A biomimética na arquitetura não define a forma ou busca que seja parecido com isso ou com aquilo. O objetivo é que tenha na arquitetura uma solução que desempenhe a estratégia que foi observada na natureza. Não é exatamente a forma pela forma, não se pretende copiar formas, e sim uma razão mais profunda das formas. E vai muito além de se inspirar somente em formas. Se observa contexto, sistemas, inter-relações e é nestas associações que está a verdadeira beleza da biomimética. A criação arquitetônica é livre pois está apenas sendo inspirada por um design principle, que é a estratégia de como a natureza faz o que o projeto busca como desempenho para uma determinada demanda. É um processo de co-criação entre a biologia e a arquitetura, é de fato transdisciplinar.
Conversamos com uma bióloga, Alessandra Araujo, para fazer a ponte entre a natureza e arquitetura, através da prática da biomimética. Pensar em biomimética aplicada na arquitetura é algo muito natural. Na natureza é muito fácil de encontrar respostas para alguns desafios da criação arquitetônica. Afinal, áreas criadas pelo homem têm várias necessidades de unir, proteger, isolar, agregar, permitir encontros, espaços para trocas, espaços de quietude e etc. Na natureza vários organismos e seus sistemas também desempenham estas necessidades. Alessandra mencionou que Le Corbusier citou, em um livro de Planejamento Urbano, que “o termo biologia convém eminentemente à arquitetura e ao urbanismo: biologia, qualidades de uma arquitetura e um urbanismo vivos. Biologia que gera plantas e cortes de edifícios, que coordena volumes, que responde a funções, biologia que dota as circulações de flexibilidade e harmonia. A vida se desenvolve de dentro para fora; se desabrocha aberta à luz e oferecida ao espaço”.
O escritório Natureza Urbana, tem o ambiente natural como o principal ambiente de trabalho, ora estruturando projetos que visam atrair o público para conhecer algumas das áreas naturais mais incríveis do Brasil, como os Parques Nacionais de Aparados da Serra e do Iguaçú, ora reforçando a presença da natureza no meio urbano, como em projetos recentes desenvolvidos em Poços de Caldas e São Paulo.
Nesse processo os elementos naturais se convertem em ferramentas de projeto, seja para solucionar aspectos técnicos, promover a integração das intervenções do homem ao seu meio ou mitigar seus impactos.
Com o objetivo de aprimorar essa prática, o arquiteto Pedro Lira buscou a biomimética enquanto ferramenta projetual capaz de dar subsídio técnico a essa aproximação com a natureza, o que se efetivou através do contato com a bio-inspirations e do curso promovidos por Alessandra e aplicado no escritório. Este curso foi estruturado em cinco módulos planejados para aplicação da biomimética na arquitetura, abrangendo um pouco de biologia, os princípios operacionais da natureza e a jornada de criação com a biomimética.
Metodologia do Workshop
Criar com biomimética precisa realmente de um contorno. Se não há, o processo e as pessoas se perdem. Os profissionais tem o mindset de suas áreas, no caso na arquitetura. É natural do arquiteto buscar um organismo que faça o que ele quer fazer na arquitetura, ou seja, um processo de buscar justificativa para a ideia que está querendo conceber. Partiu da ideia do projeto e tenta encontrar qual organismo encaixa com a intenção da criação.
Na biomimética a criação é uma das últimas etapas e inverter isso é quebrar um super paradigma. O processo inicia com qual desafio de desempenho o projeto precisará cumprir a partir do contexto do projeto. Contexto é tudo, o local, o clima e todos os recursos e necessidades.
É muito estudado na neurociência o quanto estes novos processos de criação estimulam a criatividade. O cérebro é estimulado a fazer novas rotas neurais para criar com a biomimética, por exemplo: como olhar como a natureza faz o que projeto quer fazer. Diferente de o que o projeto quer ser.
Por isso, é sempre uma jornada e o curso foi pensado para percorrer um caminho para no final ter seu momento AHA! Este AHA! é encontrar e sentir quem na natureza desempenha o desafio que o projeto pretende solucionar.
Prototipagem de aplicação da biomimética em projetos do escritório
Durante o workshop, realizaram-se práticas de observação na natureza e prototipou-se com biomimética alguns projetos em desenvolvimento no escritório. Dentre os projetos desenvolvidos, foram feitos estudos no Parque em Campos do Jordão, no Parque Ibirapuera, e em um terminal rodoviário.
Como ponto de partida dos projetos realizados, identificou-se quais desafios em cada projeto seriam resolvidos através da biomimética. O projetos foram desenvolvidos através do Biomimicry Thinking e executados por etapas orientadas com objetivo de não se perder no processo e também para evitar que a criação fosse apenas uma invenção com uma justificativa de biomimética. A partir disso, buscou-se na natureza estratégias utilizadas por diferentes organismos para vencer desafios semelhantes, investigando como elas poderiam inspirar as soluções de projeto.
