considerável quantidade dessas ações e projetos - alguns deles bem famosos como os parklets, e a tendência de pedestreanização de ruas com objetivo no fundo muito mais turístico do que outra coisa, a vida urbana que vai se fazendo mais através de eventos do que com políticas realmente duradouras - tem entrado na moda e tem servido consequentemente aos interesses dos gestores públicos e do grande capital. Como você vê essa fragilidade do urbanismo tático?
PG – Em primeiro lugar, para mim, uma das coisas que as várias pesquisas presentes na exposição revelaram foi a existência – de um ponto de vista, se quisermos, político – de tendências muito diferentes dentro daquilo se chama urbanismo tático. O urbanismo tático com origem nos EUA é diferente do urbanismo tático que surgiu na Europa em certos contextos, nomeadamente da intervenção cultural, bem como o que emerge na América Latina ou na Ásia. Estes últimos surgem de forma mais directa a responder a questões muito mais prementes. Portanto, só aí teríamos 3 versões diferentes para cidades com características de desenvolvimento bastante díspares. Para mim, tornou-se mais claro que a versão que se impõe nos EUA é aquela que mais depressa alinha com uma lógica capitalista, de aproveitar certos espaços que não estavam a ser utilizados ao seu máximo potencial ou que estavam sendo utilizados só para determinado fito econômico, e que depois rapidamente são apropriados para outros tipos de fitos. No caso dos famosos parklets – mini-parques temporários em lugares de estacionamento – estes perdem o rendimento econômico daquele lugar de estacionamento, mas, de certo modo, passam a dinamizar e activar o lado comercial da cidade de uma forma nova. Substituem uma forma de capitalismo por outra. Portando há nesses casos uma leitura comercial que o torna muita mais apropriável para uma lógica econômica alternativa, mas ao mesmo tempo muito semelhante àquela que já está no lugar. Isso é um exemplo que representa o tipo de apropriação a que o urbanismo tático pode ser sujeito. Já na arena cultural, ou mesmo numa arena de estrita necessidade, as intervenções tácticas são maioritariamente feitas por grupos organizados que provêm de uma certa cultura de desenho ou uma certa cultura de participação cívica etc. Porém, o que pode acontecer nesse caso é que muito rapidamente as cidades e as autoridades se apercebem do potencial dessa ação para dar uma resposta temporária a problemas que não conseguiam resolver. E aí, digamos que deparamos com um outro problema, uma forma de apropriação mais sutil – que permite ao Estado adiar as suas responsabilidades sob a aparência de uma ação ‘participativa’ vista com bons olhos. A apropriação desse tipo de ações por parte das autoridades – que passa, p.ex., por contratarem os próprios grupos que fazem ações de urbanismo tático, promovendo uma atividade cultural que dá uma resposta ‘festiva’ a certas necessidades urbanas – permite-lhes adiar um problema estrutural, ilibando-os de responder realmente às questões das suas cidades que estavam ali em questão. Isso é problemático. Mas também podemos advogar o contrário: se nem essa ação temporária fosse tomada, o problema nem sequer estava sendo evidenciado. E provavelmente não estaria a ser endereçado de qualquer modo, porque, em muitos casos, na sequência da crise financeira de 2008, essas autoridades não tinham de todo os recursos para resolver o problema. Portanto, temos que ser um pouco mais finos na análise dessa questão e desse equilíbrio pensando que a ação temporária, não sendo a solução ideal, pelo menos pode ser realmente não só uma resposta que cria o empoderamento daquelas comunidades – porque chama atenção para os seus problemas e lhes dá parte do papel de responder aos problemas – como também, no fundo, permite lançar o debate que se sobrepõe a esses problemas, torná-los mais visíveis e oferecer algum tipo de resposta a caminho de uma resposta ideal. A questão obviamente que se coloca é se haverá ou não uma resposta ideal, de um ponto de vista de um plano de ação mais amplo, na sequência desse alerta. Assim, vejo