Documentar a paisagem urbana é tarefa que fotógrafos realizam quase desde o surgimento da fotografia na segunda metade do século XIX. Inesgotável, a cidade continua servindo de matéria-prima para a fotografia, que, em contrapartida, oferece uma imagem de cidade que é, simultaneamente, igual e diferente daquilo que se percebe ao experienciar o espaço urbano.
Mauro Restiffe talvez seja um dos fotógrafos que mais profundamente vive a cidade e seus espaços residuais - aspecto facilmente notado ao ver a seleção de fotografias escolhidas para a mostra São Paulo, fora de alcance, em exibição no Insitituto Moreira Salles de São Paulo e com curadoria de Thyago Nogueira. Reunindo fotos que registram momentos de transformação e desgaste urbano de lugares como a Cracolândia, Bom Retiro, Luz, Itaquera, Ipiranga, entre outros bairros, Restiffe compõe uma imagem fragmentada de São Paulo do período entre 2012 e 2014, mas que - um pouco pela técnica e sobretudo pelo olhar - representa também outros tempos da Pauliceia.
A convite do Instituto Moreira Salles, o ArchDaily realizou uma "entrevista peripatética" com Restiffe em meio à exposição desenhada pelo Metro Arquitetos. Leia a seguir:
ArchDaily Brasil: De acordo com o texto curatorial e outras matérias publicadas sobre seu trabalho, suas fotografias são realizadas a partir de um caminhar, como se você assumisse o papel de um flâneur. Como você acha que suas obras, sobretudo estas da exposição São Paulo, fora de alcance, refletem esse movimento, estes percursos?
Mauro Restiffe: Penso que a maneira como nos locomovemos ou nos deslocamos na cidade é sempre “indo para algum lugar”, saindo de um lugar e indo para outro com um objetivo mais ou menos definido. Mas acredito que dentro desse percurso há sempre coisas acontecendo, outros universos, que a prática do caminhar traz a atenção para o que ocorre nas periferias do trajeto, e é isso que me interessa na proposta dessa exposição. Esse foi um projeto comissionado pelo Instituto Moreira Salles em 2013, devido, em grande medida, pelo que a cidade estava passando nas vésperas da Copa do Mundo, as construções dos estádios, as alterações na infraestrutura da cidade, que seriam efetivadas ao trazer a Copa do Mundo para o país e, no caso, para São Paulo, e que, na verdade, tais alterações não aconteceram. Então, tínhamos o interesse na época de mostrar um pouco essas mudanças, ou pelo menos ter um registro de algo que, com o tempo, fosse mudar de alguma forma a dinâmica da cidade e este interesse no registro dessas mudanças veio do projeto da Nova Luz – quando o Instituto me convidou, através da revista Zum – para documentar a região da Cracolândia. Portanto, tínhamos a preocupação de registrar, de documentar a cidade nesse estado de transição, nesse “pré-estado”. Mas com o passar do tempo, vimos que muitas das questões com as quais nos preocupávamos na época ainda estavam pendentes. Por exemplo, o estacionamento do [Teatro] Oficina, ou a própria Via Congonhas onde até agora não foi inaugurada a via elevada do metrô que liga ao aeroporto; ou seja, tem situações e situações desse registro de tempo.
Mas voltando um pouco à questão do trajeto, foram muitas caminhadas, muitas saídas, e, para este projeto, sempre me desloquei de transporte público ou a pé. E para a exposição, que foi originalmente montada no Rio de Janeiro, pensamos em criar esses painéis que de certa forma também abordam a questão do trajeto –barreiras que se sobrepõem como edifícios na malha urbana. Então aqui quisemos recriar, de certa maneira, essa situação do caminhar, do trajeto na cidade dentro do espaço expositivo através da justaposição de painéis que estabelecem impedimentos e, às vezes, relações entre as imagens.
ADBR: Os painéis foram originalmente pensados para a exposição no Rio?
MR: Sim. Esse projeto foi mostrado pela primeira vez no Rio, na galeria do Instituto Moreira Salles, e adaptado para esse espaço [de São Paulo], então existe uma tentativa de fazer com que o espectador faça esse movimento de percurso pela cidade – oposto àquela visão cartesiana de se relacionar com a obra na parede. As fotos estão em painéis flutuantes que se apresentam individualmente: é um outro tipo de montagem, não tão tradicional, que para esse projeto faz certo sentido.
ABDR: Como se houvesse um prolongamento das obras umas sobre as outras?
