O universal é o local sem paredes
Miguel Torga - Poeta, dramaturgo e ensaísta português (1907-1995)
Um ponto de vista
Este texto foi escrito para a edição francesa do catálogo da exposição Os universalistas, 50 anos de arquitectura portuguesa, evento que a Delegação da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris organizou nessa cidade, no âmbito do seu 50º aniversário, em co-produção com a Cité de l’architecture et du patrimoine. O evento é agora apresentado, em 2018, em Portugal, na Casa da Arquitectura, em Matosinhos.
Para facilitar a leitura, dividimos o texto em duas partes. A segunda parte pode ser acessada nesse link.
O catálogo e a exposição estabelecem um olhar sobre meio-século de pensamento e de produção arquitetónicas, dando a conhecer, a um público alargado, o modo como a arquitetura portuguesa foi sendo marcada, ou foi ela própria marcando o contexto cultural e social do seu país, considerando ainda a sua inserção nas diversas dinâmicas mundiais ocorridas ao longo das últimas décadas.
A nossa seleção de autores e projetos defende um ponto de vista: o de que existe um “universalismo” peculiar e latente no modo como os melhores arquitetos portugueses foram criando as suas obras, de geração-em-geração, num assertivo balanço entre o legado universal da História da Arquitetura e as condicionantes geográficas e culturais dos lugares onde se propuseram edifica-las; isto é, exercitando uma fusão coerente e crítica entre o que hoje chamamos de “global” e de “local”.
Esse “universalismo-outro” - distinto daquele que se impôs, filosófica e politicamente, no Iluminismo centro-europeu, a partir dos finais do século XVIII - é também o resultado de um contínuo contacto com as geografias e as culturas do “outro”, com base em processos como a viagem, a colonização, a diáspora ou a emigração, fenómenos marcantes do percurso histórico português. A maior distinção residirá no facto desse “alteridade” portuguesa se ter processado, ao longo do tempo, “de baixo-para-cima”, na perspetiva da simbiose cultural, enquanto o Universalismo das Luzes se difundiu, dominantemente, “de cima-para-baixo”, a partir de um modelo erudito, uno e irrefutável de sociedade e de urbanidade. Nesse sentido, o universalismo português define-se historicamente “por defeito”, como bem lembra o filósofo Eduardo Lourenço na entrevista filmada que inicia a exposição.
A obra de Eduardo Lourenço como fio condutor
O título “Os universalistas” evoca também a frase preambular deste texto, escrita por Miguel Torga na sua obra Diário XV (1987)[1], e que exprime o modo como a cultura portuguesa sempre soube encarar o “universal” a partir de um “local” de enraizamento, embora em diálogo com o mundo; isto é, a partir de um “local sem paredes”, como descreve o autor, utilizando uma metáfora poética, de clara conotação espacial ou de inusitada inspiração arquitetónica.
Se o mote nos é sugerido por Torga, a estrutura da exposição segue o entendimento desse seu atento e fiel leitor – Eduardo Lourenço –, ensaísta e pensador do Portugal contemporâneo, radicado em França durante cinco décadas. Na sua extensa obra publicada, Lourenço percorre um conjunto de temas que nos ajudam a balizar arcos temporais e conceptuais do universalismo português, e que situamos no campo específico da cultura arquitetónica. Esses sucessivos períodos enquadram o pensamento e a prática de inúmeros arquitetos, em face das circunstâncias culturais e sociais que, dentro e fora de Portugal, deram contexto e sentido à sua obra. O seu universalismo arquitetónico é aqui colocado em confronto ou em diálogo: com a influência do internacionalismo Moderno, mas também do nacionalismo, na derradeira fase da ditadura portuguesa (1960-1974); com a década final do colonialismo português (1971-1975); com a Revolução dos Cravos (1974-1979); com o processo de integração de Portugal na Comunidade Europeia (1980-2000); e com o impacto da globalização (2001-2016).
Pretendeu-se, em síntese, evidenciar o modo como a cultura arquitetónica portuguesa se inscreve nessa condição histórica, simultaneamente “heteronímica” (ser eu e o outro) e “heterodoxa” (ser daqui e do mundo), algo que foi já identificado por diversos ensaístas na obra de outros criadores portugueses, noutras áreas disciplinares - da literatura às artes plásticas ou ao cinema contemporâneo -, e que atingem hoje um estatuto universal.
