Os Parques Biblioteca foram construídos para promover práticas educativas, culturais e sociais de seus bairros circundantes [1], funcionando como pontos de transformação e fortalecimento das comunidades e culturas locais – ou como “dipositivos políticos”, da forma que sugeri no título do artigo. Ao todo, são nove Parques Bibiloteca construídos até hoje, localizados de forma a atender aos vários bairros e comunas de Medellín. Como desenvolveremos mais adiante, a implementação dos cinco primeiros Parques Biblioteca (San Javier, España, La Ladera, La Quintana e Belén) está associada fortemente com a intenção de alterar simbolicamente a imagem de Medellín como exemplo de violência urbana: os lotes de cada um desses edifícios estão diretamente relacionados a histórias recentes de extrema violência.
Dois documentos sustentam o desenvolvimento do Projeto de Parques Biblioteca: o “Plan de Desarollo 2004 - 2007”[2] e o “Plan Nacional de Lectura y Bibliotecas”[3]. O primeiro está ligado ao projeto de renovação de Medellín, integrando os Parques Biblioteca na retórica de “modernização social e urbana”. O segundo estabelece recomendações administrativas que visam melhorar as práticas editoriais, de biblioteconomia e a cultura de leitura colombianas[4]. O Projeto de Parques Biblioteca é parte de um grande programa de bibliotecas digitalmente conectadas (Red de Bibliotecas e Medellín Digital), que inclui a Biblioteca Publica Piloto (UNESCO, 1957) e todas as suas filiais. Os programas Red de Bibliotecas e Medellín Digital oferecem acesso aberto a uma ampla gama de recursos on-line, como livros, vídeos e outras formas de conteúdo digital. Nesse sentido, os Parques Biblioteca podem ser considerados como integrados dentro de um programa digital.
Além disso, esses edifícios também oferecem uma combinação de programas que visam incluir essas comunidades nas lógicas econômicas e cívicas da “sociedade da informação” – oferecendo cursos de informática, administração de pequenos negócios, idiomas, artes etc. [5]. Estudos (por exemplo, ORTIZ, 2012) indicam que os Parques Biblioteca têm um efeito positivo na educação da população dos bairros circundantes, principalmente devido aos seus programas culturais e acesso aberto aos serviços de internet e de computadores (imagem 7).
Entretanto, os Parques Biblioteca foram construídos para além desses programas educativos, funcionando principalmente “para a vida coletiva, como extensões de espaço público urbano”[6]. Em outras palavras, os espaços dessas bibliotecas são liberados para outros tipos de programas e usos que não fazem parte da noção tradicional de biblioteca. No entanto, apesar da ênfase que é dada para esse “uso urbano” e “relevância política”, poucos estudos avaliam os Parques Biblioteca para além de seus programas culturais.
Metáfora e metonímia
Em uma entrevista realizada em 2014, Herman Montoya, líder do Projeto de Parques Biblioteca na Prefeitura de Medellín (Alcadía de Medellín), explicou que o próprio nome do projeto (Parques Biblioteca) enfatiza a ideia de que esses edifícios são espaços públicos em primeiro lugar. Ele também destacou que o principal objetivo do projeto é “usar a arquitetura pública como meio para alcançar uma reinvenção das práticas sociais”[7]. Ele explicou que esse “papel social” é construído através de duas estratégias principais: em primeiro lugar, o uso da arquitetura para representar uma sociedade “modernizada” (upgraded); e, em segundo lugar, o uso da arquitetura para produzir um novo senso de comunidade e cidadania por meio de coabitação e interação informais.
Em relação à primeira estratégia, BRAND & DÁVILA [8]argumentam que o contraste arquitetônico entre os Parques Biblioteca e seus arredores trazido pela escala, materiais e forma dos edifícios enfatiza a presença do estado nessas áreas (imagem 1). De fato, um dos prefeitos de Medellín destacou a importância da qualidade arquitetônica nesses projetos, formulando que a arquitetura poderia “ativar o poder da estética como motor para a mudança social”[9]. Brand e Dávila sugerem que esse contraste abre o debate sobre a qualidade da arquitetura pública para as cidades latino-americanas. Podemos adicionar que esse contraste também introduz o tema do planejamento participativo e como o Estado é feito “presente” em bairros populares. Além desse “contraste arquitetônico dos prédios da biblioteca com os seus arredores, os edifícios também pretendem construir ‘contrastes históricos’”. [10] Esses “contrastes históricos” são expressos pelos locais escolhidos para esses edifícios: todos eles estão em lugares que têm uma história recente de extrema violência (campos de execução, bases de tráfico de drogas, prisões) que lembram a “Medellín dos cartéis” [11]. A intenção do projeto é usar os locais e a “arquitetura monumental” dos edifícios das bibliotecas como símbolos de modernização social (social upgrading) bem sucedida. Essa ideia é transmitida internacionalmente, influenciando outras cidades (por exemplo, o Rio de Janeiro) que passaram a usar estratégias semelhantes nos seus próprios contextos [12].
