Um ponto de vista
Este texto foi escrito para a edição francesa do catálogo da exposição Os universalistas, 50 anos de arquitectura portuguesa, evento que a Delegação da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris organizou nessa cidade, no âmbito do seu 50º aniversário, em co-produção com a Cité de l’architecture et du patrimoine. O evento é agora apresentado, em 2018, em Portugal, na Casa da Arquitectura, em Matosinhos.
Para facilitar a leitura, dividimos o texto em duas partes. A primeira parte foi publicada ontem.
Ser universalista em tempo colonial
Na década de 1960, acentuam-se, de igual modo, as contradições culturais do Império colonial português, o último a subsistir entre os países europeus colonialistas. A máquina colonizadora intensifica-se a partir de 1961 - ano em que se inicia a guerra aberta no terreno, entre o governo de Salazar e os movimentos independentistas africanos -, conduzindo a um maior investimento no poderio militar, mas também, paradoxalmente, na infraestruturação e reequipamento urbano das maiores colonias, então encaradas como “províncias portuguesas”. Eduardo Lourenço descreve esse processo obstinado, a que chamou de “colonialismo inocente”, descrevendo-o, entre outros, no seu texto “Da não-descolonização”:
Na ideologia e no horizonte do Antigo Regime, não havia lugar para a hipótese de uma emancipação natural e negociada dos novos países africanos. Dessa ideologia, durante os treze anos de envergonhada, mas mortífera, guerra colonial, fazia parte a ideia de que Angola, Guiné ou Moçambique eram “tão portuguesas como o Minho ou o Algarve”. Há quinhentos anos que o nosso discurso nacional funcionava neste diapasão.[1]
Nascidos ou estabelecidos em África, sobretudo em Angola e Moçambique, diversos arquitetos portugueses contribuíram para esse último fôlego colonizador, cruzando a sua formação erudita, e o fascínio pelos modernismos centro-europeu e brasileiro, com os programas requeridos por clientes públicos e privados, mas sobretudo com as especificidades territoriais e climáticas autóctones. Entre eles, destacam-se: os que complementaram a sua formação em Paris, trabalhando com Le Corbusier, como Vasco Vieira da Costa e Fernão Simões de Carvalho, ambos fixados em Luanda; os que, nas cidades moçambicanas de Lourenço Marques (hoje Maputo) e da Beira, “rescreveram” as formas, as cores e os brise-soleils de Lúcio Costa e de Oscar Niemeyer, comoJoão Garizo do Carmo, Francisco José de Castro e Paulo Melo Sampaio; e sobretudo aquele personagem singular que redigiu, com a sua obra original, uma página ímpar na história da arquitetura portuguesa - Amâncio (Pancho) Guedes -, inscrevendo-a simultaneamente nas paisagens urbanas do sul da África e no debate pós-funcionalista que decorria então no centro da Europa. Nos encontros do Team 10 - onde compareceu entre 1962 e 1977, tornando-se próximo de Alison e Peter Smithson, Aldo van Eyck, Georges Candilis, e Giancarlo de Carlo -, Pancho Guedes foi decerto o mais heterodoxo dos universalistas.
Ser universalista na experiência revolucionária
A Revolução dos Cravos, de 25 de Abril de 1974, representou, não apenas o fim de 48 anos de ditadura política, mas também um novo desafio social e cultural para todos os pensadores e criadores portugueses. Entre eles, Eduardo Lourenço definiu assim esse processo de transformação do Portugal do final do século XX, num curioso texto a que chamou Do pesadelo azul à orgia identitária:
Nós vivemos então, qualquer que seja hoje a nossa tendência, tentação ou vontade de o esquecer, o que de mais perto se pareceu com uma experiência revolucionária. Até a Europa, interiormente oscilante ainda, se deu conta disso, e veio até Lisboa para ver como era possível uma revolução de esquerda, a sério, quando em Paris só revoltas oníricas e falhadas eram possíveis.[2]
Para os arquitetos portugueses, este foi o momento de colocar em prática o seu longo compromisso ideológico com a Habitação Social, ao encontro das populações urbanas mais desfavorecidas. Entre outros, foram os discípulos de Nuno Teotónio Pereira e de Fernando Távora que tomaram esse processo em mãos, partindo de experiências pessoais e de métodos aprendidos ao longo das décadas anteriores. Em Lisboa, Nuno Portas parte do atelier de Teotónio Pereira para chefiar a Secretaria de Estado da Habitação e Urbanismo dos primeiros governos revolucionários, na qual lançou o famoso programa SAAL - Serviço de Apoio Ambulatório Local -, em prol do realojamento social nos principais meios urbanos. No Porto, Álvaro Siza, ex-colaborador e amigo próximo de Fernando Távora, envolveu-se empenhadamente nesse programa participativo, realizando dois dos mais notáveis bairros sociais integrados no SAAL/Norte - Bouça e São Victor - imediatamente consagrados pela crítica internacional, e particularmente pela revista L’architecture d’aujourd’hui, então editada por Bernard Huet.
Com eles, outros compagnons de route – Manuel Tainha, Gonçalo Byrne, Raul Hestnes Ferreira e Manuel Vicente (no sul); Pedro Ramalho, Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez e Alcino Soutinho (no norte) – sonharam e traçaram essa “cidade da democracia” sobre os escombros do “pesadelo azul” da ditadura, de que nos fala Eduardo Lourenço. Segundo este autor, findo o Império colonial, uma nova “orgia identitária” emergiria em Portugal, a partir da sua integração “europeísta”; na verdade, uma condição que, como nos diz, estava já inscrita na sua “hiperidentidade” histórica precedente.