nesses projetos um papel importante de alerta, mas apenas se mantivermos uma perspectiva crítica de não os ver como a solução, mas apenas como um passo para uma solução que tem que englobar vários atores urbanos, incluindo as próprias populações. Por esta razão não me preocupa tanto a ‘apropriação’, porque essa apropriação pode ter vantagens para essas comunidades que, de outro modo, e por serem desfavorecidos ou excluídos, muito provavelmente não teriam tido qualquer tipo de atenção. Não me preocupa essa ‘apropriação’, que evoca uma leitura politizada, muito clássica, do Theodor Adorno, que afirma que qualquer apropriação destrói de imediato o propósito político da ação original. Não acho que temos que ver as coisas tão a preto e branco. Mas, de fato, tem que ser entendido que esse urbanismo tático é só um passo para ajudar a colocar os problemas no centro do debate e a começar a perspectivar soluções que contam com a participação da população. Penso que estes dispositivos poderão ser positivos, desde que mostrem a consciência mínima de que não vão responder a todos os problemas, e de que tem que entrar numa lógica de colaboração e de diálogo com as autoridades e o planeamento top down – desde logo percebendo que esse ‘lado’ está interessado em apropriar esta lógica como benefício político, mas como benefício político que se pode estender à comunidade e traduzir uma aprendizagem de outros modos de ver e fazer.
CF – Concordo, o urbanismo tático não é uma solução mas tem, pelo menos, um grande potencial em ampliar a participação das pessoas nos processos de projeto e de planejamento, o que acho que é um dos maiores desafios atuais sobretudo do urbanismo: como inserir, mesmo, as pessoas nesses processos?
PG – E aí está uma outra história importante. A questão participativa e aquilo que alguns chamaram um pouco cinicamente de 'o pesadelo da participação', obviamente que já teve seu momento alto nos anos 70. Falhou completamente, não havia ainda a maturidade ou as ferramentas para promover uma verdadeira participação nos processos democráticos de discussão da cidade, do espaço publico, da habitação, etc. Se calhar, foi preciso voltar a essa discussão já com outros tipos de instrumentos que possibilitem que se assuma a participação como uma ferramenta que já está presente em vários níveis da decisão politica. Tanto é que esta moda, como podemos dizer desses processos participativos, destas ações táticas, acaba por levar muitas autoridades urbanas a criar processos participativos no seu dia a dia. É o caso da cidade de Lisboa que está usando já o orçamento participativo e no Brasil, acho que também em algumas cidades. No entanto, continua ainda a não oferecer soluções ideais, porque esses processos acabam por ter uma natureza populista, e só interessar a certo tipo de grupos. Constituem um progresso no sentido de envolver mais diretamente as populações nas respostas aos seus problemas. E servem mesmo para reinventar o formato da contestação, como me recordo num projeto que vim a citar muito na sequencia da exposição – um projeto brasileiro - em que uma praça que foi desenhava por arquitetos e que supostamente estava a ser embelezada, foi ocupada por ativistas [A Batata precisa de você] que afirmavam que "esse desenho não era o desenho que convinha a esta comunidade". Ocuparam a praça e criaram um tipo diferente de uso. Ou seja, as intervenções tácticas e os processos participativos podem servir como um modo de contestação face a um direcionamento top down que não considera as verdadeiras necessidades da população próxima. Portanto, acho que é um processo que tem toda a importância, que ajuda que a participação ganhe maturidade, embora se repita que não resolverá necessariamente todas as questões.
CF – Bom, nesse sentido o direito a cidade é uma reivindicação recorrente dessas práticas, de urbanismo tático. Como você acha que o urbanismo tático pode de fato contribuir para essa luta? Uma pergunta que vem bem encaixada em meio a essa nossa conversa sobre participação. Como o urbanismo tático pode contribuir para o direito à cidade?
