Enquanto contemplávamos o vestíbulo da Biblioteca Laurenziana, recordo-me distintamente de parafrasear Giorgio Vasari: Agradeço a Deus por ter nascido no tempo em que Álvaro Siza está vivo e por ser digno de tê-lo como um mestre em condições tão amistosas. Uma versão muito mais eloquente foi dedicada ao "divino" Miguel Ângelo Buonarroti na original Vida dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitectos (1568), no entanto soava igualmente verdadeira na presença do "místico" Siza – epíteto proferido por Eduardo Souto de Moura. Naquele momento, em Florença, o arquitecto da escultura e o escultor da arquitectura encontravam-se metafisicamente face a face sob a forma de uma escada, cuja silhueta viveria para além do tempo, transformada pelo Barroco e reinterpretada por muitos autores – de Charles Garnier até Alvar Aalto – mas talvez por nenhum com mais entusiasmo do que o próprio Álvaro Siza.
A escadaria do Museu Internacional de Escultura Contemporânea, em Santo Tirso, intersecta os universos da escultura e da arquitectura num único elemento, representando simultaneamente as qualidades objectuais de uma estátua e a ascensão processional de uma mini-acrópole. Tardou cerca de três meses a projectar devido aos seus maneirismos paradoxais: o contacto a partir do afastamento, a leveza a partir do pesado, a luz a partir da sombra, a assimetria a partir da axialidade e a ilusão estrutural a partir da verdade material. Nesse sentido, Siza e Miguel Ângelo – tal como a arquitectura e a escultura – pertencem à mesma família artística, onde vocabulários modernos podem coexistir com cânones clássicos por continuidade, contradição e hibridação.
Quer se trate de uma rocha extrudida, uma escada simbólica, um monumento revolucionário, uma escultura prismática ou uma pirâmide em Gizé, o palimpsesto recorrente é a obliquidade no espaço, a perspectiva forçada e a reflexão dinâmica de diferentes direcções, englobando a natureza totalizadora do percurso arquitectónico ou da narrativa artística através da posição da obra em relação à chegada do seu observador. Por exemplo, Siza projectou uma sala para a última obra-prima de Miguel Ângelo – a Pietá Rondinini – onde a estátua não é colocada contra uma parede, mas ligeiramente descentrada a 45 graus, permitindo assim admirá-la como um todo graças à rotação dos visitantes.
A abstracção inacabada da Pietá está mais próxima da escultura contemporânea, onde a emoção supera o realismo, e o quebrar ou o desmembramento tornam-se ainda mais enternecedores pelo simples toque da face materna. Os membros parecem talhar furiosamente a sua fuga do bloco de pedra, conforme as figuras antropomórficas de Álvaro Siza parecem lascar-se e brotar do tronco de uma árvore. Conheci melhor esses personagens – esses "Personaggi" – juntamente com François e Linde Burkhardt, em Gaeta. Entre ecos da pureza de Constantin Brancusi, da esbelteza de Alberto Giacometti, da geometria de Eduardo Chillida e das acrobacias de Mimmo Paladino, foi a síntese de Andreu Alfaro o que mais me comoveu.
No entanto, há que confessar que nem Siza nem eu estávamos familiarizados com a obra de Alfaro antes da sua morte, em 2012. Enquanto a arquitectura de Álvaro Siza havia sido catapultada à aclamação internacional, após a Revolução dos Cravos (1974) – em grande parte devido aos projectos de habitação social em Portugal, Alemanha ou Holanda –, esse não seria o caso para a escultura de Andreu Alfaro, como resultado de um clima sociopolítico que dificultaria o seu amplo reconhecimento artístico. Na actualidade, é merecidamente reconhecido e exibido em todo o mundo, à semelhança de Siza, que desde então se tornou figura definidora da Escola do Porto, redentor do incendiado centro histórico de Lisboa (Chiado) e, intelectualmente, um dos nossos mais relevantes "embaixadores".