Ser universalista “no mundo como em casa”
A integração de Portugal na Comunidade Europeia, em 1985, permitiu ao país obter, a partir de então, abundantes fundos estruturais para a infraestruturação do território e para o reequipamento das suas cidades. Este foi um momento em que, para além de Lisboa e do Porto, várias cidades médias beneficiaram de um crescimento acelerado do seu tecido urbano e da sua conexão a uma extensa rede de infraestruturas. Essa melhoria interna foi acompanhada pelo incremento da mobilidade internacional de pessoas, bens e serviços portugueses, definitivamente garantida pelo fim do controlo fronteiriço no Espaço Schengen (1997), e pela introdução da união monetária, a que Portugal aderiu em 1999. De algum modo, a integração europeia preparou o embate português com a globalização política, financeira e económica. No entanto, e do ponto de vista cultural, Portugal fora sempre um país de vocação universalista, como bem descreve Eduardo Lourenço, no ensaio Portugal: Identidade e Imagem:
É para a Europa, talvez, que nós constituímos, se não um desafio, pelo menos um problema, embora haja nela problemas de mais aguda urgência e fendura. Já provamos que não podíamos ser digeridos enquanto portugueses, até porque a nossa mais funda vocação – como Fernando Pessoa, que era tudo e ninguém, o mitificou – é a de estar no mundo como em casa.[3]
Já em 1980, antes de Portugal ser “europeísta” e o Muro de Berlim cair, Álvaro Siza iniciara, com o seu projeto para o edifício “Bonjour Tristesse”, edificado naquela cidade alemã, uma fulgurante carreira de “reescritor” universal (e não “global”) de cidades e de arquiteturas “outras”. Retomando o texto de Távora, ninguém como Siza expressou “essa consideração dos homens e dos seus lugares, garantindo, aos seus edifícios e espaços, a identidade e a variedade, como que num fenómeno de heteronímia, no qual o autor se desmultiplica”; uma desmultiplicação que não terminaria na geração de Siza, estendendo-se à de Eduardo Souto de Moura e José Paulo dos Santos, seus ex-colaboradores, e sucessivamente, à de tantos outros arquitetos que, embora não partilhando os mesmos referenciais estilísticos e compositivos, pugnam hoje por uma continuidade dos métodos aprendidos e transmitidos de geração-em-geração: João Luís Carrilho da Graça, Manuel Graça Dias, Paulo David, João Mendes Ribeiro, Paula Santos, Manuel e Francisco Aires Mateus, Nuno e José Mateus, Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos, só para citar alguns.
Foi pela consistência dessa “linhagem” heterodoxa que a arquitetura se fez indiscutivelmente portuguesa, mas também, e por heteronímia, alemã, holandesa, italiana, suíça, japonesa, brasileira, mexicana…; e, num mesmo sentido, que as obras de Siza e de Souto de Moura se tornaram num jogo de “alteridades”, de Le Corbusier, Alvar Aalto, Adolf Loos, Lina Bo Bardi, Oscar Niemeyer, Mies van der Rohe, Aldo Rossi…
Afastada dos grandes centros de produção, a arquitetura portuguesa aprendeu a tratar por “tu” a História da Arquitetura, passando, descomplexadamente, “a estar no mundo como em casa”.
Ser universalista numa Europa em crise
Vivemos tempos difíceis numa Europa com “problemas de aguda urgência e fendura”, como nos lembra, uma vez mais, Eduardo Lourenço; uma Europa que inventou o Universalismo das Luzes, mas que tem hoje dificuldades em difundi-lo no seu espaço geográfico, exponencialmente multicultural, multirreligioso e multi-identitário. As cidades europeias encontram-se em profunda transformação espacial e social, tantas vezes sem perceberem como poderão integrar esses “outros” que lhes chegam, de longe e de rompante, com o desejo de usufruir da liberdade que criamos, da igualdade que prometemos e da fraternidade que dizemos praticar. Não há receitas salvíficas, mas talvez - apenas talvez -, estejamos a precisar de aprender com esse “universalismo-outro” que os melhores criadores portugueses sempre souberam praticar. Contribuindo pontualmente para isso, esta exposição deseja ser, também ela, um “local sem paredes”.
Notas
[1] LOURENÇO, Eduardo, «Da não descolonização», in Do Colonialismo como Nosso Impensado (org. Margarida Calafate e Roberto Vecchi). Lisboa: Gradiva, 2014, pp. 252-255
[2] LOURENÇO, Eduardo, «Do pesadelo azul à orgia identitária - trinta anos de política portuguesa 1969-1999», in Do Colonialismo como Nosso Impensado (org. Margarida Calafate e Roberto Vecchi). Lisboa: Gradiva, 2014, pp. 258-297
[3] LOURENÇO, Eduardo, «Portugal: identidade e imagem», in Nós e a Europa, ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1988, pp. 17-27
Os universalistas, 50 anos de arquitectura portuguesa (Parte 1)
O universal é o local sem paredes Miguel Torga - Poeta, dramaturgo e ensaísta português (1907-1995) Este texto foi escrito para a edição francesa do catálogo da exposição Os universalistas, 50 anos de arquitectura portuguesa, evento que a Delegação da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris organizou nessa cidade, no âmbito do seu 50º aniversário, em co-produção com a Cité de l'architecture et du patrimoine.