PG – Acho que de fato já respondi, porque quando pode não só ajudar a instar ações concretas que são soluções parciais que alertam para as questões de direito à cidade, mas, também, para servir como ação de contestação e resistência. O que são coisas diferentes. Uma coisa é a celebração, outra coisa é o fato dessa celebração conter elementos de resistência e de contestação. Portanto acho que esses elementos são muito importantes. Houve muita reflexão teórica sobre isto. O Michel de Certeau, nos anos 70, refletiu muito sobre essas questões, sobre os modos de apropriação daqueles que não tem nenhum poder – que entrosam muito directamente no discurso de hoje. Precisamente, a noção de urbanismo tático, para mim, vem da tradição do Michel de Certeau, da ideia que ele fazia do tático em oposição à estratégia, mais do que da lógica americana que surgiu completamente desligada dessa base teórica. Nesse sentido, a vertente de urbanismo tático que defendo ajuda a formalizar e a envolver outros atores numa luta de apropriação que as pessoas podem e devem fazer dos espaços que habitam e do espaço urbano a que tem direito. Acho que, aliás, a ideia do direito à cidade nasce logo a seguir com os textos de Henri Lefebvre e de Michel de Certeau e, portanto, vem na continuidade desses pensamentos de como é que é feita a apropriação do espaço urbano pelos atores urbanos.
CF – Acha que podemos dizer que o urbanismo tático busca a utopia do comum, dessa ideia de comum? Como você relacionaria o urbanismo tático com o tema da utopia?
PG – De fato, isso está respondido aqui na exposição Utopia/Distopia porque, naquilo que é a observação mais positiva feita por alguns artistas face à situação corrente, face à situação política e econômica de instabilidade que estamos a viver, face às visões mais negativas e catastrofistas. Nesse sentido, existiam na exposição dois projetos em particular que pegavam precisamente na ideia de 'utopia realizável' do Yonna Friedman. Um era o projeto, que eu também adquiri para a coleção do MoMA, era dos Raumlabor, de Berlin. O 'Cantiere Barca' é uma intervenção num subúrbio pobre da cidade italiana de Turim, onde vive uma comunidade imigrante. Na intervenção, os arquitetos realizam um workshop com a comunidade local para ocuparem um espaço vazio e gerar um centro comunitário, um local de encontro, que também permite identificarem-se enquanto comunidade. Isto ocorre porque a cidade não tem recursos para fazer algo mais formal por aquela comunidade. Por outro lado, o projeto do artista espanhol catalão Jordi Colomer, que representou a Espanha na Bienal de Veneza, representa uma série de ações de representação da cidade, de apropriação de ideias de cidade e direito à cidade, em diálogo com as utopias realizáveis do Yonna Friedman. Os workshops servem para diferentes grupos de pessoas idealizarem uma cidade que pertença a todos. Naturalmente, é só um projeto artístico performativo. Mas chama a atenção para aquilo que é possível fazer a nível das hortas urbanas, a nível das pequenas ações que tornam a cidade um objeto apropriável para seus habitantes. É uma obra que fala do diálogo na cidade, a partir dos desejos dos habitantes e a possibilidade de o concretizar nem que seja de uma forma simbólica, que continua a ser utópica, mas pragmática e de pequena escala. Estes dois trabalhos da parte final da exposição eram exatamente aqueles que mantinham a ideia de uma utopia, de uma semente utópica que não tem mais a ver com as grandes narrativas do renascimento, do iluminismo, do modernismo etc. Tem sim a ver com a possibilidade da utopia existir como vontade pessoal e individual, no sentido de procurar encontrar respostas quando tudo parece ruir à nossa volta. De um modo muito mais ligado ao local do que ligado ao global, muito mais ligado às narrativas de grupo, de comunidade, do que às narrativas de Estado ou de raça, etc. Portanto, estes dois trabalhos representavam a lógica da possibilidade, muito relacionada com esta noção do urbanismo tático, de reter um desejo utópico quando tudo à nossa volta parece afirmar apenas a distopia, ou seja, um universo em que tudo parece estar a caminhar para um cenário cada vez mais instável e precário.
