Quais relações podemos encontrar quando sobrepomos dois projetos de dois dos mais importantes arquitetos de todos os tempos? Veja a seguir algumas reflexões produzidas pelo Grupo Arkrit através de um ensaio crítico sobre a obra de Mies van der Rohe e Rem Koolhaas.
Entre semelhança, influência e cópia há um universo de diferentes significados: ainda que possam parecer termos semelhantes, devemos ser muito precisos quando os utilizamos na critica de arquitetura. Entretanto, nosso objetivo aqui é desenvolver uma reflexão à respeito de duas obras que, embora tenham muitas semelhanças, são completamente distintas. Através de uma justaposição de imagens, como um cadavre exquis, iremos avaliar dois projetos de arquitetura, submetendo-os a condições gráficas equivalentes, estruturadas pela posição do observador. A esquerda temos a Neue Nationalgalerie projetada por Mies van der Rohe em 1968, um espaço dedicado a arte do século XX na região do Kulturforum de Berlim. À direita, temos o Kunsthal ou Centro de Arte Contemporânea de Roterdã, projetado por Rem Koolhaas/OMA em 1992.
Este será um exercício progressivo no tempo, ou mais precisamente: uma leitura que se inicia com o discurso moderno de Mies e se conclui nos termos (pos)modernos de Koolhaas. Ambos projetos se baseiam parcialmente em uma planta retangular de lados iguais, com fachadas transparentes limitadas pela laje de cobertura em balanço. A Neue Nationalgalerie é um ode à síntese espacial característica das ultimas obras de Mies, assim como uma exaltação de importantes elementos da arquitetura moderna: a relação -ou a tensão- entre o interior e o exterior. O interior se estabelece através de um perímetro ortogonal transparente, recuado e paralelo a laje de cobertura. A estrutura da laje em balanço é o elemento dominante do projeto. A racionalidade estrutural permite uma completa flexibilidade dos espaços internos, a escada no eixo de simetria do edifício, organiza os espaços e conduz os visitantes ao nível inferior onde o programa se desenvolve de modo convencional.
No entanto, ao oscilarmos nosso olhar entre estas duas imagens refletidas, descobrimos que deste reflexo emergem duas imagens distorcidas, assimétricas e irregulares em conteúdo. O beiral projetado por Koolhaas rompe com a ordem clássica da estrutura de Mies van der Rohe, periférica e equidistante, para empregá-la, como descreve Roberto Cargiani no “The Construction of Merveilles”, com um pronunciado caráter escultural [i]. Na imagem podemos observar os tirantes metálicos, uma coluna quadrada de concreto, um enorme pilar preto, a coluna cruciforme (miesiana) pintada de branco além de uma viga perfurada que opera como mais um apoio vertical. Percebemos que a disposição dos pilares se distancia dos alinhamentos reticulares de Mies: a estrutura do Kunsthal responde a questões muito distintas daquelas que a envoltória moderna procurava impor, uma complexidade estrutural interior que se expande para fora do edifício, recolocando a estrutura moderna a serviço do programa.
Koolhaas não se intensa pela integridade (moral) da estrutura: os elementos de apoio não seguem uma razão necessariamente lógica ou poética, talvez uma razão mais irônica ou incluso, cenográfica. A principal ruptura entre os dois projetos se revela na desarticulação da coerencia material, formal e funcional, ou qual seria o motivo de transformar uma viga em um pilar?. Nas palavras de Antonio Miranda: "a diversidade da sua estrutura (do Kunsthal), faz com que duvidemos de sua autenticidade. Por exemplo: utilizar uma viga Boyd (...) como pilar"[ii]. O aço e o vidro, elementos paradigmáticos da revolução industrial moderna, conformam uma identidade muito mais estética. Neste sentido, Koolhaas tira o peso da cobertura massiva de Mies ao revesti-la com policarbonato translúcido, permitindo que o oculto seja até certo ponto visível. Outro contraste está na paginação e na materialidade do piso. A ortogonalidade da plataforma de pedra sobre a qual emerge a galeria em Berlim e a leveza obtida pelo piso elevado industrial no acesso do Kunsthal.
Além disso, conservando as condições iniciais de controle e equivalência, a cobertura responsável por unificar os espaços, nos proporciona uma nova leitura: a parcialidade destas imagens revela um enfrentamento entre a solenidade de Mies e a irreverência de Koolhaas, onde o estritamente arquitetônico não pode desligar-se do turbulento jogo de significados. O que antes parecia ser incompatível -diversos critérios estruturais em um mesmo projeto- aqui é recolocado pelo OMA como um catálogo de possibilidades formais e funcionais.
Pós-escrito
Deixando os edifícios um pouco de lado, podemos ainda fazer outra justaposição entre estas duas importantes figuras. Neste caso com uma imagem na qual aparecem os dois arquitetos sentados, um de costas para o outro. Do lado esquerdo está Mies van der Rohe sobre uma cadeira tubular no interior de seu apartamento em Chicago, fumando um charuto que mantém com a mão direita, tem o olhar baixo e um gesto cético. Impecável em seu terno e gravata, seu braço esquerdo está levemente arqueado por trás do encosto da cadeira. À direita temos Rem Koolhaas, também sentado sobre uma cadeira de aço tubular, ainda que não seja a mesma de Mies. Sua postura, a qual é mais relaxada, exibe o braço direito colocado em uma posição semelhante mas não exatamente a mesma; a mão quase toca o chão, sua atitude é estranha: por acaso pode parecer cínica?. Seja para refletir a evolução entre uma modernidade canônica e a realidade contemporânea a qual nunca teve medo de retomar, ironizar e deformar a medida que o convêm.
[i] CARGIANI, Roberto. Rem Koolhaas/OMA The Construction of Merveilles. EPFL Press. 2008. p. 156
[ii] MIRANDA, Antonio. Arquitectura y Verdad. Un curso de crítica. Madrid: Ediciones Cátedra, 2013. p. 279
Este artigo foi originalmente publicado como 'Cadáver exquisito' en el blog de ARKRIT, Grupo de pesquisa do Departamento de Projeto da ETSAM de Madri, dedicado ao desenvolvimento da crítica arquitetônica entendida como um elemento metodológico de projeto. Saiba mais sobre seus artigos acessando aqui.