Combinados, os seus corpos de trabalho formam um dueto prodigioso, mutuamente similar e dissonante, humilde e monumental, silencioso e cheio de histórias, ritmos, jazz. Afinal, foi o jazz que proporcionou tanta alegria ao coração de Alfaro, entre a partitura e a inspiração – como diria Siza –, improvisando árvores e torres dos botões sincopados de um trompete. Esses discos sobem e descem com a melodia, com a liberdade natural de um jardim ou os níveis de perigo no treino de um bombeiro.
A aliteração musical dos nomes de Alfaro e Álvaro foi clara desde o início, por isso propus o título "ALFARO SIZA"; dois se convertem em um graças a uma só letra, um "f", que correspondia a um "v" na fonologia anglo-saxónica. Dificilmente serão o primeiro duo na história de fonética compartilhada, contudo a sua mútua admiração está longe da antagónica equivalência de Bernini e Borromini. Ao contrário de Mozart e Salieri ou Da Vinci e Miguel Ângelo, que destruíram tudo o que não encarnava o seu génio, temos o benefício de dois arquivos contemporâneos que rivalizam unicamente em prolífica diversidade: de arquitectura e escultura ao design gráfico e industrial.
O valor epistemológico nasce da mestiçagem dessas áreas do conhecimento e, embora os polímatas se designem coloquialmente como Homens Renascentistas, Iluministas ou Homens Universais, prefiro utilizar a expressão Homens Vitruvianos ao referir-me a estes autores, porque reconecta a física fundadora da proporção com o potencial metafísico de Alberti para desvendar a mecânica interna do universo. Num mundo edificado por De architectura (15 aC) e princípios de funcionalidade (utilitas), tectónica (firmitas) e beleza (venustas), foram homens vitruvianos como Darwin, Galileu e Shakespeare, entre muitos outros, que ampliaram a compreensão cosmográfica da condição humana.
Álvaro Siza encetaria com aspirações de escultor. No entanto, os planos paternos implicavam um estilo de vida menos boémio – engenharia –, comprometendo-se com a arquitectura após uma viagem de família a Barcelona, em 1948. Siza viu os edifícios de Gaudí transfigurar algo tão elementar como um corrimão, uma chaminé ou uma cobertura em ondulantes peças de arte, o que – juntamente com a orgânica capa de Aalto em L'Architecture d'Aujourd'hui (1950) – implantou firmemente o nosso jovem artista em território arquitectónico. Arquitectos com identidades artísticas e vice-versa eram o subproduto óbvio do ensino paralelo de arquitectura, pintura e escultura na Escola de Belas Artes do Porto (ESBAP), onde os manifestos radicais de Vers une architecture (1923), a Carta de Atenas (1941) ou o Modulor (1948) se haviam enraizado entre uma nova geração. O reitor – Carlos Ramos – era reconhecidamente um bauhausiano, assim como Andreu Alfaro segundo Em Torno Da Escultura. Escritos e Entrevistas (2015):
"Eu percebi que os arquitectos em geral estavam interessados no que eu fazia, talvez porque a arquitectura era uma das coisas que me interessava há anos. Eu era um conhecedor e continuador da Bauhaus, por isso havia uma certa afinidade entre o que os arquitectos pensavam e construíam e o que eu pensava”.
No centro desta crónica temos um escultor que aspirava ser arquitecto, algo que teria sido perfeitamente normal durante o Renascimento, mas que ruiu nas primeiras décadas do século XX. Recentemente, escrevi sobre essa separação tecnocrática de baukunst (arquitetura) e kunst (arte) para o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, em Chaves. Nadir acreditava que a função era incompatível com a arte e abandonou a arquitectura, mesmo após investir no projecto de uma máquina apelidada Espacillimité (Espaços Ilimitados). Aqui, o legado de Álvaro Siza é uma sequência cinética de planos que fluem sob o museu, como uma Homenagem a Platão, uma paisagem de reverberações do Construtivismo, Neoplasticismo e Cubismo que desafia o alcance da abstracção visual sem precedentes em Cinquenta Anos de Arte Moderna (1958). Foi aí, em Bruxelas, onde Andreu Alfaro transcendeu antes de mais os cortes e secções do talho de seus pais em voluptuosas esculturas de informalidade lírica.