MR: É a questão do percurso. As pessoas estão sempre em movimento na exposição, como em um trajeto urbano. É claro que se você seguir uma linha reta, você vai embora, mas se quiser observar com atenção, acabará fazendo um trajeto um pouco mais orgânico.
ADBR: O Thyago Nogueira [curador da exposição no IMS] usou em seu texto curatorial a expressão “urbanista inconsciente” para tentar descrever seu trabalho. Gostaria que você tentasse elaborar se, com a sobreposição de fragmentos do espaço urbano – do vão livre do MASP ao Memorial da América Latina e Itaquerão – em diferentes momentos de 2012 a 2014, você pretendeu criar alguma espécie de cidade mental proposital, ou se é uma coisa menos definida.
MR: Eu acho que há uma visão sobre a cidade, mas não há uma tentativa ou necessidade de se fechar em uma coisa definitiva e rígida. O próprio título [da exposição] já fala um pouco disso, dessa cidade que a gente não consegue compreender, abarcar, por ser tão complexa que, mesmo em um projeto que se propõe a fazer um retrato da cidade, ele vai ser sempre um retrato a partir de um recorte, a partir de uma visão, e que nunca vai dar conta do todo. Durante o processo de feitura dessas imagens, me dei conta de que estava fazendo algo que nunca conseguia se fechar, e daí vem o título São Paulo, fora de alcance, como uma coisa que a gente nunca consegue compreender e abarcar. E penso que as fotos – apesar de obviamente seguirem uma linha, terem uma unidade, uma assinatura que venho empregando no meu trabalho – acabam apresentando uma São Paulo um pouco mais soturna. Ela é habitada – na maioria das imagens, praticamente todas, você vê a figura humana – mas ela é engolida pela cidade, pelo entorno, fazendo parte e, ao mesmo tempo, sendo consumida.
Portanto, acredito que essas fotos tratem da questão do uso da cidade, de como ela flui no sentido de estar sempre em transição. Por exemplo, há muito de ruína e construção: as edificações, o Memorial em chamas, o Templo de Salomão, tudo isso beira quase o absurdo. A imagem do MASP também é emblemática nesse sentido de trazer essa cidade quase ocupada, esse vão que, de certa maneira, pertence a quem estiver lá, dos moradores de rua a estas ocupações espontâneas.
Eu penso muito nisso, nessa cidade que habitamos, mas às vezes passa despercebida. E essas fotografias são, em grande medida, uma leitura quase que das costas da cidade, como em algumas imagens do [Teatro] Oficina, ou do Bom Retiro. Sempre evito imagens icônicas da cidade, acho que na minha tentativa de abarcar, abranger, de fazer uma leitura da cidade, eu tento evitar o que é mais óbvio, mais icônico e que estaria no que as pessoas imaginam de São Paulo, como o Copan, a Paulista...
ADBR: ...o MASP?
MR: Sim, o MASP também, mas essa foto do museu é uma leitura que só quem é daqui entende. Portanto, é um pouco disso, de uma leitura sempre do ponto de vista do pedestre; nunca subo em um prédio para fazer uma foto de um ponto de vista privilegiado, estou sempre no chão, ou atravessando uma ponte, uma passarela, por exemplo...
ADBR: ... sempre de onde se pode alcançar a pé?
MR: Exatamente. Então, qualquer um poderia estar ali. Não há aquela visão de alguém que conseguiu subir em um lugar específico para ter uma visão privilegiada; não, ela é a vida como ela é ali mesmo, a perspectiva sempre do pedestre, daquele que participa e não daquele que olha de cima. Isso para mim é importante nessa leitura, trazer isso para o espectador para que ele, de certa forma, se identifique. Qualquer um que vive em São Paulo já passou por esses lugares e talvez não tenha percebido estas coisas.
ADBR: Parece que há uma espécie de conhecimento tácito nas suas fotos que talvez só alguém que vive há muito tempo em São Paulo possa ter. A ideia de registrar apenas do ponto de vista de onde se alcança a pé me lembrou Michel de Certeau, que comenta que, de cima da torre – no caso ele escreveu sobre o World Trade Center –, olhando para baixo e vendo as pessoas se movendo no tecido urbano, há uma espécie de ilusão do saber, mas o saber urbano só se alcança quando se está imerso no cotidiano da cidade - mesmo que você não se dê conta de que sabe. Esse olhar para as costas da cidade, para o fundo do Teatro Oficina, por exemplo, me fez pensar nisso, que você é alguém que conhece São Paulo por viver, por experienciar a cidade. Isso lhe parece fazer algum sentido?
