Em 1924, André Breton redigiu o Manifesto Surrealista, convidando a comunidade artística a questionar os limites entre a realidade e o mundo dos sonhos, entre objetividade e subjetividade. Naquele momento, muitos arquitetos estavam interessados - e não são poucos aqueles que ainda se interessam - na potência imaginativa do espaço construído. Para estes profissionais, o pensamento surrealista de Breton foi, e ainda é, um recurso valioso para discutir o papel que a arquitetura desempenha na definição da realidade. Desde então, partindo de Salvador Dali, passando por Frederick Kiesler até Frank Gehry, o surrealismo tem influenciado profundamente a produção arquitetônica deste o início do século XX.
Surrealistas e arquitetos sempre estiveram em sintonia - principalmente quando se trata de projetos de interiores. Inspirado na inquietante e híper-racional concepção de “cidade ideal” desenvolvida durante o Renascimento, o artista italiano Giorgio de Chirico desenvolveu a sua própria ideia de um espaço urbano surrealista, retratando impressionantes cenas urbanas oníricas, repletas de estruturas neoclássicas, esculturas e fortalezas medievais contrastando com uma perspectiva industrial incoerente. De forma parecida, René Magritte transformou a arquitetura do espaço urbano cotidiano em imagens extremamente simbólicas e desconcertantes. In Time Transfixed (1938), o que parece ser um trenzinho de brinquedo atravessando a lareira de um interior vitoriano, pode ser também uma perspectiva de um espaço urbano sem muito sentido, coroado por um céu emoldurado em um quadro na parede. A cena doméstica familiar transforma-se em uma imagem arrebatadora, simbolicamente invadida pela velocidade dos novos sistemas de produção.
Até mesmo Salvador Dali, o maior ícone do movimento surrealista, esteve profundamente envolvido com a arquitetura e o ambiente construído. Superando os limites impostos pela bi-dimensionalidade da tela, Dali desenvolveu, em conjunto com o seu antigo patrono Edward James, o projeto "Sofá Mae West Lips", inspirado no seu desenho-colagem Mae West’s Face which May be Used as a Surrealist Apartment (1934–1935). Mais tarde, em 1974, o tal sofá foi produzido para ser inserido em uma instalação em escala 1:1 do salão representado primeiramente na colagem do mestre surrealista, um espaço em três dimensões da imagem semelhança do rosto da icônica atriz, desenvolvido e executado pelo arquiteto Oscar Tusquests.
No entanto, a obra mais famosa de uma possível arquitetura surrealista foi projetada ao longo de mais de uma década pelo arquiteto austro-americano Frederick Kiesler. Depois de tranferir-se de Viena para Nova Iorque durante as primeiras décadas do Século XX e entrar em contato com a produção do movimento De Stijl, Kiesler acabou desenvolvendo projetos expositivos para Peggy Guggenheim e também trabalhou em colaboração com Marcel Duchamp e Andre Breton no desenvolvimento do projeto “Salle Superstition” para a “Exposition Internationale du Surréalisme” de 1947 em Paris.
Depois deste intenso contato com artistas surrealistas, Kiesler de dedicou quase que exclusivamente no desenvolvimento do seu projeto mais famoso - a Endless House. O projeto amadureceu a partir de outros conceitos desenvolvidos anteriormente, como o Endless Theatre assim como a sua própria teoria do Correalismo, na qual Kiesler defendia a importância das correlações dinâmicas entre objetos, espaços e a experiência humana. Segundo Kiesler, “a escultura, a pintura e a arquitetura não devem ser rótulos utilizados para definir e segmentar a nossa experiência; são elementos de conexão, criados para aproximar a imaginação da realidade”. Assim como uma pintura surrealista, a Endless House de Kiesler procurava confundir os limites entre o real e o surreal.
Mesmo que o projeto nunca tenha sido concluído, uma série de estudos desenvolvidos entre 1947-1960 revelaram o fascínio de Kiesler com a transposição dos princípios surrealistas para a arquitetura. A estrutura biomórfica ovóide da casa evoluía de forma crescente para configurar uma série de volumes cavernosos intrincados, os quais definiam um novo conceito espacial. Como Dali, De Chirico e Magritte, Kiesler procurou criar um interior que transformasse o espaço doméstico em uma paisagem psicológica - ao mesmo tempo estranha e familiar. Cada componente da Endless House foi concebido como uma releitura onírica dos elementos mais básicos de uma casa. Espaços contínuos e indefinidos sobrepondo-se uns aos outros e delineados apenas por sua materialidade. Móveis que brotam das paredes de um espaço interno com forma de útero e luzes dinâmicas que seguiriam os moradores em um looping infinito dentro deste volume livre e fluido.
Em 1962, apenas dois anos depois de a Endless House de Kiesler ser apresentada na exposição “Visionary Architecture” do MoMA, Kevin Roche, John Lacey e John Dinkeloo concluíam as obras do TWA Flight Centre, concebido e projetado por Eero Saarinen, que faleceu um ano antes da sua conclusão. As enormes cúpulas de concreto exploravam os últimos avanços tecnológicos da indústria da construção civil e da engenharia para criar espaços interiores que pareciam desafiar à gravidade. Paralelamente, arquitetos japoneses associados ao Movimento Metabolista, como Kiyonori Kikutake e Arata Isozaki, produziram conceitos sublimes de cidades utópicas com estruturas de concreto que pareciam flutuar no espaço.
"O surrealismo é destrutivo, mas destrói apenas aquilo que considera ser as barreiras que limitam a nossa visão", disse Dali certa vez. Assim, era inevitável que a lógica formal da arte surrealista também fosse incorporada pelos arquitetos associados ao movimento desconstrutivista do final do século XX. O projeto de Frank Gehry para a sua própria casa de 1978 assim como o Vitra Design Museum de 1989, traduzem o desenho-colagem do Surrealist Apartment de Dali para estruturas construídas e formas autônomas que se sobrepõe e se atravessam. Um eco desse pastiche arquitetônico pode também ser visto nas formas platônicas dos trabalhos especulativos desenvolvidos pelo Bureau Spectacular.
Hoje, fotógrafos como Victor Enrich utilizam ferramentas digitais para dobrar, entortar, empilhar e derrubar estruturas modernistas transformado-as em estranhas e monstruosas obras de arquitetura surrealista. É bastante sugestiva a recente publicação da Architectural Design intitulada “Celebrando o maravilhoso: o surrealismo na arquitetura” lançada em março deste ano - a primeira edição dedicada ao tema deste o número especial de 1978 chamado de "Surrealismo e Arquitetura", publicado a mais de 40 anos - inspirada em uma sociedade contemporânea cada vez mais "surreal". Assim como o surrealismo influenciou decisivamente a disciplina da arquitetura ao longo do Século XX, ele continue a despertar as mais novas gerações assumindo um papel crucial no discurso arquitetônico contemporâneo. Na sociedade contemporânea - onde o real, o surreal e o hiper-real são quase indistinguíveis - o surrealismo floresce como uma lógica invisível em contraste a contínua manipulação da realidade através da arquitetura contemporânea.