De algum modo, essa indagação estava, até agora, por aprofundar no campo da arquitetura, e é nesse sentido que esta exposição abarca um espectro temporal e inter-geracional que percorre cerca de meio-século; isto é, entre os arquitetos que aprofundaram a revisão crítica do Movimento Moderno, na década de 1960, e aqueles que, nascendo nesse período, prosseguem hoje um trabalho comprometido e amadurecido por um mesmo exercício crítico em face da globalização. Isto explicará a ausência de arquitetos mais jovens na nossa seleção, estando nós mais interessados em perceber a continuidade dos métodos, do que em fazer “futurologias” sobre novas promessas ou ruturas processuais.
Neste caminho, contamos com a companhia dos acutilantes cartoons de João Abel Manta e das expressivas fotografias de Alfredo Cunha - também eles cronistas ímpares do Portugal dos últimos 50 anos -, das ideias trocadas com Eduardo Souto de Moura, patrono científico deste evento, e dos lúcidos textos dos críticos convidados para escrever no catálogo: os portugueses Ana Tostões, Ana Vaz Milheiro, José António Bandeirinha, Jorge Figueira e Ricardo Carvalho; e os franceses Dominique Machabert, Francis Rambert, Jacques Lucan e Jean-Louis Cohen.
Ser universalista face ao (inter)nacionalismo
A viagem temporal desta edição inicia-se na década de 1960, em torno da geração de Fernando Távora e de Nuno Teotónio Pereira, sem esquecer os contributos de arquitetos com formações anteriores, como Francisco Keil do Amaral, Raul Chorão Ramalho, Alberto Pessoa e Ruy d’Athouguia, autores de obras marcantes nesse período, dentro e fora de Portugal. No entanto, será sobretudo em torno de Távora e de Teotónio Pereira que se estabelecem os mais consequentes métodos críticos e reflexivos da disciplina da arquitetura, transmitidos às gerações seguintes, a partir dos seus ateliês, respetivamente no Porto e em Lisboa. As suas práticas - entre a arquitetura, a pedagogia, e o empenho cívico em prol de uma arquitetura socialmente comprometida -, desenvolvem-se num país marcado por uma ditadura política e por um “nacionalismo orgânico” tal como lhe chamou Eduardo Lourenço no seu texto Psicanálise mítica do destino português[2], cujos excertos publicamos na exposição. Contrariando esse nacionalismo provinciano, Fernando Távora deixou num texto seu - embora pensando em Fernando Pessoa, que tanto admirava -, um olhar sobre a condição heteronímica do arquiteto português:
Cremos que o pensamento da arquitectura contemporânea portuguesa, nos seus sectores mais representativos, não esquece, antes pratica, a nossa tradição, não impositiva mas simpatizante e compreensiva, de consideração dos homens e dos seus lugares, garantindo, aos seus edifícios e espaços, a identidade e a variedade, como que num fenómeno de heteronímia, no qual o autor se desmultiplica, não por incapacidade conceptual ou outra, mas pelo princípio do respeito, quando merecido, que a outros somos devedores. Tal modo de estar presente no mundo, não resulta em verdade da fraqueza do criador perante o outro, o seu lugar e o seu tempo, mas exactamente da consideração criativa da sua substância e da sua circunstância.[3]
Iniciando, em 1947, um debate sobre a questão da Casa Portuguesa, e envolvendo-se, a partir de 1955, numa das equipas que realizaram o Inquérito à Arquitetura Popular em Portugal - obra publicada em 1961 -, Távora desenvolve, ao longo das décadas seguintes, uma contenda pessoal na defesa da diversidade da arquitetura portuguesa, denunciando a incoerência dos seguidismos estilísticos nacionalistas, e, no mesmo sentido, das adoções acríticas dos códigos formais difundidos pelo internacionalismo Moderno. Este será um dos contributos centrais de Távora e de Teotónio Pereira para a história da arquitetura em Portugal: fomentar - construindo obras notáveis, escrevendo textos didáticos, ensinado dentro e fora do ateliê -, um verdadeiro processo de revisão crítica desses dogmas que provinham, simultaneamente, “de dentro” e “de fora” da sua cultura.
Notas
[1] TORGA, Miguel, «Diário XV», in Miguel Torga, Diários Vol. XIII a XVI. Lisboa: Editorial Caminho, 1995, p.204
[2] LOURENÇO, Eduardo, « Psychanalyse mythique du destin portugais », in Le labyrinthe de la Saudade. Paris: Édition Sagres-Europa, 1988, pp.17-64
[3] TÁVORA, Fernando, «Imigração/Emigração. Cultura Portuguesa no Mundo», in Portugal. Arquitectura do Século XX (org. Annette Becker, Ana Tostões, Wilfried Wang). Lisboa, München, Frankfurt-am-Main: Prestel, Deutches Architektur-Museum, 1998, pp.141-143