Não é de hoje que eu falo sobre gentrificação. Porém, na última semana, duas reportagens em especial chamaram minha atenção para como o assunto está dando o que falar em dois lugares bem diferentes: na Califórnia e em Berlim.
O fato curioso é que ambos os casos podem ser resumidos basicamente pelo mesmo motivo: o risco de haver gentrificação nessas cidades se dá, em grande parte, em função do impacto dos ecossistemas de inovação na dinâmica imobiliária local.
Portanto, o objetivo deste post é refletir sobre como americanos e alemães estão enfrentando a questão, cada um à sua maneira. Além disso: que lições podemos tirar dessas experiências, visto que este pode vir a ser um problema de cidades brasileiras que vem se destacando no cenário nacional de empreendedorismo e inovação?
O lado escuro da ensolarada Califórnia
A primeira reportagem, do The Washington Post, traz um triste relato sobre pessoas em situação de rua na Califórnia, cujo contingente já ultrapassou 134 mil. À primeira vista pode parecer um pouco apressado de minha parte responsabilizar a indústria tecnológica mais famosa do mundo pelo aumento do número de pessoas sem teto. Porém, não é exatamente de transferência de culpa que estou falando.
A reportagem descreve medidas polêmicas tomadas também pelo poder público, como a adotada recentemente pelo prefeito de San Francisco, Mark Farrell, de mandar derrubar tendas de moradores de rua em Mission District.
Sem entrar no mérito político deste imbróglio, convém lembrar que Mission District é um bairro operário historicamente habitado por trabalhadores latinos. Desde o final dos anos 90, sofre processos extremos de valorização imobiliária e aumento abusivo dos preços de aluguéis, em função especificamente da crescente demanda da comunidade tecnológica. Não por acaso o bairro carrega o estigma de “marco zero” da gentrificação em San Francisco.
Mas o quiproquó vai muito além do exemplo isolado de um bairro. A gentrificação em San Francisco é um fenômeno regional, ou seja, engloba não só a cidade como toda sua região metropolitana (a famosa San Francisco Bay Area). Incluindo também o famigerado Vale do Silício.
É o que garantem os pesquisadores do Urban Displacement, projeto que combina estudos sistemáticos sobre este tema. As pesquisas são desenvolvidas em parceria pelas Universidades da Califórnia em Berkeley e Los Angeles, com levantamentos bastante complexos que examinam a gentrificação em praticamente todo o território californiano.
Para se ter uma ideia, em 2015, 62% das famílias de baixa renda dos treze condados da região viviam em bairros de risco ou já sofrendo processos efetivos de “expulsão” em função do boom imobiliário. Obviamente, nem tudo é apocalipse na Califórnia. Vale a pena, por exemplo, dar uma olhada neste estudo sobre medidas adotadas pelo poder público em East Palo Alto para conter o avanço da especulação imobiliária, embora a pressão por lá esteja cada vez maior.
Contudo, as sugestões apresentadas pelo Urban Displacement, somadas a reportagens como a do Washington Post, desenham um panorama bastante alarmante para a gentrificação associada ao setor de tecnologia e inovação: são 134 mil pessoas sem teto e duas décadas de gentrificação ocorrendo no estado que, sozinho, detém o 5º maior PIB do mundo.
Entusiastas que me desculpem, mas isso não pode ser exportado como case de sucesso, né?
Lá vem eles de novo… O contra-ataque social alemão
A segunda reportagem, publicada quase ao mesmo tempo pelo inglês The Guardian, fala sobre como os moradores de Kreuzberg, em Berlim, estão unindo forças para impedir que a Google inaugure um campus no bairro.
O motivo do Google? Simples: Kreuzberg é tido como um dos bairros mais descolados da capital alemã (e talvez da Europa) por causa de sua riquíssima atmosfera cultural e criativa, constituindo o sítio ideal para a nova empreitada, que já é realidade em São Paulo, Madrid, Londres, Varsóvia, Seul e Tel Aviv.
O argumento dos moradores? Mais simples ainda: eles não querem que a Google torne Kreuzberg uma “Mission District europeia”. Isto é, em relação à expulsão de moradores antigos em função do inevitável aumento dos aluguéis e do custo de vida que a construção do Google Campus traria à região. Além disso, há consenso quanto ao potencial que a cultura empreendedora possui para modificar dinâmicas da própria cultura local que, antes de qualquer coisa, é a principal responsável por ter tornado Kreuzberg o bairro vibrante que é.
Tanta resistência possui embasamento: de acordo com um estudo citado na reportagem, o preço médio dos aluguéis aumentaram 70% no período entre 2004 e 2016 na capital alemã. Pesa contra, também, o fato de empreendimentos do ecossistema de inovação berlinense serem frequentemente associados a bairros onde o boom imobiliário é verificado.
O exemplo de Berlim é curioso porque a própria cidade abriu vanguarda no combate à gentrificação em 2015, quando tornou-se a primeira cidade a ter legislação específica para controle de aluguéis, seguindo uma lei aprovada no parlamento alemão que hoje é praticada em mais de 300 cidades no país. Basicamente, esta lei proíbe os proprietários de imóveis de cobrar aluguéis 10% acima da média local.
De acordo com outra reportagem, a polêmica lei ainda enfrenta muita resistência e não “pegou” por inteiro, embora a prefeitura berlinense sustente o argumento de que os resultados da medida serão mais visíveis a médio prazo. Por outro lado, um estudo recente descobriu que em bairros onde os aluguéis têm crescido de forma mais drástica, a lei funciona bem.
Assim como San Francisco, Berlim enfrenta problemas para controlar o touro raivoso do mercado imobiliário. Em que pese a gentrificação persistir em ambas, o destaque da experiência alemã está nas tentativas: tanto do poder público em controlar o avanço dos aluguéis, quanto da organização da sociedade em prol de seus interesses.
Que lições podemos tirar dessas experiências?
É preciso considerar que somos o 6º mercado mundial de Tecnologias da Informação e Comunicação, tendo movimentado mais de 49 bilhões de dólares neste setor em 2017. Na prática, quero dizer que ecossistemas de inovação já são realidade e ditam a economia local em diversas cidades brasileiras. A começar pela minha querida terra natal, Florianópolis, que em 2015 movimentou R$4,3 bilhões neste setor, consolidando-se como a segunda melhor cidade do país para empreender (atrás apenas de São Paulo).
Um primeiro passo desejável neste sentido seria as próprias cidades estarem à frente do problema da gentrificação, pois o conflito é inevitável. Compreendê-lo de maneira ampla e preventiva ajuda a encará-lo com a naturalidade que lhe é intrínseca.
A experiência californiana nos presenteia com trabalhos acadêmicos de fôlego. Os alemães nos inspiram com sua capacidade legislativa e de mobilização social frente às pressões dos grandes interesses. Talvez a grande lição (e desafio) reside exatamente em reproduzir essas potencialidades e construir uma força colaborativa genuinamente capaz de promover desenvolvimento econômico local sem comprometer premissas básicas de uma cidade sustentável, como aluguéis a preço acessíveis. Não pode ser tão difícil, né?
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