MR: Sem dúvidas. Acredito que seja isso e também aquilo que comentei antes, sobre vivenciar a cidade com uma certa atenção para o que está acontecendo, sem necessariamente ir do ponto A ao ponto B, mas fazer com que o percurso seja o objetivo. Sempre busco olhar para todos os lados, viver esses deslocamentos, ou simplesmente chegar em algum lugar e ficar ali observando, fazer do percurso o próprio motivo de sair e de registrar a cidade.
A fotografia por si só traz a questão do tempo como algo muito importante e inerente ao meio, e isso é acentuado na fotografia em preto e branco. Em meu trabalho, sempre busco trazer as nuances do tempo para as imagens, pensá-las hoje, mas também como elas serão “compreendidas” daqui 20 anos, ou seja, qual a leitura que teremos dessas imagens com o passar do tempo. Acredito que isso seja característico da fotografia, que é um dos meios – juntamente com o cinema e o vídeo – que melhor captam o tempo; e uma vez captado, ele está em constante mutação, se transformando, e nossa leitura sobre o que foi retratado também muda.
Portanto, acredito que exista também uma tentativa de falar sobre a questão do tempo. Elas [as fotografias da exposição] ainda não maturaram tanto, são de quatro, seis anos atrás, então o tempo não passou ainda em uma dimensão tão grande para possibilitar novas leituras; penso que elas são ainda bem atuais, mas elas também mostram uma tentativa de estabelecer ambiguidades temporais.
ADBR: Essas fotografias de espaços residuais ou não tão visados, nada icônicos, como você disse, quando pensadas a partir do título São Paulo, fora de alcance parecem criar a imagem de uma São Paulo que escapa, constituída por fragmentos que mostram – como no caso do Largo da Batata ou do Itaquerão – um futuro realmente fora de alcance, uma tentativa de futuro que na verdade nunca chega, e isso se evidencia nas fotos que mostram construções em andamento juntamente com ruínas e edificações gastas pelo tempo. Isso faz algum sentido para você? E além disso, você não tem algum receio de que daqui 20, 50 anos, estas mesmas fotografias continuem representando uma espécie de presente, em vez de um passado.
MR: É aquela questão do “Brasil país do futuro”, daquele futuro que nunca chega, mas isso é, em certa medida, a característica da nossa postura. Acho que temos, infelizmente, essa dificuldade de romper com certos padrões e de aceitar o novo, de aceitar mudanças que viriam para ficar e que sempre acabamos deixando. Penso que isso é bem característico da sociedade brasileira e se reflete na cidade, no Estado, e assim por diante.
É difícil responder. Para dar um exemplo, em primeiro de janeiro de 2003 fiz as fotos da posse do Lula e na época as fotos mostravam uma perspectiva de uma mudança no país. Agora, com o passar do tempo e toda essa reviravolta na história, estamos aí de novo, e ele [Lula] como protagonista quase do avesso de tudo aquilo que se esperou. Hoje em dia vejo as fotos da posse com outros olhos, tentando voltar um pouco para trazer de volta aquela esperança que havia no ar. Acho que esse exemplo responde um pouco sua pergunta e acredito que exista uma relação entre esses dois trabalhos. Esta exposição mostra o retrato de uma cidade em um determinado momento, pré-transformação; depois, essas transformações chegam e, na verdade, nunca se sedimentam, são muito pontuais e acabam não efetuando as mudanças que precisariam ser feitas. Acho que isso é característico de várias metrópoles, mas São Paulo, em especial, tem uma carga de problemas que nunca se solucionam, temos aí a Nova Luz, que foi anunciada mas permaneceu sendo a Cracolândia, uma área negligenciada.
ABDR: Na época já aconteceram algumas expulsões, e ano passado de novo, e vai continuar acontecendo...
MR: Sim, é um descaso com os dependentes, com o entorno. A maneira como se trata, ou se fala: “vamos fazer uma limpeza e esse bairro vai ser a Nova Luz”, isso é uma distopia totalmente higienista. O Teatro Cultura Artística está ali há muito tempo; aqui é uma visão lateral da Roosevelt, pegando o mural do Di Cavalcanti - dizem que vão restaurar, mas está lá parado. Aqui é foto de uma das manifestações pré-Copa, que em um momento bem pontual de 2013, nesse processo de sair à rua e protestar por algo um pouco maior do que a gente recebe. São bem características, imagens que falam um pouco daquele momento, mas que também refletem o que a gente vive hoje. Como eu disse, não é uma tentativa de definir uma visão sobre a cidade, mas de mostrar a cidade por um outro ângulo – e isso se encaixa dentro de minha produção, em que busco respeitar uma linguagem e fazer dessa linguagem uma leitura sobre a cidade.
