Encerrando as ações do “outubro urbano”, que comemora todos os anos, a ONU designou 31 de outubro como o “Dia Mundial das Cidades” com o objetivo de promover uma maior troca de experiências entre os países sobre como enfrentar os desafios da crescente urbanização global e contribuir para o desenvolvimento sustentável.
Para o Brasil, a data é oportuna para uma reflexão sobre a visão do futuro governo federal a respeito das políticas públicas que garantam cidades saudáveis e inclusivas. Em algumas manifestações nas últimas semanas, o presidente eleito afirmou que extinguiria o Ministério das Cidades e mandaria o dinheiro atualmente gerenciado pela pasta diretamente para as Prefeituras. “E lá o prefeito vai usar essa verba no que achar melhor, no que precisar. Saneamento, casa popular, e seja o que for”, declarou ele à GloboNews em 28 de agosto.
Passada a campanha, os arquitetos e urbanistas brasileiros nutrem a esperança de que Jair Bolsonaro pondere melhor sobre tais ideias. Responsável pelas políticas nacionais de habitação, saneamento básico, mobilidade e desenvolvimento urbano, o Ministério das Cidades pode não estar dando conta direito de suas atribuições, mas sua extinção está longe de ser a melhor solução.
Em nome do planejamento racional em termos financeiro e de infraestrutura, tais áreas exigem programas e investimentos integrados, envolvendo os setores público e privado, com participação democrática da sociedade. Para tanto é essencial um plano nacional de desenvolvimento social e econômico que priorize a qualidade de vida nas cidades, atrelando a ocupação dos territórios à economia e considerando as especificidades regionais.
A “Carta Aberta aos Candidatos nas Eleições de 2018 pelo Direito à Cidade”, elaborada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil e pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, defende a manutenção do MCidades, recomendando a garantia de sua autonomia técnica, de maneira a preservar a pasta de ingerências político-partidárias. Criado em 2003, o MCidades teve até agora nove titulares, quase todos mais comprometidos com as ideologias e interesses políticos de seus partidos do que com a função social da cidade prevista na Constituição e regulamentada pelo Estatuto da Cidade. Mais apropriado, então, seria falarmos na necessidade de sua reestruturação.
O Brasil tem um déficit habitacional de seis milhões de moradias, segundo a Fundação João Pinheiro, ou 7,7 milhões de domicílios, segundo a Fundação Getúlio Vargas. Seria um atraso social e crueldade política deixar o peso da solução desse problema apenas nos ombros dos prefeitos, ainda que o maior programa habitacional da história do Brasil, o Minha Casa, Minha Vida, tenha colapsado.
Muitos dos Municípios são carentes de equipes técnicas e têm pouca capacidade de formulação de políticas estruturantes para as cidades que articulem uso do solo, habitação, mobilidade urbana e espaços públicos de forma adequada com as demandas dos cidadãos. Dessa forma, é simplista dizer que bastará enviar dinheiro federal para os Municípios resolverem seus problemas habitacionais. O melhor seria encaminhar recursos condicionados a diretrizes que recomendem a formulação de projetos que considerem a localização dos conjuntos habitacionais em áreas com infraestrutura, saneamento e mobilidade.
Em termos de saneamento básico, o desafio não é menor. Segundo o Instituto Trata Brasil, apenas 51% do esgoto gerado no país é coletado e só 45% passa por tratamento. Cerca de 17% da população ainda não tem acesso a água potável em suas casas.
Em novembro vence o prazo para o Congresso votar a Medida Provisória 844/2018, promulgada em 6 de julho, alterando o marco legal do saneamento básico no Brasil, em defesa da privatização dos serviços, o que pode prejudicar os Municípios menores que hoje dependem dos subsídios cruzados possibilitados pela prestação dos serviços por uma mesma companhia para várias cidades. Apresentada sem que houvesse uma ampla discussão prévia, a MP segue em tramitação apressada no Congresso. Na hipótese de sua aprovação, mandar as verbas direto para os prefeitos, como pretende o novo presidente, sem uma visão nacional do reparte igualitário a ser feito, só piorará o quadro.
Dados de agosto último do MCidades revelam que o Brasil tem 335 obras de mobilidade paradas, atrasadas que sequer foram iniciadas. Todos os projetos foram custeados, pelo menos em parte, com dinheiro do governo federal. Segundo o Ministério, já foram gastos pela pasta mais de R$ 7 bilhões em obras que ainda não foram concluídas e ainda faltam R$ 22 bilhões para finalizar todos esses investimentos. Ou seja, é simplista demais imaginar que a transferência de verbas para a construção dessas obras para as Prefeituras ou governos estaduais significa automaticamente a solução do problema. O que falta é planejamento e gestão comprometida com sua implementação.
Outra importante ação do MCidades é o apoio ao planejamento territorial urbano e à política fundiária dos municípios, capacitando as Prefeituras para a implementação de Planos Diretores Participativos, como requer o Estatuto da Cidade. Hoje, em razão de seu porte, cerca de 3.000 municípios – mais da metade do total de 5.570 do país – não possuem estrutura administrativa e recursos financeiros para sustentar quadros especializados na área. Extinto o MCidades, as Prefeituras perderiam esse essencial apoio?
A construção da cidadania é feita por diferentes atores – a família, a escola e as pessoas com quem convivemos – que necessitam de espaços de discussão sobre o que desejam para suas comunidades. O Conselho Nacional das Cidades tem um importante papel nesse contexto por permitir, com os congêneres estaduais e municipais, um debate democrático objetivando o aprimoramento das políticas públicas do MCidades. Desativado no momento, ele precisa ser restabelecido. Sem a pasta, qual será o futuro dos Conselhos?
Em síntese, se levar adiante sua ideia de acabar com o MCidades, o futuro presidente da República estará na direção oposta das propostas da Carta-Aberta aos Candidatos assinada pelo CAU/BR e pelo IAB e das recomendações da ONU para o “Dia Mundial das Cidades”: a necessidade de uma liderança nacional para coordenar as políticas públicas que, fortalecendo as administrações locais e ampliando a participação cidadã, ajudem a construir “cidades sustentáveis e resilientes”.
Luciano Guimarães, arquiteto e urbanista, é presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR).