A arquitetura revela a realização dos processos culturais de uma sociedade em determinado momento da história e reflete em seus elementos a expressão tanto do modus operandi de uma economia como dos valores dominantes que regem sua organização. A partir da idealização de um projeto arquitetônico surge um intenso processo interdisciplinar de elaboração formal e verificações técnicas para cada componente da construção, e seus procedimentos de execução. A arquitetura tem como dever a transformação dessas diversas linguagens em uma gestalt, ou em um fato formal que articula e verifica propriedades vitais sobre a realidade.
Diversos são os fatores que provocam distorções no processo da arquitetura em diferentes regiões do planeta. O estado da arquitetura depende diretamente da qualidade da formação dos profissionais, da interdisciplinaridade, e dos recursos disponíveis. A Cultura e a economia de um contexto determinam o que - e como - a arquitetura pode operar.
No exercício da profissão, o arquiteto brasileiro vê-se, muitas vezes, operando de forma solitária, com a obrigação de compensar diversas carências do contexto, como a limitação da mão de obra, dos recursos técnicos e serviços, sofrendo com a dificuldade da esfera publica de integrar disciplinas e instrumentos de planejamento, obrigando-o a gerir ele mesmo o emaranhado de componentes legais.
O tema da formação do arquiteto no Brasil também tem sido um debate corrente dentro das principais instituições organizadoras da profissão. A dificuldade de construir uma visão nacional / regional sobre o ensino tem acentuado ainda mais uma desigualdade regional no preparo das novas gerações de arquitetos. Questões como o nivelamento do ensino, existência ou não de um exame de ordem, e questões de responsabilidade técnica, são alguns dos elementos dessas discussões.
Para embasar o debate da arquitetura no Brasil, é importante verificar o sucesso de fundamentos estruturais de outras sociedades, como alguns dispositivos e elementos da experiência Norte-Americana. Talvez um dos únicos fatores que aproximem a realidade entre Brasil e Estados Unidos seja exatamente a escala do território, as grandes discrepâncias entre as diferentes regiões, e a diversidade cultural dos países. Apesar do óbvio contraste na escala das duas economias, as ideias que tangem a arquitetura nos Estados Unidos são efetivas, em grande parte pela organização da estrutura e o entendimento das responsabilidades civis do serviço prestado pelo arquiteto.
Under-graduation e Cursos profissionais / Não-profissionais + Masters
O primeiro fato importante para a compreensão da formação superior nos Estados Unidos é a estrutura da graduação, e as aplicações profissionais ou não desses cursos. Cursos de arquitetura de 4 anos não são programas considerados profissionais, ou seja, não permitem o exercício da profissão e requerem uma extensão após o curso, ou um 'masters' para que o indivíduo ganhe a condição técnica mínima para praticar a arquitetura. Todos os cursos de 5 - 6 anos são considerados profissionais e permitem o exercício da profissão. Entretanto é importante ressaltar que antes do curso específico profissional, a maioria dos estudantes americanos ingressam do colegial para cursos de ‘under-graduation’ que, na verdade, são programas com matérias de caráter mais generalista que em 1 / 2 anos preparam o aluno para escolher posteriormente o curso de 4+ anos que irá prepara-lo para a profissão. Não é uma etapa obrigatória mas grande parte dos jovens escolhem passar pelo ‘under-graduation’ para gerar os créditos necessários para a aplicação dos cursos específicos e escolher melhor a profissão. Em média, um aluno se forma na graduação em qualquer profissão nos Estados Unidos entre 5 e 6 anos. O ‘masters', para quem opta em fazê-lo, adiciona mais 2 / 3 anos dependendo da universidade. Nesta estrutura, o indivíduo além do treinamento técnico, amadurece como pessoa, e sai mais preparado para o mercado.
NCARB e Período de Experiência
Depois de formado, o arquiteto recém-graduado não detém ainda a autonomia de assinar ou assumir responsabilidade técnica de projetos. O arquiteto é, então, obrigado a passar por um período de entre 2 e 3 anos para registrar horas de experiência profissional nas diversas etapas de um projeto. O registro das horas deve ser feito no portal do NCARB (Conselho Nacional de Registro dos Arquitetos), e aprovados por um arquiteto licenciado e membro do AIA (Instituto dos Arquitetos Americanos), normalmente um arquiteto senior ou coordenador do projeto. O arquiteto precisa vivenciar todas as fases do processo da arquitetura e desenvolver ferramentas próprias para desenvolver as complexidades da coordenação.
Após, completar as mais de 3.000 horas (cada estado americano requer uma carga horária diferente, Nova Iorque pede 3750 horas, por exemplo) requeridas pelo período de experiência, o arquiteto será avaliado quanto ao seu conhecimento técnico adquirido, sistemas construtivos, responsabilidades civis, legislação e até formulação de contratos e gestão de recursos financeiros. O conteúdo das avaliações varia entre os estados americanos, e a extensão da responsabilidade técnica será conferida somente no exercício profissional em estados no qual foi aprovado nos exames. Estados como Califórnia e Nova Iorque, que são mais exigentes nas avaliações, normalmente conseguem validar suas licenças nos outros estados.
Este longo processo, apesar de parecer restritivo à atividade profissional, garante um controle social sobre a performance do que é projetado, determinando a linha no qual os profissionais precisam se nivelar. Dentro das especificidades de cada estado, as diferenças nas avaliações buscam garantir, por exemplo, que os arquitetos de Nova Iorque possam calcular edifícios que resistam a furacões, os da Califórnia para terremotos, os de Phoenix para temperaturas acima de 45° C, e os de Chicago para -35° C. Esse esforço busca-se prevenir desastres e assegurar que as edificações desempenharão suas funções de forma eficiente e segura.
