Deveríamos ter uma palavra específica para esse tipo de filme - um meio termo entre uma sequência e uma releitura - mas não existe, então teremos que chama-lo apenas de Blade Runner 2049. Talvez o filme seja mais sutil na forma como faz referência ao clássico precedente de 1982, o cult distópico dirigido por Ridley Scott, do que outras regravações recentes - Star Wars: The Force Awakens, por exemplo - mas ainda assim há uma série de insinuações bastante óbvias. Por exemplo, é fácil perceber reflexos dos personagens do Blade Runner original em 2049: o detetive particular Rick Deckard tranfigura-se aqui no estóico e desiludido "K"; a femme fatale Rachael se revela em Joi, uma personagem em forma de holograma que é algo entre um humano e uma máquina; o espírito do excêntrico Roy Batty, renasce em Luv, o fascínora; para não mencionar a horda de replicantes entre humanos e policiais suspeitos. Na verdade, o principal elemento que não foi substituído é o próprio cenário do filme, a cidade de Los Angeles. Entretanto, sua arquitetura é surpreendentemente abstrata em relação ao primeiro filme. Por isso, a nova versão de Blade Runner parece desprovida de uma atmosfera cívica, provavelmente concebida de forma intencional.
A cidade de Los Angeles em Blade Runner era um paradoxo: morta, porém vibrante, imunda mas encharcada de chuva, superpovoada, mas em constante processo de abandono. É uma herança complexa que pertence tanto à cidade quanto ao cinema. Los Angeles é uma das metrópoles mais presentes na história do cinema, e sua arquitetura única tem sido amplamente retratada por cineastas e estudada por historiadores da sétima arte. A cidade tem sido tão importante ao longo do desenvolvimento da arte cinematográfica que, de fato, filmes como Kiss Me Deadly, de 1955, podem ser considerados um tipo de representação histórica de uma Los Angeles que já não existe mais.
Não é necessário procurar pelo Bradbury Building. O principal marco da cidade de Los Angeles raramente é tímido em frente as câmeras. Ele revela-se em toda sua glória desde os clássicos noir (D.O.A., Marlowe, Chinatown) até os curiosos filmes de ficção científica e fantasia (The Outer Limits, The Night Strangler). Desde a década de 1940 o Bradbury Building é uma constante na paisagem cinematográfica de Los Angeles, e não poderia ser diferente com Blade Runner.
Sua presença no ponto alto do filme, muito provavelmente, é a melhor atuação do edifício em toda sua carreira cinematográfica. Sua constante presença na grande tela desde a década de 1940 até os dias de hoje e as visões de um futuro fictício, sugerem a natureza atemporal do Bradbury Building, reflexo da peculiar arquitetura eclética futurista da cidade de Los Angeles.
Conseqüentemente, a Los Angeles de Blade Runner não é muito diferente da Los Angeles de Chinatown. Ambos os filmes compreendem que o discurso da cidade de Los Angeles trata essencialmente do espaço urbano, tanto do potencial de seus espaços vazios como a efervescência das áreas densamente ocupadas. Podemos comparar a cena onde Deckard tenta abrir caminho em meio a multidão de pessoas e animais pelas ruas de Los Angeles com aquela multidão que de repente cerca o personagem de Jack Nicholson no final de Chinatown. Cada plano sequencia nestes espaços urbanos densamente povoados parecem ao mesmo tempo completamente desprovidos de gravidade: graças a câmera lenta de Blade Runner e a fotografia sóbria de Chinatown.
Ambos os filmes também tiram partido da natureza gótica sinistra dos arranha-céus da cidade - o estilo "Revival Espanhol" de Chinatown tem a mesma força do Beaux Arts apresentado em Blade Runner. Para alguns, Blade Runner é um esgoto a céu aberto, exatamente o oposto de Chinatown, mas devemos lembrar do tema central deste último: a água e sua importância para a humanidade. No vale por onde antes passava o rio de Los Angeles, Gittes encontra apenas terra rachada, móveis abandonados e um menino solitário à cavalo. Se estivesse chovendo nesta cena de Chinatown, poderia facilmente estar acontecendo em Blade Runner.
Essa paisagem surrealista já não existe mais em 2049. Por um lado, a narrativa não se restringe apenas à Los Angeles - ela se desloca além dos limites ao norte da cidade. Esta paisagem suburbana é desprovida de identidade. Não existem estruturas de referência. A sede da LAPD, no centro de Los Angeles, não é muito diferente da paisagem rural da região central da Califórnia ou até mesmo das colinas características de San Diego. Também não há uma grande diversidade de cenários no filme. Enquanto Blade Runner possuía uma atmosfera repleta de luz e sombra, 2049 é composto por paletas praticamente monocromáticas: a paisagem rural é CINZA; Las Vegas é ALARANJADA; a praia é PRETA. É como se a cor fosse um pano de fundo para a arquitetura.
Na verdade, se há algo que nos remete de fato a paisagem atual da cidade de Los Angeles, é a onipresença dos painéis de publicidade - e não apenas por causa da "maldição de Blade Runner". Atualmente, os outdoors de Sunset Boulevard em Hollywood são um amontoado de propagandas infames que castigam nossos olhos. No futuro de Blade Runner, onde as mega corporações facilmente ultrapassam limites e fronteiras, pandemias de publicidade se espalham por todos os lado, atacando uma população cada vez menos interessada nestas imagens subversivas. Em 2049, os comerciais são ainda mais invasivos. No final do filme, K se depara com uma enorme propaganda (ROXO) do holograma Joi. Ela é ao mesmo tempo familiar e irreconhecível entre as outras milhares de "Jois" - destituindo o mundo de qualquer individualidade à favor de uma uniformidade avassaladora. Arrasado, K desfalece.
O futuro é homogêneo, um efeito colateral da super globalização. No momento em que uma cultura universal se sobrepõe a qualquer identidade local, Los Angeles e San Diego são a mesma coisa, assim como qualquer pequena cidade da Califórnia se parece com qualquer lugar remoto da China. Neste cenário uniformemente poluído, o futuro de 2049 já não apresenta tantas especificidades arquitetônicas como antes, mas ainda assim, e talvez por isso mesmo, ele é até mais assustador - e cinematograficamente impressionante - do que era em Blade Runner.
Colin Newton é escritor freelancer e atualmente mora em Los Angeles. Escreve resenhas e artigos para jornais e blogs locais com frequência. Suas áreas de interesse são o cinema e a filosofia, saiba mais sobre seu trabalho aqui.
Barozzi Veiga's Unbuilt Museum Project Immortalized In Blade Runner 2049