ADBR: O porquê do preto e branco você já comentou, mas por que o filme de alta sensibilidade?
MR: Essa é uma pergunta bem bacana. Eu sempre fotografei em situações diversas, nunca utilizei tripé, iluminação artificial, ou flash, então esse filme me permite fotografar em situações diversas, como no cair da noite, ou em interiores, ele ajuda a flexibilizar minha atividade. E o fato de ser de alta sensibilidade também enfatiza esse grão, que estoura, extrapola. Gosto muito do que acontece na primeira imagem, em que o grão quase vira um elemento da foto: o incêndio, a fumaça que vira nuvem, e o grão vira o próprio fundo da imagem – chegando um pouco mais perto você não consegue distinguir o que é fumaça, o que é grão e o que é matéria. Portanto, existe certa relação com o desenho e com a pintura também; acho que isso é uma característica do filme – asa 3200 – que geralmente é usado para fazer cópias pequenas, em que é possível manter o grão em uma escala mais cômoda, de certa forma.
No início do meu trabalho, há mais de 20 anos, vi esse grão com essa natureza e comecei a explorá-lo na minha obra, e isso virou uma característica, uma assinatura, por isso ele é bem presente, tem um corpo, e acho que pensar o grão da fotografia preto e branco contextualizado na história da fotografia e como essa história mudou com o digital, também faz com que esse processo ganhe um pouco mais de força.
Venho fazendo isso há mais de 20 anos, então, peguei a transição do filme para o digital, mas nunca me interessei por ele. O processo digital começou a moldar a fotografia de uma forma muito definida, com o alcance da definição, por exemplo, aspecto que vem da câmera de grande formato, e esse meu processo em 35 milímetros é praticamente uma negação disso. Então, existem essas características do filme que me agradam, que enfatizam essa distorção temporal e essa atemporalidade, ou estranhamento na compreensão dessas imagens nos dias de hoje. Você se pergunta: de quando é isso? E isso eu acho que é bem característico do próprio filme, do processo preto e branco e do que a fotografia está passando hoje em dia.
ADBR: Você faz o percurso de transporte público ou a pé, então, você efetivamente está lá. Embora eu tenha lido sobre o seu trabalho que existe uma espécie de distanciamento entre você e a cena, eu vejo que há, também, certa aproximação, pois, fisicamente, você está lá, de frente para aquilo que está sendo fotografado em uma relação muito estreita. No entanto, para quem está vendo uma foto sua, à media que nos aproximamos, ela se desfaz, fugindo de nosso alcance – sendo necessário distanciarmo-nos para compreendê-la. Me parece que você cria uma relação diametralmente oposta entre a feitura de suas imagens e a experiência de vê-las.
MR: Eu tento me tornar o máximo possível invisível. Mesmo estando presente, tento fazer com que a presença da câmera não seja uma imposição e aquele que está sendo fotografado não sinta a presença da câmera. Na fotografia, diferentemente por exemplo da pintura, em que você constrói uma imagem dentro de uma tela, você faz um recorte da cena que vê, para depois apresentar isso dentro de um espaço expositivo - e aqui acho que há essa tentativa de distanciamento, você está dentro, mas ao mesmo tempo fora.
ADBR: Me parece que na fotografia documental, no registro do cotidiano urbano por exemplo, a câmera, enquanto aparelho, atrapalha, cria uma espécie de tensão.
MR: Você diz, no ato de fotografar?
ADBR: Sim, ela assusta ou...
MR: É, precisa saber lidar com ela no ato de fotografar. Eu faço isso há muito tempo, então já tenho técnicas para me relacionar com a câmera fora do meu espaço doméstico. É muito diferente a relação com a câmera quando você está no seu habitat e quando você está na rua ou em lugares que você não conhece, cidades que você não conhece, países que você não conhece; fazer essa intermediação é algo que exige experiência.
Quando algo me chama a atenção, procuro fotografar sem ser notado. Essa é a ideia: registrar uma cena sem que quem ou o que esteja sendo retratado – mesmo que não seja algo animado, uma figura, mesmo a arquitetura ou a cidade – perceba a minha presença ou a da câmera.
Mas, tem algumas situações onde me interessa também estar presente, ficar presente, se impor ali como alguém com a câmera captando o momento, captando certas situações que aconteçam frente à câmera. Então varia muito, mas acho que nesse projeto, o desaparecimento da câmera me interessa.
ADBR: Você consideraria esse tipo de registro documental?
