Constatações de que as cidades brasileiras cresceram sem o devido planejamento, de maneira desordenada, são recorrentes. Também é comum ouvir que a legislação urbana do Brasil é moderna, mas que temos dificuldades para tirar as melhores práticas do papel. Porém, poucas pessoas de fato entendem como funcionam as engrenagens do planejamento urbano e de que maneira esses mecanismos podem ajudar a conduzir os centros urbanos para um futuro melhor e mais sustentável.
A transição do Brasil rural para urbano caminha junto do desenvolvimento industrial e da crise momentânea do setor agrícola ainda na primeira metade do século 20. Foi a partir de 1950 que mais da metade da população migrou para as cidades, onde vivem atualmente cerca de 85% dos brasileiros. Nesse processo, faltou aos municípios estrutura administrativa, planejamento e até mesmo os instrumentos jurídicos para lidar com os desafios. Surgiram aglomerados de pessoas desassistidas, ocupando espaços muitas vezes segregados, sem acesso a serviços básicos como saúde, transporte, educação, lazer, cultura e saneamento básico.
Movimentos pelo ordenamento jurídico e administrativo da questão urbana vinham se consolidando desde a década de 1970, mas foi apenas na Assembleia Nacional Constituinte, em 1988, que houve um avanço concreto: a inclusão da função social da propriedade na Constituição Federal. O artigo 182 da Carta Magna foi o mecanismo formal para a transição de um conceito de propriedade privada tido como absoluto e incondicional para o direito público que privilegia os interesses coletivos – estabelecendo os Planos Diretores como instrumentos para cumpri-lo no âmbito municipal.
Os debates e questionamentos sobre os rumos da urbanização avançaram, mas apenas em 2001, após mais de dez anos de tramitação, os artigos 182 e 183 da Constituição Federal foram regulamentados pelo Estatuto da Cidade (lei 10.257). Recebido como uma moderna legislação, o texto busca garantir o direito a cidades sustentáveis, com participação social nas decisões, cooperação entre o setor público e privado no processo de urbanização, planejamento, controle do uso do solo para evitar especulação imobiliária, preocupação com impactos ambientais, mecanismos para o Estado recuperar investimentos em infraestrutura que valorize terrenos e imóveis privados, regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por pessoas de baixa renda.
Com o arcabouço legal estabelecido no Estatuto da Cidades, as gestões municipais ganharam as ferramentas e mecanismos para gerir melhor o seu território, garantir o interesse coletivo sobre o privado e, com a participação da população, construir uma visão de cidade a ser trabalhada através do planejamento. Alguns anos depois, em 2003, o Brasil também inovou ao criar o Ministério das Cidades, fortalecendo a capacidade do governo federal de planejar e orientar as questões urbanas em âmbito local e regional.
A partir daí surgiram as políticas nacionais por setores, primeiro a Política Nacional de Habitação (2005), depois a de Saneamento Básico (2007), de Resíduos Sólidos (2010) e depois a de Mobilidade Urbana (2012). Elas exploram em detalhes, atualizam alguns aspectos do Estatuto da Cidade e estabelecem a exigência para os municípios de elaboração de planos setoriais.
Para completar a legislação urbana brasileira até o momento, em 2015 é lançado o Estatuto da Metrópole, lei que estabelece as diretrizes gerais para o planejamento, a gestão e a execução das funções públicas de interesse comum em regiões metropolitanas e em aglomerações urbanas instituídas pelos estados.
Agora que você chegou até aqui, vamos tentar explicar como todas esses instrumentos de planejamento urbano podem ser trabalhados para tornar as cidades melhores para todos.
Muitos planos, diferentes escalas
O “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” dos municípios, segundo o Estatuto da Cidade, é o Plano Diretor. Mas apenas o Plano Diretor não garante um bom planejamento, que inclui a integração e a obrigatória compatibilização com os planos setoriais e o planejamento metropolitano – quando o município faz parte de uma Região Metropolitana ou aglomeração urbana.
Abaixo, definimos o que é cada plano e como eles se comunicam:
Plano Diretor
O que é? É um instrumento de planejamento urbano municipal, que tem como objetivo ordenar o desenvolvimento da cidade sob o ponto de vista urbanístico, econômico e social. Serve para regular a ocupação dos espaços urbanos em prol do bem coletivo, estabelecendo estratégias para garantir a qualidade de vida da população, tornando viável a função social da propriedade urbana (pública e privada). Todos os demais planos setoriais desenvolvidos pelos municípios precisam necessariamente estar compatibilizados com seu respectivo Plano Diretor.