CF – Aparecem nas práticas do urbanismo tático tanto um interesse na produção e uso das novas tecnologias, nomeadamente as tecnologias de informação e comunicação, as chamadas tecnopolíticas (que é o uso destas com fins políticos mais específicos), a internet, arquitetura digital etc., mas também em muitos casos aparece no urbanismo tático o interesse por técnicas mais artesanais e até o interesse pelo vernacular. O que você acha mais interessante – baseado nos projetos que você tem observado no seu trabalho de curadoria – nessa relação entre urbanismo tático e tecnologia?
PG – Devo dizer que no contexto da conferência que realizamos em torno das 'Post-internet Cities', este termo obviamente veio muito ao de cima. Porque exatamente as novas tecnologias, principalmente de rede, de pós-internet, ou seja, de uma comunicação global muito mais fluida, permite que grupos diferentes em situações díspares entrem em contato e que se criem outros imaginários coletivos que já não estão condicionados à ação local. Ou seja, tudo aquilo que são tecnologias que permitem uma maior comunicação de rede entre grupos muito diferentes e através de uma geografia muito mais expandida, vai não só originar modelos que se podem repercutir em outras localizações, mas vai também facilitar que a lógica da participação se estenda também aos níveis da participação na cidade, do direito à cidade etc. Ou seja, aquilo que foi a barreira aos movimentos participativos nos anos 70, que encaravam uma dificuldade de comunicar, uma dificuldade de partilhar ideias e tornar essas ideias atrativas, para poderem ganhar financiamento, para poderem ganhar visibilidade, neste momento dissipa-se através de uma panóplia de ferramentas completamente nova, desde os mecanismos de crowdfunding até às redes sociais, as divulgações através de meios como o facebook, etc. É agora possível gerar movimentos muito mais rapidamente e com outro tipo de impacto – e há aí uma área em que as tecnologias se vão entrosar naturalmente com aquilo que é o potencial desses urbanismos táticos. Ou seja, nós somos muito ajudados pelo fato das ações de pequenos grupos poderem ser amplificadas e expandidas por tecnologia de muito fácil acesso. É relativamente fácil um grupo fazer um app, um website ou uma página no facebook para gerar movimentação em torno das suas ações. Portanto, algo que me pareceu interessante no contexto da "Uneven Growth" foi exatamente um resultado do desafio lançado aos participantes da exposição, para que eles refletissem sobre como é que as novas tecnologias integravam esse cenário futuro em que o top down e o bottom up se interligavam de uma forma muito mais orgânica e fluida. Um dos casos que achei mais conseguido foi resultado de uma colaboração entre dois coletivos convidados a pensar sobre o futuro de Istanbul. Um dos grupos, o Atelier d’Architecture Autogerée, vinha de uma experiência participativa no contexto do urbanismo do subúrbio em Paris, o outro era um estúdio mais jovem de Istanbul, os Superpool, que já lidavam mais com a ideia dos apps, das comunicações móveis e da acção comunitária. A ligação de um grupo ao outro originou uma situação muito interessante em que se deu uma espécie de atualização daquilo que eram as táticas mais tradicionais de abordagem às necessidades locais, através de uma app que permitia a troca de serviços entre os diversos grupos que estavam presentes na cidade. Ou seja, o app vinha para facilitar aquilo que antes era muito difícil, que era o fato de alguém precisar de saber que, se queria deixar sua criança com uma baby-sitter, havia alguém que trocava os seus serviços pelos tomates que estavam a plantar na sua horta. Portanto criava-se uma microeconomia relacionada a um sistema de troca que era uma alternativa a uma economia que estava a entrar em degradação, essa economia capitalista de Estado que dita que os subúrbios de Istanbul continuem a seguir o modelo falhado e monofuncional dos subúrbios de Paris. Uma tecnologia nova e normalizada permitia, afinal, que as pessoas tivessem acesso a informação sobre como trocar os seus serviços e os seus contributos para a comunidade, assim possibilitando um maior nível de participação. Pareceu-me um modo fabuloso de imaginar o renascimento de uma comunidade que estava condenada pelos condicionamentos económicos e funcionais do lugar onde habitavam. Eles viviam em sítios típicos do subúrbio europeu dos anos 50/60, de locais construídos pelo Estado para abrigar gente de um nível social relativamente baixo, que tinham que ir para a cidade viver e voltar e que só usavam seu sítio para dormir. E faltavam realmente as outras funções sociais para fazer daquilo uma cidade ativa e mais florescida. E era o app que permitia essas novas atividades, tal como seria o app que lhes dava sustentabilidade ao longo do tempo. Não é só necessário fazer uma horta urbana, é também necessário garantir que essa horta entra num novo circuito, que seja útil e que possa ser sustentável ao longo do tempo, não só para uma alimentação pessoal, mas para entrar nas trocas que permitem que a pessoa vá satisfazer outras necessidades básicas.