Parque em Campos do Jordão
No caso do Parque em Campos do Jordão, uma cidade com clima predominantemente frio, encarou-se como desafio proporcionar conforto térmico aos visitantes e promover a integração dos atrativos do parque, facilitando o deslocamento entre eles.
Para proporcionar conforto térmico aos visitantes, utilizou-se como fonte de inspiração o sistema circulatório dos homeotermos e o sistema circulatório do jacaré. A capacidade dos homeotermos de manter a temperatura do corpo acima do meio ambiente se relaciona com seu tipo de respiração e circulação, eles têm pulmões com grande área de trocas gasosas, circulação dupla e completa. Dessa forma, mantêm seus tecidos ricamente oxigenados, condição necessária para a manutenção da taxa metabólica elevada. No caso do jacaré, a regulação da temperatura corporal se dá pelo ambiente e por mecanismos comportamentais e fisiológicos. Um desses mecanismos é o aumento do fluxo sanguíneo da pele quando o clima está quente, para aumentar a absorção de calor.
Para promover a integração entre os atrativos, considerou-se a estratégia das formigas para otimizar o tempo da busca por alimento, demarcando os percursos mais curtos através da liberação de feromônios.
A partir dos design principles identificados, desenvolveu-se um sistema de distribuição de vapor que mantém a temperatura ambiente do parque confortável que induz o fluxo de visitação. A liberação de vapor quente, considerado como mecanismo sensorial, tem o objetivo de tornar os caminhos entre os equipamentos do parque mais atraentes. Áreas de permanência do parque e mobiliário urbano também são aquecidas ou resfriadas pelo sistema de vapor, assim como as edificações. O sistema funciona de forma análoga ao sistema circulatório, promovendo a distribuição de vapor quente, que, após utilizado, é condensado e retorna à central de vaporização. As saídas de vapor ao longo do parque podem se tornar elementos lúdicos, que contribuem com os mecanismos sensoriais para demarcar as principais rotas.
Ensaio no Parque Ibirapuera
No ensaio desenvolvido no Ibirapuera, o desafio enfrentado era a redução dos poluentes do ar, considerando os altos índices de ozônio reportados pela CETESB. O ozônio produzido pelos veículos na capital paulista tem dois destinos: se extingue no próprio trânsito, reagindo com outros elementos químicos, ou segue pela atmosfera para regiões com baixa presença de moléculas de poluentes, a exemplo de parques e regiões distantes dos centros urbanos. A concentração de ozônio no Ibirapuera é mais alta justamente nos períodos de maior fluxo de visitação do parque, o que pode impactar os usuários. A alta concentração de ozônio é uma ameaça quando presente na troposfera, causando problemas respiratórios e, até mesmo, podendo danificar colheitas e edifícios.
Com isso perguntou-se como a natureza faz para eliminar poluentes, coletar micropartículas e filtrar, na busca por soluções que possam reduzir o ozônio no Ibirapuera. Serviram como fonte de inspiração a Venus’ flower basket (esponja de vidro), peixes filtradores, como a Salpa marinha, plantas fitorremediadoras e wetlands. A partir desses organismos, foi proposta uma estratégia de filtragem do ar, utilizando os design principles investigados.
Para desempenhar as funções de cada etapa do processo de filtragem e renovação do ar foram propostos três elementos – a célula filtrante, a coluna de condensação e o dissipador. Buscou-se transpor as estratégias identificadas nos organismos para soluções arquitetônicas, desenvolvendo estruturas modulares capazes de efetuar essas funções e se combinar em diferentes arranjos. Com essas estruturas filtrantes, foram propostas áreas no parque com baixa concentração de ozônio, onde as pessoas podem desfrutar de um ar limpo.
Terminal rodoviário
O desafio no projeto do terminal rodoviário era o excesso de calor e umidade do local. Buscou-se na natureza organismos capazes de reduzir a absorção térmica, regular a temperatura interna em ambientes muito quentes e controlar a umidade elevada. O Caramujo do deserto (Sphincterochila Boisseri) serviu como inspiração, pois a alta refletividade da superfície da concha, somada à lenta condução de calor pela presença de bolsas de ar no interior da sua estrutura, permitem que o caramujo mantenha uma temperatura corporal abaixo da temperatura externa. Outra fonte de inspiração foi o cactus, cuja forma apresenta diversas estratégias para proteger sua superfície do sol e minimizar a radiação de calor, como as nervuras verticais e os espinhos.
A partir da identificação das estratégias utilizadas pelos cactos e caramujos para superar o calor e a umidade, foi proposta uma cobertura que incorpora esses design principles.
Conclusão
O workshop de biomimética permitiu o aprendizado e prática de uma ferramenta de projeto capaz de aprofundar o olhar investigativo diante da natureza, provendo subsídio técnico para um melhor entendimento do sistema natural do qual fazemos parte. Muitas vezes a solução projetual que buscamos pode vir de estratégias utilizadas por organismos vivos, precisamos ter sensibilidade para observá-los de forma investigativa. A biomimética incentiva, portanto, uma perspectiva de inovação baseada na natureza.