Quem deve fazer? Municípios com mais de 20 mil habitantes, integrantes de Regiões Metropolitanas e aglomerações urbanas, integrantes de áreas de especial interesse turístico, inseridos em área de influência de empreendimentos com significativo impacto ambiental, entre outros.
Qual o prazo? O Estatuto da Cidade, lançado em 2001, estabelecia o prazo de cinco anos para os municípios publicarem seus planos, prazo que posteriormente foi adiado para 2008. Os planos devem ser revisados a cada 10 anos. Em 2018, se encerra o prazo mínimo de dez anos para diversos municípios.
E se não cumprir? Prefeitos que não cumprirem os prazos podem incorrer em improbidade administrativa, assim como os que não atenderem a alguns requisitos do processo como a participação da população, a publicidade dos documentos e informações produzidas e o acesso a isso por qualquer cidadão interessado.
Plano de Mobilidade Urbana
O que é? É o instrumento de efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, fundamentada em princípios como o desenvolvimento sustentável das cidades, equidade no acesso dos cidadãos ao transporte coletivo e uso do espaço público de circulação. Tem como diretrizes importantes: a prioridade dos modos de transporte ativos sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual; a mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos (custos externos ou externalidades) dos deslocamentos urbanos, em especial do tráfego rodoviário; além do incentivo ao desenvolvimento científico-tecnológico e ao uso de energias renováveis menos poluentes. Inclui uma visão para a mobilidade urbana do município, com metas de curto, médio e longo prazo.
Quem deve fazer? Municípios com mais de 20 mil habitantes e demais exigidos por lei a terem Planos Diretores.
Qual o prazo? A Lei Federal de Mobilidade Urbana entrou em vigor em janeiro de 2012 e estabelecia um prazo de três anos para os municípios elaborarem seus planos. Após ser prorrogado para 2018, recentemente o prazo foi adiado para abril de 2019, conforme estabelecido pela Lei 13.640, de 2018. Da mesma forma que os Planos Diretores, precisa ser revisado a cada dez anos.
E se não cumprir? Verbas federais para área de mobilidade, como as do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) ou o recente Avançar Cidades, só podem ser acessadas por municípios que fizeram seus Planos de Mobilidade.
Plano Local de Habitação de Interesse Social
O que é? Instrumento de aplicação no nível local da Política Nacional de Habitação, que tem entre suas diretrizes garantir o direito à moradia digna e o princípio da função social da propriedade estabelecido na Constituição e no Estatuto da Cidade, promover ações coordenadas no território para garantir acesso a moradia e à própria cidade, ser realizado com participação social, garantir atendimento prioritário à população de baixa renda e ações voltadas à ampliação e universalização do acesso à terra urbanizada.
Quem deve fazer? Os municípios que quiserem participar do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e, assim, acessar recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.
Qual o prazo? Não há um prazo estabelecido para a entrega. Depende do interesse dos municípios de aderir ao Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social.
E se não cumprir? Os municípios que não elaborarem seus Planos Locais de Habitação de Interesse Social não poderão aderir ao Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social nem acessar recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.
Plano de Saneamento Básico
O que é? É o instrumento de efetivação da Política Nacional de Resíduos Sólidos. A Lei Federal de Saneamento Básico tem entre os seus princípios a universalização do acesso com segurança, qualidade e regularidade, promoção da saúde pública, segurança da vida e do patrimônio e proteção do meio ambiente, adoção de tecnologias apropriadas para as peculiaridades locais e regionais, soluções graduais e progressivas, integradas com a gestão eficiente dos recursos hídricos, com sustentabilidade econômica e eficiência. É um diagnóstico do saneamento básico do município para planejar metas de curto, médio e longo prazo para a universalização do acesso a serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem e manejo de águas pluviais urbanas, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos.
Quem deve fazer? Todos os municípios brasileiros.
Qual o prazo? O prazo inicial era dezembro de 2013. Após diversas prorrogações, a data final é 31 de dezembro de 2019.
E se não cumprir? Após o prazo, só receberão recursos da União para investimentos em saneamento básico os municípios que tiverem um Plano de Saneamento Básico.
Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos
O que é? Instrumento de planejamento que institui da Política Nacional de Resíduos Sólidos no nível local. Uma das inovações da lei é que o escopo de planejamento não deve tratar apenas dos resíduos sólidos urbanos (domiciliares e limpeza urbana), mas de uma ampla variedade de resíduos sólidos, que são os descritos no art. 13 da Lei: domiciliares; de limpeza urbana; de estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços; dos serviços públicos de saneamento; industriais; de serviços de saúde; da construção civil; agrossilvopastoris; de serviços de transportes e de mineração. O Plano, exigido dos municípios, deve conter um diagnóstico do tratamento dos resíduos gerados, assim como definir diretrizes, metas e estratégias a serem alcançadas, abrangendo desde a geração dos resíduos até a disposição final adequada, com prioridade para soluções capazes de minimizar os efeitos negativos para o ambiente.
Quem deve fazer? Todos os municípios acima de 20 mil habitantes.
Qual o prazo? Julho de 2018 para capitais e municípios de região metropolitana, julho de 2019 para municípios com mais de 100 mil habitantes, julho de 2020 para municípios entre 50 e 100 mil habitantes e julho de 2021 para municípios com menos de 50 mil habitantes.
E se não cumprir? Os municípios ficam impedidos de acessar recursos ou incentivos da União destinados a serviços relacionados à limpeza urbana e ao manejo de resíduos sólidos. O Plano de Resíduos Sólidos pode estar inserido no Plano de Saneamento Básico desde que respeite o conteúdo mínimo previsto na lei.
Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado
O que é? Instrumento estabelecido pelo Estatuto da Metrópole para traçar as diretrizes de desenvolvimento urbano das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas brasileiras. Fixa as bases de atuação conjunta entre estados e municípios nesses territórios. Ao propor uma governança interfederativa, institui a gestão compartilhada de funções públicas de interesse comum com o objetivo de tornar serviços urbanos mais eficientes e capazes de atender mais pessoas. A elaboração de um plano de desenvolvimento integrado não exime os municípios de elaborarem seus respectivos planos diretores. Além disso, os planos diretores locais devem necessariamente ser compatibilizados com o plano de desenvolvimento integrado.
Quem deve fazer? Todas as Regiões Metropolitanas e aglomerações urbanas brasileiras, de maneira cooperada entre Estados e Municípios.
Qual o prazo? O Estatuto da Metrópole, que entrou em vigor em 2015, estabelecia o prazo de três anos para a entrega dos PDUI’s. Este prazo foi alterado recentemente para 2021.
E se não cumprir? Medida Provisória publicada em 2018 adiou os prazos de entrega e retirou as possíveis sanções de improbidade administrativa, por omissão, a governadores que não tomassem as medidas cabíveis para instituir os planos.
Como o planejamento interfere no futuro das cidades
Como se pode ver, os desafios de planejamento e a complexidade das exigências para os municípios são grandes. Embora não haja um método consolidado sobre como fazer a integração entre esses instrumentos de planejamento, é fundamental que todos apontem para uma visão comum de desenvolvimento, estabelecida de forma democrática e participativa, visando uma cidade mais equitativa, que promova o desenvolvimento social e econômico de maneira eficiente e sustentável. Ainda que isso seja obrigatório, é importante ressaltar que um bom planejamento necessita de uma compatibilização entre todos os planos, especialmente o Plano Diretor, que ordena e orienta o desenvolvimento em todo o território municipal.
Algumas dificuldades são comuns a muitas cidades, como falta de equipe dedicada, de recursos técnicos e financeiros, de dados, dificuldades políticas e de trabalhar com uma legislação complexa. Mas uma delas se sobressai: a ausência de uma cultura de planejamento, capaz de orientar as ações e investimentos para curto, médio e longo prazo. As urgências cotidianas das cidades acabam consumindo os recursos e orientando as ações das administrações municipais em detrimento de políticas e medidas estratégicas mais duradouras. As sistemáticas prorrogações de todos os prazos apresentados acima são um indicativo desse cenário de dificuldades e de pressão para a flexibilização das exigências.
Muitos municípios carecem de um planejamento a longo prazo que ultrapasse mandatos, assim como uma integração maior entre as secretarias, que deveriam trabalhar juntas em muitos casos. O planejamento urbano deve orientar os investimentos e o crescimento, que precisam ser baseados em estratégias setoriais integradas, definidas com a participação de toda a sociedade. São desafios que o Brasil precisa enfrentar agora para evitar que essa falta de cultura de planejamento se perpetue e as cidades continuem crescendo de forma desordenada e ineficiente. Só assim o país terá cidades economicamente prósperas, socialmente justas e ambientalmente sustentáveis.
Artigo escrito por Luiza de Oliveira Schmidt, Lara Caccia e Bruno Felin e publicado originalmente no blog do WRI Brasil com o título "A engrenagem urbana brasileira".