Seminários "Lunch and Learn"
Outro importante item da formação dos arquitetos nos Estados Unidos é o‘Lunch and Learn’. Em parceria com o AIA, os escritórios de arquitetura são incentivados a promoverem esses seminários/cursos semanais no intervalo do almoço, que tem como objetivo apresentar novas tecnologias, produtos, ou cursos técnicos.O evento é realizado no próprio escritório de Arquitetura, e é pago por quem os apresenta. Esses eventos contam como créditos para a licença profissional e o arquiteto precisa completar um mínimo (para o Estado de Nova York) de 12 horas, ou 12 eventos, e muitos também são treinamentos técnicos com certificações profissionais. O 'Lunch and Learn' tem um papel fundamental para promover tecnologias e serviços, além de manter os profissionais atualizados quanto aos recursos disponíveis no mercado.
Controle Financeiro – ‘Costing Consultant’
Um importante elemento do processo de projetos de grande escala aqui nos Estados Unidos, é o consultor de ‘Costing Consultant' do projeto. Além da figura da Gerenciadora, ouo ‘Construction Manager’ do projeto (normalmente a própria incorporadora, ou uma empresa que representa o cliente), o‘Costing Consultant' é uma empresa contratada paralelamente ao contrato do corpo técnico que tem a responsabilidade de fazer a ponte entre o projeto e os fornecedores de materiais, de promover concorrências entre prestadores de serviço / sistemas construtivos, e principalmente o de gerir o orçamento global da construção. O escopo começa normalmente a partir do projeto básico, e se estende por todo o executivo até o fim da obra, dando suporte à construtora e ao cliente. A cada revisão ou emissão de desenhos, a arquitetura precisa gerar um memorial detalhado a ser constantemente atualizado que apontar cada mudança no projeto para que o‘Costing Consultant' mantenha o controle de cada componente. Essa empresa vai auxiliar a gerenciadora na escolha dos produtos e no contato com todos os fornecedores para atender a expectativa de custo do cliente.
Shop Drawings e Mock-Ups
Os ‘Shop Drawings’ são elementos cruciais da parceria entre arquitetos e fornecedores nos Estados Unidos, e recursos fundamentais para a investigação e elaboração do design em projetos de arquitetura. Os ´Shop Drawings´ são desenhos feitos por fornecedores de diversos produtos, como sistemas de fachada, divisórias/ portas especiais, pisos elevados, elevadores e esquadrias, dentre outros, que partindo do projeto executivo de arquitetura / complementares, produzem seus próprios desenhos de execução. São sugestões de quem fabrica as peças, para que o arquiteto tenha controle do que será executado. É responsabilidade do arquiteto aprovar, ou não, cada componente dos desenhos apresentados pelos fornecedores, e ao fim do processo essas serão as reais referências do que será fabricado e entregue na obra.
Em complemento aos “Shop Drawings”, fornecedores também montam os ´Visual Mock-Ups´ ou amostras / provas em escala real do será construído. Essas amostras têm como objetivo a verificação do que foi especificado em projeto, além de possibilitar a realização de testes antes que se faça a encomenda final do produto, como as opções de cores de caixilhos, vidros, selantes, detalhes de guarda-corpo e encaixes. Além de desonerar uma porção considerável do escopo de detalhamento do escritório de arquitetura, tanto os 'Shop Drawings' como os 'Visual Mock-Ups' servem para explorar diversos aspectos e opções de design do projeto. São amostras que auxiliam tanto para a visualização do arquiteto do que foi especificado quanto do cliente. Todo o processo dos 'Shop Drawings' e 'Visual Mock-Ups' são intermediados e supervisionados pelo consultor de ´Construction Management´.
Contratos 'Guarda-chuva'
Por último, um fato que é bastante comum nos Estados Unidos e que no Brasil ainda é exceção, são os contratos “guarda-chuva”, ou arranjos em que o escritório de arquitetura detém o contrato global do projeto. Nesse caso, o escritório de arquitetura é o único a assumir o compromisso com o cliente e os consultores são escolhidos e contratados pelo escritório de arquitetura. Como nos Estados Unidoso poder público cobra relatórios e acompanhamento de diversos especialistas ao longo do processo de construção da obra, a gestão paralela do cliente com todas as disciplinas se torna mais complexa. Com isso, o contrato guarda-chuva responsabiliza o arquiteto a conduzir integralmente o processo, e escolher os projetos complementares a partir do que se necessita realizar no projeto e do perfil desejado para a coordenação. Desta forma, o escritório de arquitetura acaba por impor ao mercado alguns pré-requisitos, principalmente de softwares e especialidades, que impõem um perfil diferente aos escritórios de engenharia. A arquitetura de certo modo passa a moldar o ‘drive’ das especialidades dos projetos.
Para Onde Vamos?
Vários desses elementos da cultura americana podem auxilar e orientar o debate da realidade brasileira. Pensar em uma estrutura nacional dando flexibildade a particularidades regionais, que promova uma transição mais efetiva do recém-formado à atividade profissional, que gere um maior nivelamento técnico dos arquitetos, e que ofereça meios que amparem e auxiliem no desenvolvimento de carreiras, com certeza benefeciariam a qualidade do que se projeta. São dispositivos que facilitam a interdisciplinaridade dos processos e a gestão do escritório para dar condições melhores aos arquitetos exercerem seu papel na sociedade. Às vezes é difícil criar novos parâmetros organizacionais para a melhoria dos processos, talvez seja mais fácil partir da compreensão de exemplos já consolidados.