A segunda estratégia utilizada pelo Projeto de Parques Biblioteca refere-se à ideia de que os edifícios devem não só representar mudança urbana através de suas monumentalidades midiáticas, porém o mais importante é que devem produzi-la através do arranjo de espaços que podem gerar um novo senso de comunidade e cidadania por meio de coabitação e interação informal [13] Como foi mencionado acima, o termo “Parque” no título do projeto “vem em primeiro lugar precisamente devido ao fato de que essas instalações são espaços públicos, em primeiro lugar” [14]. Em outras palavras, grande importância é dada para as formas de apropriação e uso das bibliotecas, e as potenciais interações sociais que essas formas de uso podem produzir. Consequentemente, podemos sugerir que essas formas de uso e interação social adquirem uma “função metonímica”, pois, para além do mero uso de uma biblioteca, são a manifestação visível da sociedade transformada de Medellín.
No entanto, como pode a mudança social depender do uso público de um edifício? Intuitivamente, podemos sugerir que “uso público” implica, a um certo nível, que formas de ocupação, movimento e interação são imprevistos e não programados. Nesse sentido, se considerarmos todo o investimento em assegurar que os Parques Biblioteca funcionem como extensões de espaço público, isto é, abertos a todos (acesso livre) e permitindo um certo nível de liberdade de uso, eles não podem ser considerados como meras instalações educacionais ou culturais. Como mencionado acima, os estudos (por exemplo, ORTIZ, 2012) indicam que os Parques Biblioteca têm um efeito positivo nos níveis de educação nos bairros vizinhos, principalmente devido aos seus programas culturais e devido ao acesso aberto à internet e computadores. No entanto, como essas instalações funcionam para além de suas finalidades educacionais? Em particular, como o uso público das bibliotecas é associado às intenções sociais e políticas do projeto?
Palcos políticos
A apropriação da comunidade é o que verdadeiramente “endossa” o valor coletivo e político dessas bibliotecas públicas [15]. Nesse ponto, podemos ver que o uso dos espaços dos Parques Biblioteca carrega um valor político duplo: por um lado, eles dão materialidade às ideologias cívicas do projeto (se as bibliotecas forem esvaziadas de usuários, não poderiam manter sua qualidade de representantes e produtores de uma “sociedade melhorada”). Por outro lado, esse mesmo “status da representação da coletividade” (ou “função metonímica”, como chamamos anteriormente) que é dado aos Parques Biblioteca estimula uma consciência política em seus usuários, uma vez que torna a comunidade visível para si mesma [16].
Essa “autovisibilidade” pode acontecer através de meios programáticos – como cursos de formação, festividades e encontros – e através das práticas sociais cotidianas nos espaços desses edifícios. As segundas, em oposição às primeiras, tornam-se uma entidade coletiva somente enquanto ocorrem no espaço e são, portanto, condicionadas e estruturadas pelo arranjo arquitetônico. Eu argumento em dois trabalhos a serem publicados em breve que essa “autovisibilidade arquitetônica” tem uma enorme importância política, pois garante que visitantes se encontrem formando um “palco social”[17] no qual eles não são meros “usuários”[18], mas participantes da formação de uma cultura política de constante autorregulação e negociação. Nesses trabalhos, eu demonstro como determinados arranjos espaciais são capazes de facilitar o controle institucional-burocrático de visitantes, enquanto outros arranjos promovem a interação informal não-programada e não-controlada, mas “carregada politicamente” (politically charged).
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Notas
[1] (PEÑA GALLEGO, 2011; RODRÍGUEZ et al., 2013)
[2] (ALCADIA DE MEDELLÍN, 2004)
[3] (Ministerio de Cultura & Ministerio de Educación Nacional, 2003)
[4] (GIRALDO GIRALDO & ROMÁN BETANCUR, 2011; MONTOYA, 2014)
[5] (EMPRESA DE DESAROLLO URBANO, 2014; JARAMILLO, 2012; PEÑA GALLEGO, 2011)
[6] (FRANCO CALDERÓN & ZABALA CORREDOR, 2012; GIRALDO GIRALDO, ROMÁN BETANCUR, & QUIROZ POSADA, 2009; JARAMILLO, 2012)
[7] (MONTOYA, 2014)
[8] (2013, p. 42)
[9] (SALAZAR apud BRAND & DÁVILA, 2013)
[10] (MONTOYA, 2014).
[11] (MELGUIZO & CRONSHAW, 2001; MONTOYA, 2014)
[12] (GONZÁLEZ VÉLEZ & CARRIZOSA ISAZA, 2011; SILVA, 2013).
[13] (EMPRESA DE DESAROLLO URBANO, 2014; FRANCO CALDERÓN & ZABALA CORREDOR, 2012; MONTOYA, 2014).
[14] (MONTOYA, 2014).
[15] (RODRÍGUEZ et al., 2013).
[16] (JARAMILLO, 2012).
[17] (ZOOK & BAFNA, 2012)
[18] (GEE, 1994)
O artigo apresenta parte da minha pesquisa de doutorado na Bartlett School of Architecture, UCL (Londres), para a qual recebi bolsa da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Agradeço a Herman Montoya pela entrevista cordialmente cedida quando em meu estudo de campo em Medellín.