O que o arquiteto suíço e segundo diretor da Bauhaus, Hannes Meyer, poderia ter em comum com o excêntrico e vaidoso presidente dos Estados Unidos, Donald Trump? O artigo à seguir, escrito pelo Colectivo Arkrit, faz uma interessante reflexão a respeito do tema.
A fotomontagem de Hannes Meyer representa uma unidade habitacional. Este não é um apartamento qualquer mas a ideia de uma nova maneira de habitar o espaço. Um espaço, ao mesmo tempo, construído e a ser construído; um espaço neutro ainda que completamente mobiliado, um projeto inacabado. A mesa e as cadeiras dobráveis assim como a cama de estrutura leve, reforçam a ideia de flexibilidade, móveis que podem oferecer uma infinidade de alternativas para a configuração dos espaços. Elementos fabricados em série, acessíveis para a população de baixa renda e destinados a otimização dos espaços; uma estrutura de extrema simplicidade, que só faz sentido quando habitada.
O espaço não se revela nos elementos particulares que aparecem nas fotos, mas nas inúmeras configurações imaginadas pelo observador. Cada um de nós pode imaginar este espaço à sua maneira: dormindo, escutando música, sentado em companhia, jantando em família, fazendo exercício ou simplesmente observando o mundo através da janela que não aparece na fotografia, mas que sabemos que está ali pela maneira como ilumina o espaço interior do apartamento. O lugar não importa, as vistas também não; poderíamos estar em qualquer lugar do mundo. Esta é, definitivamente, uma arquitetura democrática, uma representação do espaço doméstico moderno, humano e atemporal. Um espaço multicultural, sem ostentações e, por isso mesmo, ao alcance de todos; um espaço individual para um se humano como todos os outros.
Esta fotografia de Meyer faz parte de seu artigo intitulado ‘Die Neue Welt’ (O novo mundo), publicado no número 7 da Das Werk em julho de 19261. Mais de noventa anos depois, este modelo de habitação construída apenas com dois painéis móveis, segue sendo absolutamente moderna e de uma contemporaneidade indiscutível.
Noventa anos depois da publicação do artigo de Meyer, Donald Trump foi eleito, democraticamente, presidente dos Estados Unidos da América. Sua visão de unidade habitacional é completamente diferente. Um apartamento único e exclusivo, com nome e sobrenome, localizado especificamente segundo as coordenadas cartográficas 40°45’43.9″ Norte e 73°58’26.9″ Oeste, no 66º pavimento em pleno centro da cidade de Nova Iorque. Este espaço exala um egocentrismo real banhado em ouro vinte e quatro quilates. Tudo aqui segue uma ordem específica e perfeitamente articulada para a realização das atividades cotidianas, nada mais que isso. O espaço é inflexível, composto por um mobiliário antiquado, impossível de deslocar um centímetro sequer. Um espaço pesado, embora esteja flutuando a quase duzentos metros acima do chão; um espaço vazio, sem alma. Nada daquilo que podemos ver nesta fotografia poderia estar relacionado a um ser humano moderno do século XXI, e menos ainda com o presidente de um país democrático; seu moderno computador portátil, de design leve e sóbrio, se tivesse a oportunidade, cometeria suicídio sem pensar duas vezes.
É o horror vacui (ou quenofobia, medo do vazio) de um espaço fora do alcance das massas, um espaço totalitário e repleto de um luxo obsceno, atingível apenas a quem pode pagar pelos serviços de um artesão. Causa-nos repulsa não porque é feio, kitsch ou constrangedor, mas porque é antidemocrático: é um espaço exclusivo e excludente, composto sob medida para um ser humano segundo sua cultura e a civilidade. Efetivamente, não se trata de uma questão de gosto. É a necessidade de preencher esteticamente um vazio ideológico. É o espaço perfeito para confundir o observador, deslumbrar através do brilho dourado onipresente e liquidar sua capacidade crítica e imaginativa, com o único objetivo de camuflar as obscenidades políticas dos fantasmas do nacionalismo norte-americano mais cascudo, ao mais puro estilo do Rei Sol.
O que vemos aqui é efetivamente kitsch e constrangedor, assim como todos os outros recintos deste apartamento. Entretanto este não é um julgamento estético baseado em uma opinião subjetiva de gosto. É um ponto de vista a partir de uma linha muito tênue que distingue o que é moderno e o que é historicista, a razão e o romantismo, entre o que é bom e o que é inaceitável. Hemingway dizia que devíamos ter um detector de porcaria. Realmente, todos nós temos uma espécie de detector assim, embora para alguns ele não funcione.
Nosso detector aponta um salãozinho decorado ao estilo imperial; que não é nada mais que uma antessala para o inferno.
Este artigo foi originalmente publicado como 'Trumpismo' no blog da ARKRIT, Grupo de pesquisa do Departamento de Projeto da ETSAM de Madri, dedicado ao desenvolvimento da crítica arquitetônica entendida como um elemento metodológico de projeto. Saiba mais sobre seus artigos acessando aqui.
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