MR: Eu acho que sim, acredito que a questão do documento está sempre presente na fotografia, principalmente nesse tipo de fotografia. É muito difícil falar hoje em dia se um tipo de foto é documental, ou outro é artístico; isso não me interessa, não tento pensar a fotografia como arte, estou atrás de um registro, e o registro está ligado a um documento. Então, acho que ela está mais próxima de algo documental – apesar de não ser fotografia documental ou foto jornalística – do que de uma tentativa de elevar isso à arte, apesar de estar inserida nesse universo [do museu].
ADBR: Sobre o que você comentou dos espaços e arquiteturas icônicas, que não é a ideia registrá-las... fiquei um tempo olhando para esta e, embora não me incomode, gostaria de saber se há alguma intenção por trás de ter cortado o topo do edifício – algo que um fotógrafo de arquitetura provavelmente jamais faria.
MR: Igual a primeira foto, que abre a exposição, ela é exatamente o mesmo plano desta aqui, é o Monumento do Ipiranga cortado em cima. O que isso significa? Acredito que isso traga o espectador para o plano do chão, para o que está acontecendo embaixo.
ADBR: Absolutamente proposital.
MR: Com certeza. Talvez eu não tenha calculado perfeitamente através do visor da câmera, raramente faço isso, mas estou sempre me relacionando mais com o plano no embate, da perspectiva do pedestre. Assim, também trato das coisas que estão acontecendo aqui nesse plano, e acho que essa foto fala muito da arquitetura urbana, da cidade e, ao mesmo tempo, é quase como uma coreografia, mostrando o movimento de saída das mulheres do Bom Retiro às cinco da tarde na [rua] José Paulino, que são essas lojistas que quando saem, saem em massa, é uma multidão delas.
E eu acho que eu gosto dessas coisas meio erradas de enquadramento, que não é o enquadramento perfeito, e há várias fotos assim na exposição: aquela do Ipiranga é bem emblemática nesse sentido, e abrimos a exposição com ela por esse motivo, ela é quase as costas da outra, situada no lado oposto deste painel. Ela não é apologética, fala de um monumento mas fala mais de trabalho, da estrutura, das figuras que habitam esse monumento, um pouco dessa fusão entre as figuras representadas e o próprio monumento em si, de como as pessoas ocupam estes espaços públicos. Isso me interessa mais do que fazer a foto do monumento em si, então acho que ela resume um pouco a minha prática nesse sentido. O foco de interesse acaba sendo mais periférico, ele não fica na centralidade. Ele tem um centro, mas a periferia da imagem me interessa bastante, o que acontece nas bordas, nos cantos, o que extrapola a imagem.
ADBR: Poderíamos dizer que, ao extrapolar para as bordas, as imagens – mesmo que tenham sido feitas em momentos diferentes – procuram se prolongar umas sobre as outras, amarrando-se e criando uma imagem maior?
MR: Sim, e já fiz isso em outros projetos. Esses planos do projeto expositivo permitem certa autonomia das imagens – cada uma tem uma leitura autônoma, é uma montagem que prioriza a individualidade no sentido de você poder ler uma por vez – mas uma vez que você está em movimento, pode estabelecer leituras que incorporem esse ritmo, essas perspectivas e justaposições, algo que é muito diferente do plano da parede. Na parede, tudo está no mesmo plano, aqui com os planos dos painéis você pode sempre ter novas leituras à medida que você se orienta no espaço. Nesse projeto expográfico do Martin Corullon, da Metro Arquitetos, afinamos bem essa tentativa de conduzir o expectador.
ADBR: Para finalizar, eu arriscaria dizer que você, até pelo discurso, não só pelas imagens, fotografa com lentes 35 e 50 milímetros.
MR: 35 milímetros. Eu só uso uma lente, faço tudo com a mesma lente, mesma câmera, uma coisa muito simples em termos de produção, não gosto de ficar com muito equipamento. E o filme 3200 me possibilita isso, pois do contrário eu teria que andar com um tripé para captar certas cenas pouco iluminadas, então tem essa facilidade de movimento. Eu até tenho uma lente 50mm mas fiz muito pouca coisa com ela, quase nunca uso. Não fico trocando lente, eu saio com uma lente e pronto.
ADBR: Então, o zoom são as pernas?
MR: Exatamente! Dois passos para frente, dois passos para trás.
A exposição São Paulo, fora de alcance, está em cartaz no IMS da Av. Paulista até 26 de agosto de 2018. Saiba mais aqui.
Entrevista e edição: Romullo Baratto
Transcrição: Julia Brant