Do Atomium ao Arrow ou ao Pavilhão Philips, a modernidade auto-evidente desta Exposição Universal marcou o início de uma era de arquitectos tentados pela escultura: Le Corbusier, Oscar Niemeyer, Frank Gehry, Richard Meier, Zaha Hadid, Herzog & de Meuron, Aires Mateus... No entanto, também se poderia argumentar que a pósmodernidade e a ausência de um paradigma pós-moderno conduziram os artistas às suas próprias experiências arquitectónicas: Christo e Jeanne-Claude, Robert Smithson, Richard Serra, James Turrell, Anish Kapoor, Ai Weiwei, Olafur Eliasson... Perfeitamente ilustrado pelo espaço negativo esculpido por Chillida dentro da Montanha Tindaya, a relação com as esquinas, pátios e clarabóias de Siza é sempre uma questão de escala, tanto no Pavilhão de Portugal (Lisboa) como no subterrâneo Centro de Turismo Colombo (Madrid).
A praça do Pavilhão de Portugal é muito menos monolítica. Parece leve, como uma catenária das maquetes de Gaudí, levitando um lençol de betão com 60 metros de comprimento. Se conceptualmente insuflada por ar, esse tela tornar-se-ia no seu oposto abobadado – o Pavilhão de Gondomar – e o espaço público converter-se-ia numa porta simbólica. Ambos, Siza e Alfaro, são fascinados por portas à escala urbana ou doméstica: a Porta da Ilustração, em Madrid, é uma espécie de duplo Arco do Triunfo que joga com direccionalidade e perspectivas alongadas da mesma maneira que Borromini, na Galeria Spada; a Porta V, obscura como a Porta do Inferno de Rodin, é o gesto essencial da proporção humana por trás do ângulo tridimensional da Promenade Álvaro Siza, que liga a VitraHaus de Herzog aos bombeiros de Hadid; A Porta do Universo, em Frankfurt, enfrenta o céu com um círculo sustentado por um quadrado, signo da pedra filosofal e, portanto, da imortalidade, da iluminação e da divindade.
Os monumentos de Andreu Alfaro são umbrais egípcios entre a vida e a eternidade, que traduzem o subtexto ético de uma cultura colectiva à sociedade. Consequentemente, não será coincidência que Álvaro Siza tenha elegido uma antiga equação geométrica – a quadratura do círculo – para a planta de sua Igreja Anastasis. Em Rennes, o Homem Vitruviano de Da Vinci converge com o Palácio de Carlos V de Machuca, porque Deus é um círculo sem princípio nem fim, tocado somente pela ortogonalidade dos homens. Gott Natur destila a centralizada sobreposição de espacialidade barroca e alçados românicos num arquétipo inovador, mesclando as correntes vivas – como lava – de Sturm und Drang e os blocos estáticos da Vida e da Morte, da Memória. A equivalência arquitectónica pode ser encontrada na topografia artificial que é o próprio Museu Iberê Camargo, e no cinzelar linear do Auditório de Bilbao ou da Capela do Monte, em Lagos.
Nesta conjuntura, as teorias de Oteiza sobre caixas abertas cruzam-se com as composições modulares de ALFARO SIZA, particularmente nas suas abstractas possibilidades antropomórficas: pernas dobradas, torsos e máscaras. Uma alusão ao movimento já estava latente nos pés estendidos de Ramsés, algo que continua vivo na reverência das figuras asiáticas de Siza ou na prostração de um Escriba Sentado.
O que é bom encontra-se frequentemente aberto a diferentes interpretações; porém, as trilogias permitem referenciar a um nível multidimensional, como é o caso dos personagens-menir ou colunas-ruína, em Itália e Inglaterra. Em qualquer caso, as propriedades transversais da expressão humana convertem esses pseudohomens em seres sem rosto, corpos que correm e se caem separados dos seus crânios. Os bustos decapitados aparecem individualmente por meio de máscaras e fachadas – em Palladio ou Loos – com a excepção do crucifixo e da cabeça omnisciente de Cristo, pedra angular da fé invisível.
