Descrever a obra de um arquiteto é, por vezes, um trabalho árduo. Pontuar a produção pelos diferentes quesitos a qual o conjunto está atrelado é sujeito a categorizações no quadro contextual inserido. No caso de Eduardo Longo, parece haver distinção a este aspecto, uma vez que o trabalho do arquiteto apresenta certa negação aos princípios presentes na época na busca por experimentações. Ingressando em 1961 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, deparou-se com um momento particular da arquitetura brasileira: a formação da chamada “Escola Paulista” e também junto a instabilidade no quadro político nacional, pelo processo inicial da ditadura militar no Brasil e construção da capital do país.
Enquanto estudante, afastou-se dos cânones da Escola Paulista na busca de experimentação e desenvolvimento de novas discussões. É neste cenário que, no quarto ano da academia, Longo desenha a Casa de praia Mar Casado, projeto destinado a seus tios e altamente criticado pelo corpo docente e estudantes, decorrente da “forma independente de interpretar a arquitetura” [1] e conformação estrutural – que incorporava um desenho não ortogonal, com ângulos agudos e obtusos junto à cobertura multifacetada –, não se adequando ao brutalismo paulista. Mesmo em meio às críticas, o projeto viria a ser construído e receber reconhecimento por sua relevância pelo crítico de arte Pietro Maria Bardi em 1967, na Revista Domus em 1968 e instituído ao livro de Yves Bruand em 1981 [2].
A produção do arquiteto paulista pode ser dividida em duas fases. Na primeira, de 1964 até o início da década de 1970, sua produção baseia-se no desenhos de várias casas nos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e principalmente no Guarujá, caracterizadas por desapego ao racionalismo estrutural que rege a planta moderna, junto à adoção de telhados e paredes multifacetados, triangulações, pouquíssimas aberturas nas superfícies e aberturas zenitais, voltando-se mais a seus interiores, novamente negando a qualidade moderna, neste caso, a relação interno-externo.
Como incita Carlos Lemos, “a obra de Eduardo Longo aparece totalmente desvinculada da produção arquitetônica brasileira e até mesmo de grupos que pudessem caracterizar uma arquitetura paulista. Liberto de qualquer imposição teórica – talvez, antes de tudo um intuitivo -, soube, com maestria, criar espaços inesperados usando somente planos de cobertura que se interceptam em arestas inclinadas, decorrentes da frequente falta de paralelismo entre os paramentos verticais, estando posta de lado qualquer hipótese de regularidade e simetria”. (3)
Um ano após o projeto da primeira residência, Longo começa a adotar desenhos mais contidos, como possível resposta racionalista às criticas recebidas. Sendo assim, ao projetar a Casa Margarida, também no Guarujá, revela maior contentamento plástico, programático e estrutural, pela adoção de uma estrutura mínima e elementos arquitetônicos dispostos com simplicidade pelas superfícies que regem a construção. A residência com um telhado em duas águas coberto por telhas de barro inova ao inserir um cilindro central, funcionando como circulação vertical e reservatório d’água, que segundo pesquisadores, foi criado a partir da apropriação plástica e solução da residência vizinha do arquiteto Sérgio Bernardes. Convém destacar que, mesmo com maior simplicidade se comparada à residência anterior, a qualidade intimista e fluidez espacial de seu interior já se demonstravam como qualidades requeridas pelo arquiteto.
Após esta, desenvolveu os estudos do projeto da Casa JZ, em Asunción no Paraguai. No ano seguinte, a experiência simplista da Casa Margarida não representou o declínio a seu pensamento antimoderno paulistano, mas, possivelmente, ponto-chave ao retorno de suas ideias visionárias. Ao projetar a Residência MG, também no Guarujá, concebe-a a partir de conceitos empregados em suas duas primeiras residências construídas. Organizada a partir de um cilindro de concreto, como na residência Margarida, e uma série de arestas, assim como na primeira obra, convergidos ao topo do elemento anterior. Neste espaço, instala-se o banheiro e reservatório ao topo, além de estruturar a escada externa de acesso vertical ao mezanino. Vale pontuar que em nenhum dos pavimentos há fechamentos definidos com exceção do banheiro. Voltada ao interior, bem como as casas precedentes, detém poucas aberturas que são estrategicamente posicionadas e destacam as facetas sob a luz. Ao acesso interior, apenas uma pequena porta tipo cofre entre a vegetação cria acesso ao interior, “ironia do arquiteto, guardando em segredo a ambiência dos jardins sombreados com as pérgolas estruturais” [4].
Em 1967 projeta o apartamento EL, desenhando um forro multifacetado assim como as residências construídas até o momento.
No mesmo ano projeta a Residência R. Martins, localizada na praia de Pernambuco no litoral paulista. Implantada num terreno retangular com cerca de 360 metros quadrados, com 108 metros quadrados de área construída, apresenta telhado com quatro águas em concreto com dimensões variadas e uma abertura estrategicamente posicionada no topo, remetendo a uma cabana. A cobertura é apoiada pelas extremidades em pedra, permitindo liberdade espacial, e ainda um gesto entre a modernidade futurista e a incorporação de material local. Ao desenhar a Casa A. Camillos implantada em um terreno trapezoidal de 3418 metros quadrados propõe certas peculiaridades se comparada às demais residências, tais como duas entradas, setorização, uso de laje plana em concreto e praticamente dispensando o uso de mobiliário em concreto, permitindo certa versatilidade.