CF – Para finalizar, queria falar um pouco mais sobre a nossa capacidade ou necessidade de imaginação diante os complexos problemas urbanos e sociais, as desigualdades cada vez maiores, a pressão do lucro sobre nossa qualidade de vida. Enfim, como você vê a importância de nós, profissionais do design, sermos capazes de construir cenários utópicos ou de denunciar cenários distópicos para o nosso futuro próximo?
PG –Ao passar do departamento de arquitetura do MoMA em Nova York para este novo projeto de museu no MAAT, senti-me um pouco a abandonar o campo estrito da arquitetura e a abraçar um campo novo, no qual sempre estive interessado que é o campo da produção e da relação artística. Talvez procure aí a imaginação que vejo escassear no campo profissional da arquitetura. Assim, neste novo projeto do museu estamos a tentar conjugar arte e arquitetura em exposições comuns, no sentido de devolver à arquitetura e ao urbanismo esse lado artístico que se começou a perder quando as escolas de arquitetura se separaram das escolas de belas artes. Ou seja, não me preocupa a perda da relação com a ideia de beleza, mas sim a perda da ideia de que a arquitetura é uma produção cultural e que, como tal, tem uma reflexão crítica a apresentar sobre seu entorno e sobre sua realidade. Isso pode ser feito através do design, como dizia Mies Van Der Rohe quando afirmava que "a arquitetura deve refletir o zeitgeist", deve refletir a condição de seu tempo. Mas também pode ser feito através de uma imaginação crítica que consegue imaginar o futuro, que consegue antecipar problemas, com os dados e a imensa informação que nós acumulamos enquanto arquitetos. Eu diria que os arquitetos se tornaram cada vez mais tecnocratas, perigosamente tecnocratas, à medida que foram perdendo esse lado da ambição estética de apresentar uma leitura do mundo. E penso que esse lado se tem que recuperar. A ligação à arte contemporânea, para mim, serve exatamente para promover essa religação da arquitetura a uma ideia de produção cultural ligada à reflexão crítica, ligada à ideia de pensar o mundo e de apresentar visões sobre o mundo. E aí, é claro que a imaginação é fundamental porque não podemos nos confinar só a dar uma resposta técnica ao problema imediato, mas, sim, a ser mais ambiciosos no sentido de imaginar como é que os nossos conhecimentos especializados podem contribuir com uma reflexão que é cada vez mais necessária. Os artistas fazem isso naturalmente, funcionam numa lógica de mercado completamente diferente, em que não têm a necessidade de ter clientes, mas que, eventualmente, conta com apoios e com a venda de suas obras num mercado especializado. Mas, de fato, apresentam uma disponibilidade para permanecer no campo da reflexão e de imaginar leituras da realidade a sua volta. Enquanto que os arquitetos muitas vezes entram num regime econômico que os condiciona a dar só uma resposta muito direta e a perderem essa capacidade. E os arquitetos têm, penso eu, de recuperar esse lugar de imaginação, esse lugar fundamental de imaginação, na capacidade de originar respostas que não estão amarradas às necessidades concretas mais elementares.