O Espírito Santo é habitualmente representado por uma pomba – a sua paz foi gravada por Le Corbusier no Monumento da Mão Aberta – e o seu vôo foi obsessivamente registado por Da Vinci, Picasso, Eames e, evidentemente, Alfaro e Siza. Mais do que os esboços de cavalos, os Pássaros tornaram-se declarações iconográficas da impermanencia, transmitindo o movimento crítico de uma geratriz com a simplicidade de uma pluma. Do ponto de vista do design de produto, Siza tem várias iterações mas nenhuma tão pertinente como o Ovo Papal, de 2010, apesar da sua pomba cerâmica estar associada com Afrodite antes do cristianismo.
Uma deusa grega, erótica e sensual, era exactamente o que buscava alcançar Andreu Alfaro mediante a secção de uma coluna salomónica, com a pele carnuda e polida de Bernini no Rapto de Proserpina. Outras Afrodites metálicas emergiriam como linhas traçadas no espaço, todavia a subjacente composição helicoidal poderia também formar minaretes, reconectando arquitectura e escultura vezes sem conta. Em Nova Iorque, Álvaro Siza não está a construir um minarete mas sim uma torre, elegantemente vertical. O seu mármore branco evoca a mais recente escultura da Fundação Gramaxo, que reforça a tese do contacto por meio da suspensão, conforme a sinalética para a Abadia de Thoronet. A pedra é uma amiga – parafraseando Le Corbusier na sua visita à Abadia (1953) – e a seta marmórea de Siza é alegoricamente extrudível numa branca capela coreana.
Não muito longe, em Saya Park, um pavilhão de arte está quase concluído; a sua origem como museu madrileno para dois Picassos já esquecida. Siza recria uma estrutura bifurcada, semelhante à de uma ponte e a Outro Amor de Alfaro, onde a peça curvilínea e a sua consola são tão elementares como indispensáveis. Indirectamente, acredito que isso tenha informado o layout orgânico da Shihlien Chemical, bem como o subconsciente martelo e a foice do símbolo comunista.
A beleza advém da paixão, dos braços abertos de um amigo, um edifício ou uma estátua. A devoção extraordinária destes dois autores torna impossível escrever sobre tudo num único abraço, especialmente se o escritor é propenso à mitologia. Poderíamos falar de ziguezagues, espirais, luas e livros, contudo terminaremos com duas peças favoritas. Encontrei estes protótipos dos anos 80 juntamente com Andrés Alfaro Hofmann, no dia mais chuvoso de Valência – de acordo com o meu anfitrião: Fran Silvestre. Ao passar por armazéns que poderiam preencher o museu imaginário de Malraux, fui cativado pela simplicidade enganadora de um estudo em particular, um Fragmento reminiscente da Chaise Longue de Álvaro Siza. Os ângulos, a rotação e a duplicação volumétrica contam uma história de equilíbrio vitruviano, de um escultor em busca de constância e da ressurreição artística de um arquitecto.
Nem o anterior mobiliário de jardim nem o seguinte Espelho Álvaro foram concebidos como esculturas, são objectos práticos para uso diário e, quiçá, aí reside verdadeiramente a sua poesia. A sabedoria construtiva do espelho é tão inovadora como a sua intenção conceitual, desafiando a gravidade com o mais humilde dos arames, jogando com o corte e a intersecção perímetral, unindo formas rectilíneas e curvilíneas, sintetizando a heteronímia pela reflexão e demonstrando Simetria Assimétrica – título por destino do segundo protótipo de Alfaro. Com a escultura sempre presente, Siza escreve em Textos02 (2018) e Sobre a dificuldade de desenhar um móvel (1984):
"Nada é mais próximo da Arquitectura do que a Escultura. Cada plano é transição para outro plano. Sobre eles passeia a luz. Não é possível desenhar a Escultura, representá-la em duas dimensões. Sempre o que se representa – e como – se revelam insuficientes, pois a superfície da escultura não tem princípio nem fim, nem cabe numa folha de papel." (…) "O objecto perfeito será um espelho sem moldura nem lapidado – o fragmento de um espelho – poisado no chão ou encostado a um muro. Nele um míope observa formas, sombras em movimento, reflexos de reflexos."
Excerto em português do Catálogo: AlfaroSiza. Título original :"Os Homens Vitruvianos".