Em 1968 projeta as casas M. Gupper, C. Lunardelli, e A.P. Guiaquinto. A primeira deste grupo e também localizada na praia de Pernambuco, no Guarujá, é disposta sobre um terreno retangular e livre de recuos, construída em duas etapas, sendo o estúdio (salas de estar, copa e banheiros) na primeira etapa e posteriormente as áreas íntima e de serviços cobertos por uma laje com quatro faces e um volume cilíndrico em concreto estruturando-as, assim como algumas das residências anteriores.
Já a segunda residência, num terreno sem acesso direto à praia, Longo buscou dispô-la de modo a favorecer a vista ao mar, criando um terraço superior. Enquanto isso, a terceira casa, em um estreito terreno que determinou o partido projetual, apresenta cobertura em duas águas construída em concreto armado e levemente apoiada sobre três colunas, internamente dispondo de ambientes regulares com arestas em 90 graus.
Na segunda fase da obra do arquiteto, indo além das triangulações introduzidas pelas superfícies das primeiras moradias edificadas, o arquiteto busca agora por uma nova maneira de construir: mais leve e permitindo pré-fabricação, dando origem às construções esféricas, como é mais conhecido por grande parte do público.
Na busca por uma solução que permitisse maior leveza aos projetos e replicação em série, Longo utiliza sua própria residência como laboratório experimental. A partir disso, em 1974 dá inicio à construção de um protótipo em escala 1:1 sobre seu escritório, localizado no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo. Dois anéis perpendiculares em aço tubular com 8 metros de diâmetro pousados sobre a laje do atelier e soldados sobre as vigas existentes, originando uma fundação suspensa. No que diz respeito aos fechamentos, aguardou alguns meses por uma solução, que após estudos, concluiu que ao adotar argamassa armada, permitiria a leveza requerida. O que era para ser apenas um protótipo configurou-se como sua residência. Internamente todos os mobiliários, soluções aos eletrodomésticos e pormenores foram desenhadas pelo arquiteto, evidenciando uma busca continua pelas minúcias da profissão.
Extasiado pela solução encontrada e acreditando na possível replicação da obra em larga escala a qualquer lugar do mundo, desenvolve uma série de outros projetos a partir da solução esférica e em 1980 projeta a segunda residência bola, no bairro do Morumbi; Pavilhão da Utopia a Bienal São Paulo 1980 – proposta não construída; seguida de outras propostas não materializadas como a Bola Futura (1980) – apartamento; Bolas voadoras (1980) – conjunto habitacional e hotel a partir da interligação de dezenas das células desenvolvidas; e Sobrebola (2007) – sendo considerada a construção de uma segunda esfera sobre sua residência do arquiteto.
A obra de Eduardo Longo nunca obteve os devidos reconhecimentos, frequentemente destacada como utópica demais. Seu plano de trabalho pautado na liberdade expressiva da arquitetura numa direção aparentemente oposta aos dogmas da Escola Paulista não foi bem-vindo no discurso predominante de seu tempo. Contudo, ele pôde utilizar a construção das residências a qual foram encomendadas como oportunidade e laboratório experimental, materializando seu discurso. Em 2016, Rem Koolhaas visitou a Casa Bola em 2011 e revelou que aquela foi sua experiência arquitetônica mais forte dos últimos 10 anos. [5] Com certeza, ainda temos muito a explorar sua obra.
Notas
[1] (CARRANZA, 2004, p.1)
[2] (Idem)
[3] (LEMOS, 1983 in: FELICETTI, 2015, p.89)
[4] (FELICETTI, 2015, p.93)
[5] Disponível em https://cosmopista.com/2011/08/23/um-dia-com-rem-koolhaas/
Referências Bibliográficas
BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. Perspectiva: São Paulo, 1981.
CARRANZA, Edite Galote. Casas de Eduardo Longo: cultura, contracultura e arquitetura. III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. 2014.
CARRANZA, Edite Galote Rodrigues. Eduardo Longo na Arquitetura Moderna Paulista: 1961/2001. 2004. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.
Eduardo Longo. Disponível em: <http://www.eduardolongo.com>. Acesso em: 03 Jul 2018.
FELICETTI, Marcelo Augusto. Ora bolas, era uma vez triângulos: reflexão sobre o espaço residencial na obra de Eduardo Longo – 1964/1980. Disponível em: <file:///C:/Users/PC/Desktop/351-1146-2-PB.pdf>.Acesso em: 03 Jul 2018.
KOGAN, Gabriel. Um dia com Rem Koolhaas. Cosmopista, 2011. Disponível em <https://cosmopista.com/2011/08/23/um-dia-com-rem-koolhaas/>. Acesso em: 03 Ago 2018.